Rio de Janeiro – O cacique Damião Paridzané, líder dos índios xavantes de Marãiwatsédé, não consegue se acostumar com a poluição do ar no Rio de Janeiro; tem tido tonturas, dor de cabeça, fica enjoado. Carolina, a índia que é professora da aldeia, localizada no quente interior do Mato Grosso, não se acostuma com a temperatura da cidade. Ela reclama do frio e anda com um casaco a tiracolo. Os dois são parte da comitiva que viajou para acompanhar de perto a Conferência das Nações Unidas para Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. Ambos se sentem desconfortáveis em meio a tanto asfalto, mas, acompanhados dos demais integrantes da comitiva, têm marcado presença em diferentes atos, debates e negociações em curso na cidade com o objetivo de denunciar e chamar a atenção para a situação do povo Marãiwatsédé.
Cacique Damião durante a Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro. Fotos: Daniel Santini |
“Temos recebido apoio de todos que encontramos e isso nos dá força. Precisamos de uma solução urgente”, resume Damião. Assim como a Floresta Amazônica, devastada para dar lugar a plantações de soja, os xavantes do Mato Grosso encontram-se ameaçados pelo avanço dos fazendeiros e pela ocupação ilegal de suas terras. Em 18 de maio, obtiveram uma decisão favorável do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que determinou a retomada da desintrusão, ou seja, a retirada dos fazendeiros, grileiros e posseiros da área, e derrubou a suspensão de 12 meses do processo em vigor por decisão anterior da mesma corte.
Pressionado durante o debate “Marãiwatsédé – Terra de Esperança”, realizado na Cúpula dos Povos, Aluizio Azanha, representante da Fundação Nacional do Índio (Funai), se comprometeu a apresentar em breve um plano de desintrusão. A procuradora da República Marcia Brandão Zollinger, também presente no evento, lembrou que, pela decisão da Justiça, o Governo Federal tem obrigação de garantir a retirada dos invasores e afirmou que o Ministério Público Federal acompanhará a questão com atenção.
A invasão
A briga dos Marãiwatsédé é antiga e começou em 1966, durante a Ditadura Militar, quando os índios foram transportados a força por aviões da Força Aérea Brasileira para São Marcos, uma missão salesiana a 400 km, onde já se encontravam outros xavantes. Muitos morreram de sarampo devido ao contato com outros já infectados e a área em que viviam foi vendida, com o nome de Fazenda Suiá-Missu, à Agip, petrolífera estatal italiana.
A professora Carolina, também presente na Rio+20 |
Os xavantes se reorganizaram e, com apoio de organizações internacionais, conseguiram, durante a Eco 92, a promessa da Agip de devolver as terras ocupadas. A saída dos italianos, no entanto, veio acompanhada de uma invasão promovida por políticos e latifundiários locais, que visavam inviabilizar o retorno dos índios. Até leilão de terras indígenas aconteceu. Em 1998, a Terra Índigena Marãiwatesédé foi homologada com 165.241 hectares e em 2004 os xavantes retornaram.
Além da pressão e poder político dos latifundiários locais, a presença de camponeses em pequenas propriedades dentro da terra é outro obstáculo para a retomada integral das terras. “Sabemos que muitos pequenos foram usados pelos grandes para inviabilizar nosso retorno. Eles foram incentivados a ocupar as terras e, por isso, também são vítimas. Mas têm que sair porque sabiam que as terras eram nossas quando chegaram. O governo deve ajudá-los a buscar outro lugar, fazer reforma agrária”, explica Damião.
Se conseguirem retomar a floresta, os xavantes esperam poder recuperar as áreas florestais. “Temos como fazer isso com sementes e adubo natural, sem agrotóxico. Queremos voltar a viver como sempre vivemos”, diz a professora Carolina. “A mata limpa o ar, evita doenças, ajuda a gente a viver”, completa Damião, bastante sério. “Nossos antepassados vivem na mata e nós vivemos na mata. Depois de morrer, voltamos para a mata. É assim a vida”, diz, deixando claro que a questão da preservação é também espiritual para seu povo.
Economia verde
A possibilidade de criação de mecanismos financeiros para garantir a preservação da área dos Marãiwatsédés é vista com ceticismo por Ivar Busatto, da Operação Amazônia Nativa (Opan), organização que tem ajudado na luta dos xavantes. “É preciso entender as complexidades das relações sociais e entender que mudanças no sistema produtivo podem, na realidade, destruir a sociedade”, explica. Ele destaca a importância de cada um cumprir uma função na rede social estabelecida na comunidade e poder compartilhar com os demais o resultado do fruto do trabalho. Alterar tal modelo com a remuneração pela preservação da natureza, poderia desestabilizar toda organização interna.
Os xavantes não entendem e nem aceitam idéias como pagar para se manter uma árvore de pé. E insistem que querem manter o mesmo modo de vida com o qual sempre estiveram acostumados. “A vida pode perder o sentido se você alterar a função social. Comunidades indígenas que se beneficiam de royalties de petróleo no Canadá, por exemplo, foram desestruturadas, com altos níveis de alcoolismo e suicídio”, exemplifica Ivar. Sobre casos como o dos Suruís, de Rondônia, que têm feito parcerias para preservação e venda de madeira certificada, tendo em vista comércio de carbono, ele lembra que se trata de um caso bastante específico, com particularidades que precisam ser consideradas. A presença de madeireiras na região já dura décadas e os Suruís durante muitos anos foram cooptados para ajudar na extração ilegal de madeira. “É um caso excepcional, via de regra, mecanismos de compensação ou economia verde não têm beneficiado as comunidades indígenas”, ressalta.
Além dos Marãiwatesédé e outros xavantes, uma das principais etnias indígenas do Brasil, diversos outros povos indígenas do Brasil e de outros países da América Latina marcaram presença na Cúpula dos Povos.
Leia mais sobre os xavantes no blog Marãiwatsédé.
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