Vivendo em condições insalubres, eles relatam a tortuosa viagem do Haiti ao Brasil, passando por extorsões, prisões e roubos de dinheiro e documentos, até desembarcarem num campo superlotado no Acre
Das 20 entrevistas colhidas pela Conectas ao longo de três dias no campo de migrantes de Brasiléia (AC), emergem relatos de gratidão, esperança e incerteza. Ainda temerosos, muitos preferem não falar, nem se deixam fotografar. Outros, repartem histórias de sofrimento na longa rota que separa o Haiti e o Brasil. Em todos os casos, é evidente a dificuldade dos haitianos para conseguir o chamado “visto humanitário” em Porto Príncipe – apresentado pelo governo como remédio para um problema migratório gravíssimo, com perfil de crise humanitária.
Leia a primeira publicação da série sobre os haitianos em Brasiléia.
Muitos dizem que a informação sobre os procedimentos para a concessão do visto na Embaixada não é clara. Isso cria ambiente favorável para a ação de atravessadores, que cobram taxas e prometem facilidades extraoficiais que nunca vêm. Assim, centenas de haitianos preferem lançar-se numa travessia incerta em vez de usar o canal formal criado pelo governo brasileiro mas que se mostra de difícil acesso. Na rota até aqui, eles estão sujeitos a extorsões cometidas por funcionários corruptos e assaltos de bens e documentos, além de toda sorte de abusos e incertezas.
‘No campo, é como estar de volta ao Haiti’
Tudo é desilusão para Osanto Georges, de 19 anos. Pelo “sonho brasileiro”, quase um “El Dorado” para os jovens haitianos de sua idade, como ele mesmo expõe, Osanto deixou para trás seu estágio e o curso superior em tecnologias da informação. Seu discurso diverge bastante dos demais: sobre os roubos, as propinas, os desmandos das autoridades e coiotes que encontrou ao longo do caminho, apenas resignação, como se tudo fosse parte do roteiro; para os brasileiros, especialmente aqueles que coordenam o abrigo, críticas implacáveis. “A própria administração não sabe quem chega e quem sai. Essas condições não são normais, não são aceitáveis. Está tudo uma desordem”, desabafa. “Posso dizer que o que vivemos aqui em Brasiléia não é para um ser humano. Eles nos colocaram de novo no Haiti que tínhamos logo após o terremoto: a mesma sujeira, o mesmo tipo de abrigo, de água, de comida. Isso me machuca e me apavora. Eu sabia que o caminho até aqui seria duro, porque você está lidando com criminosos, mas, ao chegar aqui no Brasil, estar num lugar desses é inacreditável.”
Mulheres sofrem mais
“Se soubéssemos que a situação aqui seria essa, não teríamos vindo.” A vendedora Charles Marie Joseph, de 31 anos, não esconde a frustração de ter deixado a República Dominicana e seus dois filhos para viver em um abrigo em Brasiléia. “Nós achávamos que as coisas melhorariam quando chegássemos. Não estamos acostumadas a isso”, diz. “Se deus quiser, vou embora amanhã.” Charles Marie queixa-se, principalmente, da falta de separação entre homens e mulheres no abrigo. Há algumas que vieram acompanhadas de seus maridos, mas outras, como ela, têm de lidar sozinhas com a falta de privacidade. O sentimento é comum: o relato de Charles Marie foi interrompido por outra mulher, que entrou na conversa para reforçar seu argumento. “Às vezes é difícil trocar de roupa, colocar uma calça. Você tem de se cobrir embaixo dos lençóis. E se você for ao chuveiro, suas roupas ficarão sujas antes mesmo de colocá-las”, diz a amiga indignada.
Com criança. E sem mais nada.
“Se eu soubesse que isso aqui era assim, teria ficado no Haiti. Tentaria de algum jeito conseguir visto para minha esposa e meu filho. Não teríamos vindo para esse campo. Não estamos acostumados a coisas como essa”, diz um dos haitianos, enquanto sua esposa cuida do filho, a poucos passos de distância. Eles preferem não ser identificados, especialmente por estarem com uma criança sem documentos. “Na estrada, em Lima, roubaram minha mala com todos os documentos dentro. Nós estávamos sentados, comendo. Roubaram a certidão de nascimento do meu filho, além de minha própria cédula de nascimento e de minha certidão de casamento. Só consegui continuar a viagem porque ainda contava com meu passaporte. Estou muito preocupado porque não tenho como recuperar isso e não sei o que fazer quando me pedirem estes documentos aqui no Brasil”, diz.
Prisões, roubos e subornos
Jean-Pierre tentou duas vezes. Na primeira, foi mandado do Equador de volta para São Domingos, onde foi preso, dormiu no chão frio da cela por sete dias e teve de voltar ao ponto de partida: Gonaives, na região central do Haiti. Apenas um mês separou as duas empreitadas – a segunda, bem sucedida. Tudo o que tinha foi vendido para financiar a longa e cara travessia, que custou quase US$ 5 mil. “Tudo nos foi tirado no Peru e em São Domingos. No Brasil, não levaram nada”, diz. Isso explica, em parte, a gratidão de Jean-Pierre. “Apesar de não estarmos dormindo ou comendo bem, eu agradeço e cumprimento os brasileiros pela maneira como eles nos receberam. Nós viemos ilegalmente e mesmo assim eles nos toleram. Não quero que se cansem de nós.” No Haiti, Jean-Pierre trabalhava na construção civil e estudou até a 9a série. Seu sonho de vir para o Brasil foi alimentado pelos relatos de amigos. “Eu via que eles estavam indo bem. Pensei que, se conseguisse chegar a São Paulo também teria uma vida melhor.” Foram esses mesmos relatos que o fizeram desistir de conseguir um visto na Embaixada Brasileira em Porto Príncipe e optar por um caminho “tortuoso”. Alguns conhecidos de Jean-Pierre esperaram até oito meses por uma resposta, sempre negativa, do consulado-geral brasileiro. “Essa atitude me fez acreditar que não havia nada sério sendo feito.”
Alto custo, alto risco
Foram 14 dias de viagem para a vendedora Michelle Brenelus, de 26 anos, que veio na companhia de outras cinco mulheres. Em Gonaives ela deixou dois filhos, uma menina e um menino, que devem começar as aulas em outubro. “Ainda não consegui mandar um centavo”, preocupa-se. Talvez por isso ela mantenha anotado na memória cada moeda que lhe foi subtraída ao longo do percurso: US$ 2 mil para atravessadores que organizaram a viagem, US$ 500 para policiais peruanos, US$ 450 dólares em uma agência em Quito, US$ 200 em Lima, US$ 250 em Cuzco e US$ 120 em Maldonado. A família mandou US$ 130 quando ela chegou ao Brasil. “Esse é o único dinheiro que não roubaram de mim”, diz. Ela ainda não sabe se o investimento valeu a pena, mas está certa de que era a única saída possível. “Não havia nenhum outro lugar para onde eu pudesse ir. Tentei na embaixada americana, mas eles rejeitaram o meu pedido em dezembro do ano passado. Todos estavam vindo para o Brasil por esse caminho, então eu vim também.” Michelle já conseguiu tirar o CPF e a Carteira de Trabalho e espera logo conseguir um emprego em algum lugar longe de Brasiléia. “Nossa viagem não acabou aqui. Ainda temos caminho a seguir.”
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Texto retirado da página da organização não governamental Conectas Direitos Humanos.