Quem é que não sabe?

 21/04/2011

Este Blog da Redação busca se enveredar por ares mais úmidos que os do Planalto Central, mas um novo representante da bancada ruralista no Congresso atraiu mais uma vez as atenções ao desfiar sua “expertise” acerca do trabalho escravo contemporâneo. 

Desta feita, quem veio a público foi o deputado federal Irajá Abreu. Estreante no Parlamento, ele tem 28 anos e é filho de Kátia Abreu, que divide o cargo de senadora com o posto de presidenta da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). 

Entre diversos questionamentos, Renata Camargo e Edson Sardinha, jornalistas do site Congresso em Foco, lançaram a seguinte pergunta ao parlamentar do Tocantins: 

A senadora Kátia Abreu, quando deputada, foi muito crítica à PEC do Trabalho Escravo. Qual é a sua avaliação sobre essa PEC? Há ambiente hoje no Congresso para votá-la?

“Só não há ambiente se não quiser. Porque essa PEC é fundamental. É verdade que é preciso esclarecer a diferença entre trabalho escravo, trabalho degradante e trabalho análogo à escravidão. Hoje, se perguntar isso para o Ministério do Trabalho, eles não sabem a diferença. Então precisamos clarear isso. Seja no ambiente urbano, seja no rural, é inconcebível você promover trabalho escravo. Outra coisa é um trabalho degradante, que não está totalmente em conformidade com a legislação, mas que não se compara com trabalho escravo. Trabalho escravo, o que é? É deixar a pessoa dependente para comer, sem as mínimas condições de saúde. Ainda tem o trabalho análogo. A PEC visa deixar as regras claras, dar segurança jurídica”

Desavisados poderiam até enxergar coerência na resposta do parlamentar, mas o exame mais detido das leis e dos fatos autoriza reparos, esclarecimentos e até indagações inquietantes com relação ao que foi dito e defendido neste trecho extraído da entrevista.

1) O parlamentar se diz favorável à aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, também conhecida como PEC do Trabalho Escravo, que prevê a expropriação de propriedades onde houver flagrante de trabalho análogo à escravidão. Contudo, desde que outra proposta de mesmo teor foi protocolada pela primeira vez, em 1995, a poderosa bancada ruralista vem atuando firmemente para barrar a medida;

2) Irajá Abreu sustenta que os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) “não sabem a diferença” entre trabalho escravo, trabalho degradante e trabalho análogo à escravidão. E, ao fazê-lo, assume ele mesmo a tentativa de estabelecer parâmetros para a suposta tripla distinção. Seria bom que tivesse levado em consideração o Código Penal, que define o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo em seu Art. 149 (quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto);

3) Para exemplicar o que seria “trabalho escravo”, o congressista faz menção a “deixar a pessoa dependente para comer, sem as mínimas condições de saúde“. Já o “trabalho degradante” se configuraria, segundo ele, quando a situação encontrada “não está totalmente em conformidade com a legislação, mas que não se compara com trabalho escravo“. A falta de água potável e a alimentação inadequada e incipiente, que cabem perfeitamente no conceito de “trabalho escravo” de Irajá, são dois dos itens que contribuem para configurar a degradância nos locais de trabalho. De quebra, o entrevistado ainda desperta curiosidade ao abordar uma terceira modalidade, que seria o “trabalho análogo à escravidão“, para a qual não atribui nenhuma característica específica. Essas considerações dão margem à seguinte interrogação: Quem é que não sabe (ou não quer reconhecer) a diferença entre irregularidades trabalhistas e escravidão contemporânea?;

4) Várias decisões judiciais ajudam a dirimir possíveis dúvidas a respeito da definição de trabalho em condição análoga à de escravo. Serve de referência a posição unânime da 4ª Turma do Tribunal Superior de Justiça (TST) a respeito do caso de escravidão ocorrido na fazenda do senador João Ribeiro (PR-TO), um dos principais aliados políticos de Kátia Abreu no Tocantins. No acórdão, o ministro Barros Levenhagen reitera o entendimento – emanado em julgamento prévio do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT-8) – de que “a caracterização do trabalho em condições degradantes e de jornadas exaustivas” é suficiente para a “configuração de trabalho em condição análoga a de escravo”.

5) A PEC 438/2001 não tem como objetivo rever critérios referentes ao trabalho escravo, como faz querer crer o deputado. No final da resposta à pergunta dos jornalistas, é possível verificar a afirmação de que a PEC “visa deixar as regras claras, dar segurança jurídica“. Não é isso. A proposta visa tão somente alterar o Art. 243 da Constituição Federal, que trata do confisco de propriedades em que forem encontradas lavouras de plantas psicotrópicas ilegais. A emenda propõe apenas que a punição prevista para o flagrante de cultivo de drogas ilícitas também seja estendida para casos de trabalho escravo. 

Irajá recebeu o apoio direto de 39,3 mil eleitores para representar o povo do Tocantins. E, assim como sua mãe Kátia, está de saída do DEM para o PSD, nova agremiação inaugurada pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, e por outros políticos dissidentes. De acordo com estatísticas compiladas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), mais de 2,4 mil pessoas foram libertadas de fazendas do Tocantins apenas entre 2001 e 2010.

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