Um acordo fechado no ano passado pelo governo federal com o grupo Cosan, maior produtor de açúcar e álcool do mundo, abriu uma brecha que poderá reduzir a eficácia do principal instrumento de que o país dispõe para combater o trabalho escravo.
O acordo permite que a Cosan mantenha seu nome excluído da chamada "lista suja" do Ministério do Trabalho, um cadastro público de empresas acusadas de submeter trabalhadores a situações análogas à escravidão, onde o grupo foi incluído pelo próprio governo em 2009.
O êxito obtido pela Cosan poderá estimular outras empresas flagradas pelos fiscais do Ministério do Trabalho a negociar acordos semelhantes com o governo para evitar a exposição na lista, que impede o acesso a crédito público e afugenta fornecedores.
"Assim era melhor o governo acabar logo com a lista", disse a procuradora Ruth Vilela, que chefiou por 13 anos a Secretaria Nacional da Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho, e foi a principal responsável pela criação do cadastro. Ela saiu do governo no ano passado.
Para o frei Xavier Plassat, membro da Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo), grupo vinculado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência, o acordo da Cosan provocará uma avalanche de pedidos semelhantes de outras empresas.
A Cosan foi incluída na lista do Ministério do Trabalho por causa de um processo iniciado em 2007, quando os fiscais do governo encontraram problemas no tratamento que uma empresa terceirizada que prestava serviços à Cosan em Igarapava (SP) dava a seus funcionários.
Segundo o Ministério Público do Trabalho, os 42 trabalhadores viviam em alojamentos precários, sem alimentação decente e transporte adequado, e haviam sido forçados a se endividar em estabelecimentos comerciais no local de trabalho.
CONTROLE EXTERNO
No ano passado, a Cosan recorreu à Justiça e conseguiu uma liminar que a excluiu da lista. Com o acordo fechado no fim do ano, a AGU (Advogacia-Geral da União) abre mão do direito de recorrer contra a liminar que beneficiou a Cosan.
Em troca, a empresa se comprometeu a tomar medidas para evitar a repetição de casos semelhantes ao de 2007. A Cosan prometeu aprimorar mecanismos internos de fiscalização e se submeter a controles externos.
Foi a própria Cosan que tomou a iniciativa de propor o acordo à AGU. Conhecido como TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), o acordo ainda precisa ser homologado pela Justiça do Trabalho.
Esta foi a primeira vez que o governo fez um acordo desse tipo. Empresas que foram excluídas da lista do Ministério do Trabalho no passado só tiveram sucesso depois de recorrer aos tribunais. Na maioria das vezes, a AGU recorreu e derrubou as liminares favoráveis às empresas.
O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, reconheceu que a preocupação dos defensores da lista é "legítima", mas afirmou que o acordo com a Cosan tem caráter "excepcional" e disse que o governo não pretende virar um "balcão de TACs".
A Cosan foi incluída na lista do Ministério do Trabalho em 31 de dezembro de 2009 e conseguiu a liminar que a excluiu do cadastro apenas oito dias depois. O juiz que a concedeu concluiu que as infrações apontadas pelo ministério não bastavam para caracterizar o trabalho escravo.
No ano passado, a Cosan concordou em desembolsar R$ 3,4 milhões por não cumprir três acordos semelhantes ao que assinou com a AGU, firmados anteriormente com o Ministério Público do Trabalho. O dinheiro serviu para custear serviços de saúde e equipamentos de proteção para trabalhadores.
OUTRO LADO
O governo federal afirmou que o acordo com a Cosan não muda seu compromisso de combater o trabalho escravo no país nem indica uma tendência em flexibilizar a "lista suja".
"A lista é um instrumento importante, será mantido. A AGU não vai se tornar um balcão de TACs", afirmou Luís Inácio Adams, chefe da AGU (Advocacia-Geral da União), que negociou e assinou o acordo.
Ele disse que o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) ocorreu devido a uma situação "excepcional".
Para Adams, a análise da autuação da Cosan de 2007, que a levou para o cadastro, mostra um "conjunto de fatores que indicam a não intencionalidade" em submeter seus trabalhadores à situação análoga à escravidão.
Dentre esses fatores, disse, está o fato de que a responsabilidade pelas condições encontradas pelos fiscais era de uma empresa terceirizada pela Cosan. Esse tipo de alegação é comum entre membros da lista.
Adams disse haver "chances pequeníssimas" de outras empresas conseguirem o acordo que a Cosan conseguiu. "Eles [empresas da "lista suja"] não têm o direito inalienável de conseguir um TAC", afirmou.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Cosan informou "que nada tem a dizer sobre o dito acordo, e reforça que todos os atos judiciais referentes ao processo […] são praticados dentro dos critérios do segredo de Justiça, de modo que não podem ser públicos sem prévia […] autorização judicial".
A empresa afirmou também que sua saída do cadastro foi apenas referendada pelo governo, uma vez que a Justiça já havia reconhecido esse direito.
"A Cosan […] foi excluída da lista […] por meio de medida liminar proferida pelo Poder Judiciário em 8 de janeiro de 2010. Essa medida liminar foi confirmada por sentença judicial. Dessa maneira, o próprio Poder Judiciário já confirmou a exclusão da Cosan […] da referida lista", disse em nota.
A empresa afirma seguir a legislação trabalhista e dar a seus funcionários condições dignas de trabalho.