Marcas respondem por terceiros

 22/04/2012

Irregularidade trabalhista entre fornecedores causa problemas à empresa que os contratam

Reportagem de Felipe Gutierrez

De dois anos para cá, a 775, do ramo têxtil, promoveu mudanças em seu modelo de negócio. A empresa deixou de licenciar a marca para terceiros. A relação com as fábricas de costura que prestam serviços também foi alterada: a companhia agora vistoria oficinas fornecedoras e exige certificação de boas práticas.

As medidas foram adotadas depois que fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) flagraram duas funcionárias bolivianas sendo exploradas em condições análogas às da escravidão em uma oficina de costura terceirizada por uma fornecedora da 775.

Para vir para o Brasil, as trabalhadoras contraíram dívida que pagavam com parte do salário. A marca arcou com todas as multas e direitos trabalhistas, inclusive a viagem de volta para a Bolívia.

Dalton Ferraz, 24, diretor de marketing da 775, diz que o episódio foi traumático. "Além do prejuízo financeiro, também houve um [dano] de marketing e até um emocional." Ele não revela o valor das multas.

O caso é semelhante a um mais famoso, o da gigante espanhola Zara.

Na grande ou pequena empresa existe corresponsabilidade, diz Valdirene de Assis, coordenadora de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho de São Paulo. "O beneficiário último, ou seja, o dono da marca, não pode permitir que em sua cadeia produtiva trabalhem pessoas em condições análogas às da escravidão".

Contrato
Ou seja, quem responde por irregularidades trabalhistas de um fornecedor é a última empresa da cadeia. Se forem mais de dez autuações, a companhia pode entrar na lista "suja" (veja mais ao lado).

Um advogado que já defendeu três empresas cujas cadeias produtivas foram flagradas explorando trabalho escravo recomenda às marcas de roupa restringir o número de fornecedores -mesmo que isso torne a produção mais lenta.

Outra dica é explicitar, no contrato com as fábricas de costura, que os funcionários devem ser registrados. E vistoriar fornecedores.

Há outros setores, além do têxtil, onde ocorre trabalho degradante ou forçado. Em fevereiro, a construtora Racional foi autuada por ter contrato com uma empreiteira que explorava 11 trabalhadores em uma obra no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo. O hospital divulgou nota dizendo que irá rever parcerias "no intuito de garantir a inexistência de trabalho escravo".

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Trabalho análogo ao escravo existe há 18 anos

O trabalho em condições análogas às da escravidão foi reconhecido pelo Estado brasileiro em 1995. Hoje, são quatro os fatores para que se configure a situação. Uma delas é a condição degradante dos alojamentos ou do local onde se desenvolve a atividade.

Jornada exaustiva e retenção de documentos são outros determinantes. Há ainda a constituição de dívidas ilegais. Por exemplo, cobrar a viagem de um empregado que vem de outro Estado ou país pode ser ilegal, porque o trabalhador estará impedido de sair do emprego se estiver endividado com o patrão.

A lista "suja" do trabalho escravo foi criada em 2004 pelo Ministério do Trabalho e Emprego para expor os empresários flagrados explorando trabalhadores. A lista era alvo de uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) movida por uma entidade ruralista, mas foi considerada legal no último dia 9 de abril, pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

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Empresa "suja" não toma crédito
Quem explora mão de obra escrava arca com multas pesadas e restrição em bancos públicos

Em março, um funcionário da Rockenbach Tecnologia em Pré-Fabricados, empresa de construção de Campinas (SP), morreu manuseando um equipamento da fábrica. Na última semana, o dono, Neri Rockenbach, 50, foi preso por desrespeito à interdição judicial que proibia o estabelecimento de funcionar.

Rockenback, que pagou fiança de um salário mínimo (R$ 622) para responder ao processo em liberdade, diz que o funcionário que morreu trabalhava à noite, e foi imprudente ao usar o equipamento "sem autorização" e alcoolizado.

O argumento não convenceu o auditor do MPT (Ministério Público do Trabalho) João Batista Amâncio: "[O funcionário] morreu porque tomou um choque, e isso só aconteceu porque a instalação elétrica era precária".

A empresa foi interditada, mas em nova vistoria ao local, Amâncio verificou que um equipamento elétrico estava sendo usado.

"Foi só uma máquina. Contra uma ordem minha", afirma Rockenbach, que foi preso por isso.

Além dos problemas de segurança, o auditor afirma que havia condições análogas às da escravidão.

