Condenação milionária

 11/08/2011

Ainda era 2006 quando nove funcionárias da unidade frigorífica da Seara, em Forquilinha (SC), foram demitidas por “justa causa”. Como não suportavam mais a exposição ao frio na sala de cortes, deixaram momentaneamente o local durante a jornada de trabalho. Quando retornaram da pausa de 5min, acabaram conduzidas de imediato para “acertar as contas”.

A partir do ocorrido, o procurador do trabalho Jean Carlo Voltolini, que atuava então como membro do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Criciúma (SC), ingressou com uma ação civil pública, no ano seguinte, exigindo diversas melhorias nas condições de trabalho para os empregados e pedindo a condenação do empregador por danos morais coletivos.

Superados mais de quatro anos de andamento do processo – a extensa investigação incluiu várias audiências, diligências,  depoimentos e perícias técnicas -, a juíza Zelaide de Souza Philippi, da 4ª Vara de Trabalho de Criciúma (SC), condenou a Seara, que hoje faz parte do Grupo Marfrig, a pagar mais de R$ 16 milhões de indenização em decorrência de irregularidades relacionadas ao meio ambiente de trabalho e de litigância de má-fé.

Em trechos da decisão (leia a íntegra), a juíza tratou dos problemas identificados:

Veja-se algumas práticas lesivas da ré [Seara Alimentos S/A] apuradas na presente demanda coletiva, e reforçada por inúmeros casos individuais já julgados neste Foro [Vara de Trabalho] de Criciúma: a) até a propositura da Ação Civil Pública, mantinha os empregados da sala de cortes em temperaturas sabidamente inferiores a 10º C, sem conceder as pausas previstas no art. 253 da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]; b) impedia que seus empregados fossem ao banheiro fora dos horários preestabelecidos, compelindo-os, em caso de premente necessidade, a se justificarem na presença de todos os colegas, o que causava manifesto constrangimento; c) rejeitava atestados médicos de profissionais não ligados ao seu serviço de saúde sem nenhuma justificativa, sequer avaliando os exames realizados e o tratamento prescrito, o que, aliado ao descaso dos médicos da empresa, acarretava situação em que os empregados, mesmo com dores, eram compelidos a permanecer trabalhando; d) implantava de ritmo frenético de trabalho, em ambiente hostil e com tarefas repetitivas, altamente propensas ao desenvolvimento de doenças ocupacionais; e e) omitia a notificação de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais à Previdência Social, negando-se a emitir CAT [Comunicação de Acidente de Trabalho] e, em casos extremos, propondo aos empregados que comparecessem à empresa apenas para registrar o ponto“.

Emendou a magistrada: “Referidas práticas, a toda evidência, mostram-se incompatíveis com o atual padrão civilizatório das relações trabalhistas, não sendo concebível que, em pleno século XXI, vejam-se os empregados compelidos a trabalharem em circunstâncias de fazer inveja ao período da Revolução Industrial”.

A conduta de precarização do trabalho pela demandada, por óbvio, atinge não apenas ao trabalhador individualmente, mas à coletividade destes, que veem, impotentes, serem rasgadas todas as normas legais e constitucionais relacionadas à valorização do trabalho. Atinge, igualmente, a sociedade local, visto que a empresa, por seu imenso porte, constitui-se na maior empregadora da região, lançando a impressão, aos olhos da comunidade, de tratar-se de terra sem lei. Por fim, atinge também o já combalido sistema previdenciário brasileiro, às portas do qual vai bater a legião de trabalhadores incapacitados pelas técnicas brutais adotadas pela empresa ré“, acrescentou.

Para determinar a indenização por danos morais de R$ 14,61 milhões, a juíza tomou como referência o lucro líquido anual de R$ 146,1 milhões apresentado pelo Grupo Marfrig, dono da marca Seara, durante o exercício financeiro de 2010. Segundo ela, a cobrança de indenização correspondente a 10% do lucro líquido (relativo a 2010) do grupo econômico controlador como um todo é “compatível com o caráter pedagógico da medida sem, no entanto, comprometer a manutenção da atividade produtiva da ré“.

Com a decisão, a empresa foi obrigada ainda a: conceder intervalos de 20min para cada 1h40 trabalhados, sempre que a temperatura no local for inferior a 10º C; disponibilizar cadeiras e mesas suficientes no espaço destinado ao descanso durante as pausas; garantir a saída dos trabalhadores, a qualquer momento e sem necessidade de comunicado ao superior para o uso dos banheiros; abster-se de exigir a prestação de horas extras em determinados setores, aceitar atestados médicos de profissionais não ligados à empresa; bem como diagnosticar de forma precoce as doenças e os agravos à saúde do trabalhador, emitindo Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT).

E somados aos R$ 14,61 milhões, a magistrada determinou o desembolso de R$ 1,5 milhão adicionais por litigância de má-fé. O advogado da Seara, avaliou a juíza, utilizou inclusive “expressões irônicas, injuriosas e agressivas em relação aos demais litigantes, ao perito técnico designado nos autos e ao próprio Juízo, olvidando os deveres de lealdade, urbanidade e respeito que, como já referido, devem nortear a atuação das partes“.

Em vez de direcionar os recursos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), a juíza preferiu destinar a indenização a um projeto conjunto entre a Secretaria de Estado de Saúde de Santa Catarina e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) voltado à recuperação e reintegração das trabalhadoras e dos trabalhadores afetados do setor.

Consultada pelo Blog da Redação, a Seara Alimentos, do Grupo Marfrig, optou por “esclarecer e enfatizar” que a referida decisão “não é definitiva” e que “já protocolou competente recurso, respaldada por documentos e argumentos técnicos que demonstram a improcedência das denúncias frente à legislação em vigor“.

Sem deixar de frisar que “possui mais 50 anos de atuação no país e é uma das maiores empregadoras do Estado de Santa Catarina“, a empresa alegou que “cumpre rigorosamente todos os requisitos da legislação trabalhista em vigor e oferece aos seus funcionários condições de trabalho e benefícios superiores à média do setor“.

Segundo o procurador do trabalho Sandro Sardá, gerente do projeto nacional do MPT de atuação em frigoríficos, pesquisas apontam que a inadequação das condições de trabalho vem gerando o adoecimento de cerca de 20% do total de trabalhadores no setor.

As empresas não vêm concedendo pausas de recuperação térmica e de recuperação de fadiga, assim como não vem reduzindo o ritmo de trabalho, relatou o procurador Sandro. Segundo ele, é comum ver jornadas diárias estendidas por horas extras e empregados realizando de 90 a 120 movimentos por minuto, no frio e com posturas inadequadas , quando o limite aceitável é de cerca de 30 a 35 movimentos por minuto. “É lamentável que, mesmo após condenações exemplares e brilhantes como essa, as empresas continuem descumprindo a legislação trabalhista e afrontando a dignidade humana“.

*Com informações da assessoria de comunicação do MPT/SC

Mais sobre o trabalho nos frigoríficos no site do documentário “Carne, Osso

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