Aos 59 anos, o padre Ricardo Rezende é porta-voz das vítimas dos conflitos fundiários no Pará. Viveu 20 anos em terras sem lei, 18 deles marcado para morrer. Há 15, denuncia, do Rio, crimes cometidos com a chancela do Estado e a escravidão instituída por grandes empresas. Professor da UFRJ, conheceu irmã Dorothy e outros mártires e é protagonista no documentário "Este homem vai morrer", de Emílio Gallo, que será lançado no Rio dia 13. Ele fala de seu arquivo com mais de 700 depoimentos de vítimas do trabalho escravo e alerta: 13 pessoas, entre elas bispos e freira, estão ameaçados e sem proteção.
O DIA: O que o atraiu para os conflitos no Pará?
Ricardo Rezende: Eu tinha 24 anos, era 1977, ditadura, e tinha acabado de me formar em Filosofia e Ciência das Religiões. Queria trabalhar com a Igreja onde fosse mais útil. Era uma região com escassez de agentes pastorais. A Guerrilha do Araguaia tinha terminado em 74. Em 76, trabalhadores e padres foram presos pelo Exército, apanharam muito. A cidade não tinha eletricidade. Telefone, só o público, não chegava jornal nem TV. Era muito isolado, a mil quilômetros de Goiânia e mil de Belém, mas muita gente chegava em busca de terra e trabalho, e chegavam também grandes grupos empresariais do Brasil e estrangeiros para a pecuária, incentivados pelo governo federal. O projeto de ocupação favorecia esses grupos em terras baratas e com subsídios. A região onde fiquei, Conceição e Santana do Araguaia, recebia mais de 50% dos investimentos da Amazônia.
Como se dava o acesso?
O aeroporto de Conceição do Araguaia tinha volume de voos impressionante. Maior parte do acesso às fazendas era de avião, não havia estradas. Chegavam pessoas a convite do governo, mas já não tinha terra. As empresas tinham cercado áreas de 100 mil, 140 mil hectares. Em São Félix do Xingu, a fazenda Andrada e Gutierrez tinha 400 mil hectares. A do Daniel Ludwig tinha 3 milhões. Terras públicas eram privatizadas para grandes empreendimentos. Quando cheguei, vi a necessidade de auxiliar e pensei: É aqui que vou ficar.
Era missão como padre?
Fui ordenado em julho de 1980. Quando cheguei era leigo. Através do Movimento de Educação de Base, dávamos assistência a trabalhadores. Tínhamos cursos de pedreiro, carpinteiro, eletricista. Cada comunidade com escola recebia quadro, giz, lampião, aparelho de rádio e bateria, e sintonizava na aula a rádio da diocese. Instruíamos monitores. Comecei a perceber o conflito fundiário. A população dobrava, mas as terras estavam ocupadas e de forma irregular. Alguém adquiria 13 títulos de propriedade, com 4.450 hectares cada, mas colocava nos lotes área maior. Se pusessem os títulos lado a lado, o Pará teria que dobrar. Havia sobreposição em áreas tituladas, conflitos entre posseiros, moradores antigos e empreendimentos. Havia tiro, morte e outro drama: o trabalho escravo.
Como o senhor se deparou com trabalho escravo?
Ouvi falar de trabalhadores que tentavam sair de fazendas e não podiam, que havia captura, tortura, trabalhador queimado vivo. Empreendimentos que, fora dali, eram bancos ou indústria, lá usavam trabalho escravo. Uma vez, diante da igreja, vi um carro passar. Um jovem pulou e, então, dois homens saíram e o capturaram. Achei que era brincadeira. Depois, compreendi que ele tentou fugir do trabalho escravo.
Como definir o trabalho escravo contemporâneo?
É aquele em que a pessoa não tem liberdade de vender sua força de trabalho, por coerção física ou moral ou pelo isolamento. Se você leva alguém a uma área em que o acesso é de avião, a pessoa quer sair e você não oferece avião, ou se você a traz de Alagoas para trabalhar em Campos, segura a documentação e não dá dinheiro para ela voltar e diz que ela está devendo, como ela sai?
Quem são os escravos brasileiros?
Vêm de fora do estado em que trabalham. O pretexto mais comum no Ocidente hoje é a dívida. A mão de obra mais acessível ao aliciamento é faminta, em estado de miserabilidade. O aliciamento chega como promessa de vida melhor.
Como o senhor teve ideia de criar o arquivo da Comissão Pastoral da Terra?
Era procurado por trabalhadores que revelavam seus dramas. A primeira vez, ouvia estarrecido. A segunda, já esquecia: de que fazenda? Que município? Comecei a anotar e organizar anotações sobre conflito e trabalho escravo em pastas.
Qual o volume do arquivo?
Há mais de 700 depoimentos de sobreviventes do trabalho escravo nos últimos 40 anos no Pará.
Como o senhor ajudava?
Podíamos fazer pouco. Se alguém fugia, tentávamos tirar a pessoa dali para não ser morta e salvar quem ficou na fazenda. Denunciávamos à antiga Delegacia Geral do Trabalho, que compactuava com fazendeiros. A polícia não fazia nada. A mídia nacional também não dava espaço. Quando a internacional começou a dar, pressionou o governo brasileiro. O Estado dizia que éramos comunistas, levantava suspeição sobre nossas denúncias. Para garantir a fé dos documentos, levávamos trabalhadores para fazer declaração em cartório ou polícia de outros locais. No Pará, a polícia estava no crime e não aceitaria a denúncia.
Que caso mais o chocou?
