Trabalho escravo

De La Paz para São Paulo, a história de exploração de uma vítima do tráfico de pessoas

Boliviano resgatado conta à Repórter Brasil em detalhes como, frente a dificuldades financeiras, foi parar em uma oficina de costura clandestina no Brasil
Por Bianca Pyl
 27/07/2012
Oficina clandestina em que ele trabalhou. (SRTE/SP)

Ronaldo* trabalha desde os 14 anos. Com esta idade, ele fugiu de casa e da violência do padrasto. Desde então, mantém pouco contato com os quatro irmãos e o restante da família. “Fui embora com a roupa do corpo, sem documento, sem roupa, sem nada”.

No seu último emprego, em La Paz, na Bolívia, ele recebia como garçom em uma pensão, onde vivia, pouco mais de R$ 130 por mês (ou 460 bolivianos, a moeda local). Foi lá que recebeu um convite para trabalhar no Brasil.

Ele foi um dos trabalhadores libertados de condições análogas às de escravos na última fiscalização realizada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP). Ele costurava para a marca Talita Kume.

Ronaldo foi libertado, mas ao contrário de todos os outros costureiros, não compareceu ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no dia seguinte ao resgate, fato que intrigou a equipe de fiscalização. Ele se apresentou somente quando a empresa autuada assinou a Carteira de Trabalho e da Previdência Social (CTPS) e se dispôs a pagar as verbas rescisórias, uma semana depois. Na hora de preencher as Guias do Seguro Desemprego, ao ser questionado sobre sua idade, ele abriu o jogo: “não tenho documentos”. Foi assim que começou a contar sua história, um relato da exploração que sofreu como vítima de tráfico de pessoas, narrativa comum entre diversos de seus compatriotas que hoje vivem em São Paulo ou outras metrópoles da América Latina.

Ronaldo recebeu a Carteira de Trabalho após o resgate, único documento que possui (Foto: BP)

Tráfico de pessoas
O depoimento em que Ronaldo narrou sua história foi acompanhado pela defensora pública da União, Daniela Scacchetti, pelo auditor fiscal do Trabalho, Luís Alexandre Faria, e pela representante da Secretaria da Justiça de São Paulo, Adriana Mazagão. Na sede do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, ele contou que o homem que o trouxe ao Brasil que o orientou a utilizar documento de outra pessoa para entrar no país. O coiote, contou, ofereceu trabalho em uma segunda-feira de janeiro de 2011 e na quinta-feira da mesma semana o levou ao Brasil.

Atraido por promessas de ótimo trabalho e boas condições de moradia, o trabalhador viu-se com duas opções logo ao chegar: pagar pela viagem ou trabalhar durante um ano para o coiote sem receber nada e com a condição de não procurar emprego em outro local. Sem nenhum dinheiro, acabou se submetendo às restrições impostas. As condições flagradas pela fiscalização no último dia 19 de junho não são muito diferentes das que Ronaldo, com 18 anos recém completos, viveu em diferentes oficinas de costura durante um ano e seis meses, período em que está no Brasil.

A possibilidade de conseguir trabalho em outro país é uma chance de mudar de vida e, quem proporciona isso, mesmo que de forma ilegal, é visto com gratidão. Muitos dos trabalhadores tornam-se fiéis aos donos de oficinas que financiam a entrada no Brasil. “É um circuito de dominação e exploração econômica que se baseia na relação ampliada entre imigração irregular, moradia e trabalho. A começar pelo endividamento com o custeio da viagem que garante a permanência do imigrante enquanto a dívida não for quitada”, analisa Carlos Freire da Silva, doutorando em Sociologia da Universidade de São Paulo, em artigo publicado pela revista Travessia número 63.

Rota 
Ronaldo foi de ônibus de La Paz para CochaBamba, de lá seguiu para Santa Cruz de La Sierra, passou por Puerto Quijaro, de onde seguiu para Corumbá, no Mato Grosso Sul, e finalmente para São Paulo. Quando estava na fila da fronteira entre Brasil e Bolívia, o coiote entregou para Ronaldo um documento, sem dizer nada. “Eu não entendi, não sabia como ia conseguir passar, só mostrei para polícia e passei”. Assim que cruzou a fronteira, o documento foi tirado de Ronaldo. Trata-se da identidade de outra pessoa.

A rota percorrida por Ronaldo é muito usada pelos bolivianos que chegam a São Paulo para trabalhar com costura

A condição de imigrante sem documento é um elemento determinante nesta relação entre patrão e empregado – relação de dependência e coerção. O trabalhador torna-se vulnerável à exploração. O medo de ser deportado ou até mesmo preso pelas autoridades brasileiras é constante e usado pelo empregador como forma de coerção. Contudo, a falta de informação é que mantém esta relação, já que o Brasil possui Acordo de Livre Residência com o Mercosul, decretos 6.964 e 6.975 de 2009.

