Miséria e reforma agrária

 23/05/2011

Está prestes a ser lançado pelo governo federal o programa Brasil Sem Miséria, que pretende beneficiar cerca de 16,3 milhões pessoas atadas à extrema pobreza, na mais completa exclusão social. O público-alvo é formado por famílias com renda mensal de até R$ 70 per capita. Trata-se de uma das prioridades anunciadas pela administração da presidenta Dilma Rousseff, com mandato para conduzir o Poder Executivo até 2014.

De antemão, sabe-se que mais de 7,5 milhões de pessoas que sobrevivem nessas condições estão no meio rural.  A probabilidade de alguém ter de enfrentar essa condição miséria é nada menos do que cinco vezes maior no campo do que na cidade. A cada 20 pessoas no meio urbano, uma pode ser considerada miserável. Quando se toma apenas o meio rural, a cada quatro indivíduos, um é miserável. Ou seja, parte substantiva do desafio de acabar com a miséria no Brasil está diretamente associada a ações que possam impedir a continuidade do ciclo perverso que não só exclui e vulnerabiliza a população pobre das áreas rurais, como também tende a aumentar a pressão e o inchaço nos conglomerados urbanos.

Algumas das linhas gerais do programa foram apresentadas em entrevista concedida pela ministra Tereza Campello, que comanda o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e pela secretária extraordinária de Erradicação da Extrema Pobreza o MDS, Ana Fonseca, ao jornal O Estado de S. Paulo (08/05/2011). Ao diário paulista, as autoridades apresentam as diferenças do programa com relação ao Bolsa Família e destacam a importância da articulação interministerial, como no caso do Ministério da Saúde (MS), que está sendo convocado para auxiliar na identificação, por intermédio do Programa Saúde da Família (PSF) e seus agentes comunitários, desse imenso contingente que continua na miséria.

Em determinada passagem da entrevista, é lançada a seguinte pergunta: “Como deve ser tratada a questão dos pobres da zona rural, dos assentamentos da reforma agrária?”

Responde Tereza Campello: “Teremos rotas diferentes para tratar da inclusão produtiva na cidade e no campo. A escolaridade no campo é baixíssima, mas, por outro lado, as pessoas têm seu meio de produção, que é a terra. Vamos potencializar esse meio, facilitando o acesso à informação e à assistência técnica. Estamos trabalhando com o apoio do Ministério da Agricultura, da Conab e, sobretudo, da Embrapa, que talvez seja a instituição mais importante do mundo nessa área. Posso adiantar que a Embrapa vai fornecer sementes de qualidade para essa população. Queremos que eles melhorem a produção com o que existe de melhor no mundo em termos de agricultura tropical. Não queremos fazer um programa rebaixado. Como são famílias com pouca terra, a meta é melhorar a produção, garantir a segurança alimentar e também obter excedentes para comercializar”. O grifo, que encobre a injustiça na distribuição de terras no Brasil, é nosso.

Junto com a entrevista, o veículo publicou um texto em formato de análise escrito pelo mesmo jornalista (Roldão Arruda) que ouviu a ministra e a secretária. Abaixo do título “Após tentativas frustradas sob Lula, um novo momento“, aparecem referências ao cenário atual mais favorável em termos de oportunidades e a promessas anteriores que se mostraram frustradas como a da qualificação profissional dos beneficiários do Bolsa Família, que veio acompanhada de uma campanha para atingir públicos mais marginalizados, como os moradores de rua. O destaque conferido pelas entrevistadas ao papel da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), ligada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), é visto com bons olhos pelo autor da análise, que vê nos assentamentos da reforma agrária “focos de extrema pobreza” que não conseguem se efetivar como “centros produtores de alimentos”. Como se o mero envolvimento de um único órgão pudesse ser de fato relevante para corrigir dívidas sociais históricas e como se as famílias assentadas fossem as únicas a penar com a miséria no campo.

Sobre a multidão sem-terra que se espalha por acampamentos improvisados e precários à espera de um pedaço de chão, nada foi dito. Apenas entre as famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), são mais de 100 mil nessa situação. Sobre os altíssimos índices de concentração fundiária e a permanência dos conflitos agrários – que agravam ainda mais o sofrimento dos pobres do campo -, nenhuma palavra sequer. Como se fosse possível combater a miséria no meio rural sem fazer reforma agrária.

