Tainá tem boas recordações dos quatro dias de viagem que fez ao lado da mãe no trajeto de La Paz, capital da Bolívia, até São Paulo. Pulando de ônibus em ônibus, entre rodoviárias e longas filas nos guichês de imigração, as duas mal conseguiam dormir de tanta saudade para matar. “Eu fui contando tudo que não tinha falado pelo telefone naqueles anos. A gente ria e chorava junto”.
O reencontro era esperado. Tainá viveu dos 7 aos 17 longe da mãe, período em que morou e trabalhou na casa da madrinha na capital boliviana. A mãe mora no Brasil desde que Tainá tinha 3 anos. No começo, ela até tentou conciliar o trabalho em oficina de costura com a presença da filha pequena. Tainá morou em São Paulo dos 3 aos 7 anos e lembra passar tardes amarrada num canto, junto com o cachorro, para que não pudesse se aproximar das máquinas. Por situações como essa, sua mãe julgara que era melhor viverem separadas.
O retorno ao Brasil vinha cheio de promessas: morar com a família, voltar a estudar, ter um bom emprego.
Alguns anos depois de sua chegada, porém, Tainá se viu no mesmo lugar da mãe quando tiveram que se separar. Em uma oficina de costura abafada, obrigada a trabalhar das 7 da manhã às 10 da noite enquanto a filha de 2 anos circulava entre as máquinas. Tainá estava grávida do namorado, com quem morava no mesmo local de trabalho.
Tainá, grávida de 8 mesesNo fim da jornada, pegava fila para tomar banho no único banheiro disponível para os 17 bolivianos que trabalhavam e moravam no local. E, finalmente, deitava no quarto sem janelas, onde a cama disputava espaço com a pia e o fogão. Ao fim do mês, não chegava perto do pagamento, que ficava com o namorado, que era primo do dono da oficina.
Também boliviano, para o dono não era difícil controlar os trabalhadores. A maioria era recém chegada no Brasil, não falava português e ainda devia o valor da viagem a ele. Tainá ouviu o dia em que um grupo pediu licença para tirar os documentos brasileiros e o dono disse que teriam de pagar multa, pois eram ilegais. Uma mentira, já que a Bolívia pertence ao Mercosul e os bolivianos podem circular livremente no Brasil. Para trabalhar, basta um registro no consulado.
Eles estavam no mesmo lugar, mas Tainá tinha condições diferentes. Ela já falava português e sabia circular pela cidade. Quando pedia para ir ao médico, levava bronca e recebia ameaças, mas não desistia. Quando insistiu em sair para fazer o pré-natal, o marido lhe empurrou com força e a fez cair. Levantou-se e, no dia seguinte, argumentou de novo.
Quando finalmente conseguiu sair para uma consulta, desabafou com a enfermeira. Ao falar, quebrou o abismo que separa a comunidade boliviana dos direitos e obrigações trabalhistas no Brasil. Tainá contou sobre a exaustão diária, as ameaças e as agressões. A Unidade Básica de Saúde entrou em contato com o Centro de Defesa e Convivência da Mulher Mariás, que acionou o Disque 100. Semanas depois, recebeu uma ligação no celular: “prepare-se, a equipe de fiscalização do trabalho está chegando”.
“De repente entrou um monte de gente, ficamos muito assustados”. Quando ouviram os fiscais do trabalho falando em espanhol, os bolivianos responsáveis pela oficina passaram a dar ordens em Aimará, língua de origem indígena falada nos países andinos. “Mandavam a gente ficar quieto e mentir que o trabalho era só até às 19h”, lembra Tainá. Uma parente do dono percebeu que ela fizera a denúncia e lhe ameaçou na frente dos fiscais, que não entenderam suas palavras: “você vai pagar e não vai ficar barato”.
A ação concluiu que as condições eram similares ao trabalho escravo e a oficina foi interditada. Como sofreu agressão física, Tainá foi levada a um abrigo para mulheres. Os outros bolivianos ficaram no local e o mais provável é que, a essa altura, estejam de volta a oficinas similares.
A ação ocorreu em janeiro e foi uma de muitas promovidas pela Superintendência regional do Trabalho e Emprego de São Paulo. Estima-se que existam ao menos 8 mil oficinas assim na grande São Paulo, onde trabalham cerca de 100 mil bolivianos, paraguaios e outros sul-americanos.
Essa rede sustenta marcas famosas, que possivelmente estão na etiqueta da roupa que você veste. As fiscalizações já flagraram trabalho escravo em oficinas que forneciam para a cadeia produtiva da Zara, Pernambucanas, Marisa, C&A , Gregory , Collins, 775 além da empresa GEP, formada pelas marcas Cori, Luigi Bertolli e Emme, e que pertence ao grupo que representa a grife internacional GAP no Brasil.
Tudo que Tainá quer, agora, é se livrar dessa cadeia. É como se ela estivesse percorrendo uma segunda viagem ao Brasil, dessa vez para um país diferente. No abrigo onde aguarda o nascimento do segundo filho, ela estuda e faz acompanhamento psicológico. Terá tempo para planejar como reconstruir a vida com os 18 mil reais que recebeu como indenização trabalhista, mais o auxílio desemprego e maternidade. Por enquanto, o plano é alugar uma casa e procurar trabalho como assistente de cozinha. “No começo, pensava em voltar pra casa da minha mãe, voltar a costurar, mas acho que estava muito dependente daquela vida”, Tainá reflete, e conclui: “preciso encontrar o meu lugar”.
*o nome foi trocado para proteger sua identidade. “Tainá” foi o nome escolhido pela entrevistada.
Texto originalmente publicado no blog Reportagem 3×4 do Yahoo Notícias!.