De acordo com Marina Novaes, advogada do Centro de Apoio ao Migrante (Cami), o imigrante consegue um registro de estrangeiro provisório, válido por dois anos, caso não tenha cometido nenhum crime no país de origem ou destino. “Estar sem documento em outro país é considerado uma infração administrativa e não um crime, nenhum ser humano é ilegal”, explica Marina. Além disso, a Resolução Normativa nº 93, do Conselho Nacional de Imigração (Cnig), vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), determina a concessão de visto permanente ou permanência no Brasil a estrangeiro considerado vítima do tráfico de pessoas.

Ameaça de morte
Ronaldo entende bem português, mas não fala fluentemente. Ele contou em detalhes seus primeiros dias aqui no Brasil, sempre gesticulando muito e repetindo: “agora eu vou contar tudo, eu sei que vai ser melhor”. O coiote que o trouxe para o Brasil tinha uma oficina na Vila Guilherme, Zona Norte de São Paulo. No local, ele aprendeu a costurar, ensinado pelo próprio dono da oficina. Ronaldo costurava retalhos o dia todo, das 7 às 23 horas e, segundo relatou, não saia da oficina para nada. Os dias foram passando e o dono da oficina começou a ficar mais exigente e a cobrar mais velocidade. “Ele ficou mais rígido”, resumiu.

Duas semanas depois de chegar a São Paulo, Ronaldo teve uma dor de dente e conseguiu emprestado com uma costureira R$ 3 para comprar remédio. Ele saiu em busca de uma farmácia, mas acabou se perdendo. “Fiquei das 7 da manhã até as 2 da tarde rodando, rodando e não achei o caminho. Não sabia pedir ajuda”. Ronaldo pediu ajuda para o primeiro boliviano que encontrou na rua. Por sorte, o compatriota também estava procurando trabalho. “Ele não estava recebendo nada pelo trabalho e decidiu ir embora. Foi a minha sorte. Saímos em busca de uma oficina para costurar”.

Os dois encontraram trabalho em uma oficina em Guarulhos, mas a situação era pior. A dona da oficina exigia muito e ele trabalhava até de madrugada cortando tecidos para fazer edredom. “Eu ficava doente por causa do pó do tecido”, relatou. O local era mais úmido e ele sentia muitas dores nas costas, conta exibindo a nuca e a lombar. “A comida também era muito ruim”. O pagamento pelo trabalho não era por produção, ele ganhava de R$ 250 a R$ 450 por mês, mesmo tendo trabalhado até de madrugada todos os dias. Ronaldo permaneceu trabalhando na oficina do final de janeiro até maio, quando não agüentou mais a situação e saiu. Ele conseguiu outro trabalho, desta vez, próximo ao metrô Armênia, linha 1-azul do metrô de São Paulo. Mas a situação era mais grave: os trabalhadores recebiam ameaças o tempo todo no local. “O dono ameaçava de bater na gente e não pagava”.

Depois de trabalhar um mês na oficina, ele decidiu cobrar pelo trabalho e foi ameaçado de morte.

Reencontro com o coiote
Mais uma vez Ronaldo viu-se sem saída. “Eu decidi ir na Feira da Kantuta, conseguir outro trabalho”, disse, olhando fixo para quem o ouvia. Mas em vez de um emprego, Ronaldo acabou reencontrando o coiote que o trouxe para o Brasil e que cobrou a dívida de R$ 450 da viagem. “Eu não tinha dinheiro, então consegui outro emprego e pedi para meu novo patrão pagar esta dívida para mim”, assim mais uma vez o jovem viu-se preso a uma dívida que o obrigaria a trabalhar sem receber nada.

Desta vez o patrão tornou-se um amigo. “Ele era muito bom comigo, só saí de lá porque não tinha mais trabalho”. Ronaldo ficou nove meses no local, mas teve que sair, pois não havia mais encomendas. Em outra oficina permaneceu por um mês e recebeu R$ 100 pelo serviço. Foi então que acabou na oficina onde foi libertado de condições análogas às de escravos no último dia 19 de junho.

Depois de conceder este depoimento, ele retornou para casa onde funcionava a oficina em que foi resgatado. De lá, foi embora sem dizer para onde ia. Não registrou nenhum Boletim de Ocorrência para que os crimes denunciados (tráfico de migrantes e trabalho análogo ao de escravos) fossem apurados. Desta vez pelo menos, Ronaldo saiu com um documento, a carteira de trabalho provisória, além das verbas rescisórias.

Ele declarou que não pretende voltar para a Bolívia.

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*Nome fictício para proteger a identidade da vítima

**Matéria atualizada para corrigir informações na tarde desta quarta-feira, 31 de julho. Corumbá fica em Mato Grosso do Sul e não no Mato Grosso, como colocado anteriormente.

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