Talvez o da Fazenda Arizona, em Redenção. Capturavam trabalhador que fugia e batiam. Depois, capturavam e matavam. Não adiantou. Então, matavam moralmente: o pistoleiro botava arma na cabeça e obrigava o trabalhador a ter relação oral diante do grupo. Um fugiu e nós o levamos ao procurador-geral da República. Nem assim os envolvidos foram presos.
O senhor foi ameaçado?
Fui por muitos anos, por questões ligadas a conflitos fundiários. De 1979, quando foi morto Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, candidato a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia, até quando saí do Pará, a lista de trabalhadores assassinados chegou a 200 nomes, 95 fugidos do trabalho escravo. Em Rio Maria, para onde fui depois, sentar na cadeira do presidente do sindicato era concorrer à morte. João Canuto, primeiro presidente, foi morto, como outros.
O fim da ditadura reduziu a violência?
Até 1985, as mortes eram violentas e aleatórias. Com a Nova República, a situação ficou mais complexa. Foi criada a União Democrática Ruralista. Faziam leilões, e a contratação de pistoleiros passou a ser coletiva. Surgiram os chamados grupos de segurança. Em vez de contratar um pistoleiro, fazendeiros contratavam milícia privada. Era mais barato e eficaz, pois havia militares reformados na coordenação.
Como eram as ameaças?
Decidiam-se as mortes sem nenhum cuidado. Sabiam da impunidade. Um vendedor de sementes entrou na casa em que acontecia a reuni&a
tilde;o de fazendeiros que decidiu pela morte de João Canuto. O vendedor ouviu e lhe avisou. Volta e meia corria lista de 6, 7 pessoas e falavam: Estão dizendo que vão te matar.
O senhor andou armado?
Não, mas a partir de 1992, o estado me ofereceu segurança. Dois soldados se alternavam dia e noite. Condicionei a escolher meus seguranças. Já tinha acontecido o caso do Chico Mendes. De que adiantou estar com segurança? Ele poderia ser assassino. E eu sabia que a proteção não estava na arma nem na capacidade de usá-la. A proteção estava na farda que ele vestia. Muitos assassinos eram policiais. Atirar em colega era complicado.
Após tantas mortes, por que a da irmã Dorothy teve grande repercussão?
Conheci irmã Dorothy quando ela dava curso de Bíblia e trabalhei com ela. Não foi a primeira freira morta. Antes, teve a irmã Adelaide Molinari. Tinha havido a morte de Chico Mendes, depois do Expedito (sindicalista). Irmã Dorothy seria mais uma, mas era idosa, freira, americana e se preocupava com ecologia. Ela era odiada, pois defendia trabalhadores e o ambiente, tudo que ia contra os projetos dos proprietários.
Qual o papel das mulheres nos conflitos?
De coesão de grupo e coragem. Em Xinguara, os trabalhadores estavam ameaçados e cercados por pistoleiros. Ninguém conseguia entrar. Mas uma mulher da Assembleia de Deus, que usava cabelo comprido e levava uma Bíblia debaixo do braço, entrava com munição para os trabalhadores e nem a polícia desconfiava. Outra figura é dona Pureza, que saiu pelo mundo procurando o filho, levado para o trabalho escravo. Carregava Bíblia, máquina fotográfica e o que chamava de "caderno da encrenca", onde anotava e classificava as fazendas. Saía fotografando tudo e ninguém desconfiava.
O senhor foi um dos idealizadores do uso de artistas como mecanismo de proteção. Funciona?
Sim. Levar artistas para áreas onde as pessoas são ameaçadas é um aviso: "Atirar nesta pessoa é um tiro em mim. Estou sabendo e acompanhando". Camila Pitanga e Letícia Sabatella foram a Rondon do Pará. Protegeram dona Joelma, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais que é ameaçada de morte e cujo marido foi morto nesse cargo, andando com ela pela cidade.
Proteção oficial é difícil?
Acompanhei a história do padre Josimo. Tínhamos a mesma idade e trabalhávamos na mesma equipe. Josimo sobreviveu a atentado de cinco tiros. Eu e cinco bispos tivemos audiência de 40 minutos com o presidente José Sarney. Pedimos medidas de segurança. Dez dias depois, em 10 de maio de 1986, Josimo foi assassinado sem proteção.
Como está hoje a região?
Ainda há violência e assassinatos. Pela terra e hoje por outros fatores. O caso da irmã Henriqueta (jurada de morte há 2 anos) e de pelo menos dois bispos ameaçados está ligado a denúncias que fazem de pedofilia no Pará. Há denúncia também de tráfico humano. Não é mais igual aos anos 70 e 80. Antes, o estado promovia a violência. Depois de 85, a polícia só está nela clandestinamente. Salvo caso conhecido como a curva do S, quando policiais fardados assassinaram 19 pessoas do MST. Havia ordem para detê-las a qualquer custo. Para a polícia paraense, isso significa matar. Eles não estão habituados a fazer diferente.
E no trabalho escravo?
Foram criados o Grupo Móvel de Fiscalização e a "Lista Suja", que é o cadastro das empresas publicado pelo Ministério do Trabalho. Já houve condenações por uso de trabalho escravo. Aspecto negativo: nenhum fazendeiro está preso, e a reforma agrária não se deu.
Qual o maior desafio?
Proteção. É gravíssimo o fato de que 13 pessoas, entre elas três bispos e uma freira, estão ameaçadas, pediram proteção do governo e não receberam. Há outros ameaçados, como Frei Henri, que tem a proteção dos que me prestaram segurança. O estado não consegue dar um basta à história de ameaças. E ainda há trabalho escravo.
No Rio também?
Sim. No Rio, está no campo, na construção civil e na telefonia, em Petrópolis.