Rockenbach foi forçado a rescindir os 17 contratos de trabalho e a pagar os direitos e a viagem dos empregados de volta à Maranhãozinho (MA), de onde vieram.

Além dos custos de direitos trabalhistas, empresários flagrados explorando funcionários em condições análogas às da escravidão pagam multas administrativas.

Uma loja de roupas de São Paulo foi multada em R$ 150 mil por infrações como falta de registro profissional e problemas nas instalações na fábrica de um fornecedor, afirma o advogado da empresa, que não quis ser identificado. A marca também pagou R$ 150 mil a nove empregados que vieram do Paraguai.

Menores
A penalidade mais temida é entrar na lista "suja" do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego). Ela é atualizada semestralmente com empregadores que tiveram mais de dez autuações e, na defesa, não conseguiram contestar as provas da fiscalização.

A versão de dezembro de 2011 tem 294 nomes.

A Churrascaria Chimarrão, de Araraquara (SP), é um deles. A proprietária Marizete Silveira, e o marido, João Silveira, 55, exploravam uma mulher e uma garota de 13 anos que vieram de Vitória da Conquista (BA). João diz que ajudava as duas. "O descuido foi contratar essa menina. Menor pode matar e roubar, mas trabalhar não pode", diz ele. As multas somaram R$ 70 mil.

Mas não são esses valores que realmente doem no bolso dos empregadores. "O que faz a diferença para a empresa é a impossibilidade de tomar crédito de bancos públicos", explica Alexandre Lyra, chefe da divisão de fiscalização da erradicação do trabalho escravo do MTE.

O nome sai da lista após dois anos de regularização.

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Aumenta fiscalização em cidades
Nos centros urbanos, áreas
com mais problemas são as do ramo têxtil e da construção civil

O trabalho escravo nas áreas urbanas será mais fiscalizado, afirmam auditores do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego).

"Trata-se de um caminho sem volta. Antes, a busca [por essas irregularidades] era muito voltada para o campo, onde a situação foi reconhecida pela primeira vez, em 1995. Só depois de uma boa caminhada que paramos para pensar no assunto [da exploração em centros urbanos]", diz Alexandre Lyra, chefe da divisão de fiscalização da erradicação do trabalho escravo do MTE.

Nas cidades, as pequenas e médias empresas, cuja competitividade é menor, são mais suscetíveis a tentar economizar burlando a legislação do que as grandes, diz Luiz Alexandre Faria, auditor fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo. "É uma economia burra e suja."

"As ações são impessoais, então não importa o porte do negócio. Mas, quando pegamos uma empresa grande, a repercussão é maior", explica Lyra.

Epidemia
O Ministério Público do Trabalho da cidade de São Paulo foi o primeiro a treinar procuradores para entender e fiscalizar o trabalho análogo ao da escravidão em regiões urbanas.

Agora, equipes de Recife estão sendo orientadas em relação ao tema, diz Lyra. "No caso da cidade, é um fenômeno ligado à utilização de mão de obra de estrangeiros ou pessoas de outros Estados", afirma a procuradora Valdirene de Assis.

Segundo Faria, áreas "epidêmicas" da economia são a têxtil e a de construção civil. Também já foram encontrados casos em ramos como hotéis e restaurantes. Faria participou recentemente de um congresso em Turim, na Itália, onde explicou como funciona a fiscalização brasileira.

"Colegas da Ásia, da África e do Leste Europeu estão discutindo práticas inovadoras que o Brasil implantou", conta ele.

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Mercado também pune empresas que exploram

Além de multas, quem usa trabalho escravo na cadeia de produção também sofre sanções do mercado. Há ONGs que pressionam redes varejistas a não comprar de fornecedores que exploram trabalhadores. Recentemente, a ONG Repórter Brasil convenceu os supermercados Sonda a parar de oferecer a erva-mate da marca Regina, que está na lista "suja".

A Repórter Brasil é uma das responsáveis pelo Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil. Signatários que, segundo o presidente da ONG Leonardo Sakamoto, representam 25% do PIB brasileiro, não podem negociar com empregadores exploradores, ou serão excluídos.

"Empresas podem não saber que compram produtos com problemas. Esperamos que interrompam o processo ao serem informadas", diz Caio Magri, do Instituto Ethos, outra entidade responsável pelo Pacto.

Itaú Unibanco, HSBC e Santander não emprestam às empresas exploradoras.

Textos originalmente publicados no site da Folha de S. Paulo.

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