Essa contradição vem ganhando cada vez maior evidência.  Na semana passada, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) realizou a mobilização anual do Grito da Terra 2011 e sublinhou a necessidade de “ações emergenciais de combate à pobreza rural”, especialmente a ampliação e qualificação dos assentamentos de reforma agrária. Paralelamente, o MDS e a Secretaria-Geral da Presidência da República convidaram representantes de movimentos sociais do campo e também de vários outros segmentos para que tomassem conhecimento de algumas das linhas gerais que estão sendo trabalhadas no Brasil Sem Miséria.

À Carta Maior, o ministro Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral) declarou que o governo ainda não tem uma posição firmada de metas de reforma agrária.

“É evidente que o governo vai continuar o processo. A presidenta Dilma tem clareza na cabeça de que é fundamental evitar a favelização rural nos assentamentos, então, ela encomendou ao MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) e à ministra Tereza (Campello, do Desenvolvimento Social), no programa de combate à miséria, medidas muito fortes nesse aspecto, para viabilizar os assentamentos já realizados e impedir que eles se tornem contrapropaganda da reforma agrária. O que não significa que não haverá aquisição de terra”, completou. Segundo ele, “há uma grande sensibilidade do governo para com os acampados“. E emenda: “Se a gente conseguisse estabelecer um acordo para atender essas famílias que estão embaixo da lona há tanto tempo – claro, com a devida análise e qualificação de cada família dessa -, seria eticamente uma coisa muito interessante para o governo“.

Em resposta às mobilizações camponesas, o governo anunciou, também na semana passada, a destinação de R$ 530 milhões para a aquisição de terras. Em 2011, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) confirmou ter desembolsado apenas R$ 600 mil em desapropriações. O crédito do Plano Safra 2011-2012 da agricultura familiar foi fixado em R$ 16 bilhões – valor idêntico ao do período anterior que atendeu às reivindicações da Contag. Foi confirmada ainda a criação de uma superintendência exclusiva para cuidar de habitação rural dentro da Caixa Econômica Federal.

Em tempos de contingenciamento, a autorização para os gastos não deixou de ser bem recebida pelos movimentos sociais. Todavia, José Batista Oliveira, que faz parte da coordenação do MST, declarou à Adital que os recursos previstos são insuficientes. Segundo ele, se forem contabilizadas as terras com processo já pronto para desapropriação no Incra, seria preciso algo em torno de R$ 800 milhões a R$ 1 bilhão. Procedimentos correm o risco de “caducar” caso não haja providências no curto prazo, adverte.

Além disso, paira ainda um nebuloso clima de indefinições quanto à ocupação de postos-chave do Incra. O novo presidente do órgão fundiário, Celso Lacerda, só foi escolhido no final de março. Permanece a expectativa para a definição dos nomes para as diversas diretorias e para as superintendências estaduais. Enquanto houver interrogações, as questões práticas estarão prejudicadas.

Quanto ao Plano Safra 2011-2012, José Batista acredita que os esforços para a disponibilização de crédito não podem negligenciar a busca de soluções para o endividamento dos assentados. Já existe ao menos o compromisso de que um estudo específico será feito para identificar os fatores influenciadores da inadimplência.

Mesmo que amaldiçoada e tida como ultrapassada por muita gente, a reforma agrária, especialmente em um país continental e abundante em recursos naturais como o Brasil, continua sendo apontada por organizações sociais populares do campo e da cidade como uma das políticas com maior potencial de inclusão social e combate às desigualdades. As perspectivas que podem se abrir a partir do acesso à terra serão detalhadas em matéria que será publicada em breve na Repórter Brasil sobre o Assentamento Nova Conquista, em Monsenhor Gil (PI). Mesmo com toda a sorte de dificuldades e de carências, trabalhadores que foram vítimas de trabalho escravo já ergueram moradia própria e estão conseguindo escapar da lógica de dependência das empreitadas rurais – muitas vezes em propriedades distantes e isoladas – graças ao cultivo coletivo de alimentos como mandioca, arroz, feijão e melancia.

Seria muito importante, portanto, que o Brasil Sem Miséria incorporasse metas efetivas para a ampliação, qualificação e consolidação de assentamentos. Se a miséria aflige inclusive parte dos que usufruem de um pequeno imóvel rural, é certamente mais dolorosa a penúria para quem continua acampado, sem nada muito além da esperança. É bastante inglória – para não dizer vã – a tarefa de negar que a lógica estrutural de multiplicação de  desassistidos dificilmente será interrompida sem o aprofundamento da reforma agrária.

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