Irritada com os frequentes protestos envolvendo os processos de demarcação de terras, presidente suspende os procedimentos conduzidos pela fundação, encomenda novos estudos e prepara mudanças na cúpula do órgão
Uma semana depois de a presidente Dilma Rousseff ser vaiada por produtores rurais em Campo Grande, durante manifestação contra a demarcação de terras indígenas, o Palácio do Planalto decidiu intervir nos trabalhos conduzidos pela cúpula da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável por definir as reservas. O primeiro movimento veio ontem, sob a forma da suspensão de processos de delimitação de terrenos no Paraná, estado que enfrenta tensão crescente entre ruralistas e índios por conta da disputa por territórios.
Por determinação de Dilma, a Casa Civil encomendou à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e aos ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário a elaboração de relatórios sobre os estudos conduzidos pela Funai para embasar a demarcação de reservas indígenas. O primeiro a ser apresentado veio da Embrapa, que divergiu da análise da Funai sobre 15 áreas localizadas no oeste do Paraná, que, segundo a fundação, deveriam ser transformadas em reservas. A avaliação da Embrapa, contudo, relatou que a presença de índios nesses territórios é inexistente ou recente demais para justificar a delimitação de territórios indígenas.
Outros quatro estados — Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul — aguardam a conclusão de relatórios paralelos aos documentos já elaborados pela Funai. Em caso de discordância, a Casa Civil deve repetir a paralisação das demarcações. Segundo dados da fundação, existem 123 áreas em estudo para serem tornadas reservas indígenas no país. Esses territórios compreendem hoje uma superfície de 66 mil hectares quadrados espalhados pelo Brasil.
A intervenção do Planalto na Funai deve ir mais longe. Nos bastidores, o governo prepara uma mudança em toda a cúpula do órgão, a começar pela substituição da presidente, Marta Azevedo. O governo ainda estuda reduzir os poderes da fundação nos processos de demarcação de terras indígenas. Um decreto com modificações nesse sentido está em processo de elaboração no Ministério da Justiça.
A expectativa é que a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, anuncie essas medidas hoje, em audiência na Comissão de Agricultura da Câmara. Cobrada por entidades ligadas ao agronegócio desde o início do ano por mudanças na delimitação das terras indígenas, Dilma passou a ver com preocupação os conflitos entre produtores e índios, sobretudo pelo provável impacto que as disputas podem ter na corrida presidencial de 2014, servindo de munição para adversários. A convocação da ministra foi outro fator que irritou a presidente, que preferia deixar Gleisi concentrada na negociação da MP dos Portos na Casa.
A postura do governo deve acirrar os ânimos entre ruralistas e índios. “Um dos problemas, hoje, é que o produtor rural não tem como fazer qualquer contestação a um laudo antropológico da Funai”, critica o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), defensor de mudanças no processo de definição de terras.
Manobra
Já o secretário executivo do Centro Indigenista Missionário (Cimi), Cléber Buzatto, vê na suspensão das demarcações uma manobra política. Segundo ele, há uma tentativa de se criar ambiente favorável à aprovação, pelo Congresso, da proposta de emenda à Constituição (PEC) que transfere a prerrogativa de delimitar essas terras para o Legislativo. A PEC ocasionou uma cena inusitada. No mês passado, centenas de índios de diversas etnias invadiram o plenário da Câmara em protesto contra a votação da proposta. Eles conseguiram que a discussão da PEC fosse adiada para o segundo semestre (ver memória). Dois dias depois, os manifestantes também protestaram em frente ao Palácio do Planalto.
“O mais estranho é que essa movimentação está acontecendo como se a Funai estivesse acelerando o processo de demarcação de terras indígenas, mas não é isso que está acontecendo, ao contrário”, argumenta Buzatto. Nos cálculos do Cimi, a média de homologações de terras indígenas caiu de 10 por ano, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, para cinco por ano, na administração Dilma. Buzatto ainda critica o envolvimento da Embrapa na manobra do governo: “A Embrapa não tem qualquer legitimidade para se manifestar acerca de procedimentos de demarcação de terras indígenas. Não há base legal que justifique a participação nesse processo”.
O diretor do Instituto Socioambiental, Raul do Valle, também questiona a competência da Embrapa para elaborar um estudo técnico sobre a definição dos limites de territórios indígenas. “Se, de fato, houve uma ordem do Palácio do Planalto para paralisar as demarcações no Paraná com base nos estudos da Embrapa, é algo tanto ilegal quanto absurdo do ponto de vista técnico”, critica. Segundo o especialista, a ausência de índios em determinada região não é motivo para que se deixem de fazer estudos. “O fato de hoje não ter nenhum índio em uma área não afasta o fato de que ali pode ser uma terra indígena. Se os índios tivessem a terra, talvez nem estivessem pedindo a demarcação.”
“A Embrapa não tem qualquer legitimidade para se manifestar acerca de procedimentos de demarcação de terras indígenas. Não há base legal que justifique a participação nesse processo”
Cléber Buzatto, secretário executivo do Centro Indigenista Missionário
Memória
Plenário invadido
Em 16 de abril, centenas de índios ocuparam o Congresso em protesto contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que tira do governo — sobretudo da Fundação Nacional do Índio (Funai) — a prerrogativa de demarcar terras indígenas, transferindo esse poder para o Legislativo.
A situação ficou tensa à noite, quando os índios furaram o bloqueio dos seguranças da Câmara e invadiram o plenário da Casa, provocando correria entre os deputados. Para evitar o acirramento dos ânimos, a Polícia Legislativa foi instruída a deixar os índios no local. O líder do PV, Sarney Filho (MA), chegou a ser incumbido de negociar a saída, mas não obteve sucesso. A sessão do plenário foi suspensa. Possível candidata ao Palácio do Planalto em 2014, a ex-senadora Marina Silva estava presente na hora da invasão.
Aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara em março do ano passado, a PEC estava pronta para ser analisada por uma comissão especial, criada na semana anterior à manifestação. Depois de se reunir com 12 representantes indígenas, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), anunciou a suspensão, por 45 dias, da escolha dos integrantes do colegiado, e os manifestantes aceitaram deixar o plenário. Dois dias depois, os índios cercaram o Palácio do Planalto. Eles cobravam o arquivamento da PEC e pediam audiência com Dilma Rousseff. A presidente, entretanto, não estava em Brasília. (KC)
Petição internacional
O Cimi e a organização Survival International assinaram petição enviada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em caráter de urgência, na qual acusa o Estado brasileiro de negligência e omissão em relação à situação dos índios Awá, no Maranhão. Segundo o ducumento, a sobrevivência dessa população está ameaçada por grupos de madeireiros, fazendeiros e colonos que ocupam ilegalmente as terras indígenas.
Texto originalmente publicado no jornal Correio Brasiliense