São Roque (SP) — Começou com a extração do pau-brasil, destinado a sustentar a demanda pela madeira na Europa; com a descoberta de ouro e diamantes, o processo se intensificou. Associada a modelos econômicos predatórios geralmente desempenhados para suprir demandas em curto prazo, a devastação da Mata Atlântica seguiu ao ponto de, em mais de 500 anos, reduzir uma extensão de 1.315.460 km² espalhados por 17 Estados a meros 164.432,5 km² — 12,5% desse total.
Entre as partes remanescentes há um tanto de vegetação que se concentra entre São Roque e Mairinque, cidades no interior de São Paulo (SP), com porções distribuídas ao longo de quatro áreas residenciais, hoje ameaçadas pela construção de um aeroporto privado, de carona no desenvolvimentismo nacional.
Junto ao aeroporto, mais duas construções, um conjunto de prédios comerciais e um grande galpão de outlet de compras, podem cercar — e danificar — o tanto que resta de Mata Atlântica na região. Os três empreendimentos fazem parte de planos da construtora JHSF Incorporações S/A, para, segundo argumenta, desafogar o sistema aeroviário brasileiro. Serão construídos em propriedade próxima ao quilômetro 60 da rodovia Castelo Branco, que liga a capital paulista à porção oeste do Estado. Porém, a justificativa, a priori em sintonia com as demandas de certa agenda de desenvolvimento nacional, preocupa os moradores da região.
“Ainda que a gente entenda a necessidade de o Brasil investir em infraestrutura aeroportuária, a gente se recusa a pagar essa conta. Não é porque precisa que pode ser feito em qualquer área, trazendo qualquer tipo de impacto, que isso deve ser aceito”, argumenta Gabriel Bitencourt, diretor de meio ambiente da Associação de Proprietários e Amigos da Porta do Sol (Apaps), entidade que representa os habitantes do condomínio Porta do Sol, localizado em área vizinha aonde se pretende instalar o aeroporto. Na região desde 1972, o conjunto residencial foi idealizado pelos arquitetos Oscar Niemeyer e Burle Marx e convive, lado a lado, com porções preservadas de Cerrado e Mata Atlântica nativa. Somado ao Bairro do Saboó e os residenciais Restinga Verde e Ninho do Condor, forma o conjunto de casas e comunidades que seriam afetadas diretamente tanto pelas obras como pela própria operação dos empreendimentos.
A iminência do ônus trazido a quem hoje vive na região levantou, entre os moradores, suspeitas sobre a legitimidade das obras. Dos três empreendimentos tocados pelo grupo JHSF, a construção do outlet é a que está, conforme se explica, inclusive em cartazes ao longo da própria rodovia Castelo Branco, com “obras aceleradas” e previsão de inauguração para 2013. Por duas ocasiões, no entanto, agentes de fiscalização flagraram irregularidades nas construções. Em 22 de julho a Polícia Militar Ambiental multou a empresa em R$ 100 mil ao constatar a intervenção em 6,7 hectares de áreas de preservação permanente (APP) de curso d’água sem autorização — no local, são construídos o galpão de compras e o conjunto de prédios comerciais.
No dia seguinte, em 23 de julho, a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), ligada à Secretaria do Meio Ambiente do governo de São Paulo, constatou que as mesmas duas obras seguiam sem dispor de licença prévia — que deve ser concedida na fase preliminar ao planejamento de qualquer empreendimento, e que atesta a viabilidade ambiental bem como estabelece condições para a implementação de certas obras — ou licença de instalação, que autoriza a implementação desde que cumpridas as exigências determinadas anteriormente. Tais documentos são requisitos exigidos pela resolução nº 237/1997 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).
Na ocasião, a Cetesb apurou não só que as obras do outlet e do centro comercial continuavam em andamento sem autorização, mas também que, na área onde seria instalado o aeroporto, havia atividades de movimentação de terra, terraceamento, abertura de vias e o início de processos erosivos desencadeados pela retirada e destoca de eucaliptos, além de intervenção em APPs. Os fiscais do órgão ligado ao governo do Estado realizaram, na mesma data, o embargo imediato dos empreendimentos, sob pena de multa de R$ 5 milhões, até que a empresa obtivesse as devidas licenças para continuar as obras. Determinaram também a apresentação de um projeto para recuperar a porção de terra atingida.
Em nota, a JHSF Incorporações nega parte dos flagrantes. “Não foram realizados trabalhos de terraplanagem ou movimentação de terra no local sem a devida autorização”, diz. A empresa informa que já entrou com os recursos necessários para continuar o empreendimento e também alega que “recebeu, no dia 21 de agosto, parecer favorável do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) que atesta a viabilidade ambiental” bem como que “o centro empresarial e o shopping center já haviam obtido as aprovações necessárias”.
Governo é parte, diz associação
A Apaps, que representa moradores vizinhos à construção dos empreendimentos, também ingressou na Justiça contra a empresa e obteve uma vitória parcial. Em ação cautelar, impetrada em 29 de agosto, a associação questiona inclusive o papel do governo do Estado de São Paulo que, embora tenha vistoriado as obras em outras ocasiões, estaria se omitindo sobre o caso e possivelmente até favorecendo o empreendimento, quando convocou em 21 de agosto a reunião extraordinária do Consema — a mesma à qual a JHSF se refere acima — para emitir parecer favorável à viabilidade das obras. No processo judicial, a Apaps classificou a conduta do governo como “estranhíssima” por “convocar às pressas” uma sessão com esse intuito.
A reunião do Conselho, naquele momento, também deu legitimidade aos Estudos de Impacto Ambiental e Relatórios de Impactos Ambientais (EIA/Rimas) realizados por uma empresa contratada pela própria JHSF para avaliar os danos que a construção dos três empreendimentos causaria na região de São Roque (SP). Os resultados são alvo de questionamentos pelos moradores dos entornos, já que, segundo entendem, desconsideraria uma série de outros fatores, como o fato de a porção de Mata Atlântica da área abrigar espécies ameaçadas.
Conforme apurou a reportagem, os EIA/Rimas não identificam qualquer ser vivo da fauna ou flora em vias de extinção. Ignoram, por outro lado, o fato de estudos acadêmicos já terem identificado, por exemplo, vestígios da presença de lobos-guará na área, espécie que consta no cadastro do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de animais ameaçados. “Nosso entendimento é que os estudos estão todos maculados. Como é que se faz um levantamento da fauna, mas não se detecta que aqui estão importantes espécies ameaçadas de extinção?”, questiona Gabriel Bitencourt, diretor ambiental da Apaps.
Na decisão sobre a ação cautelar, em audiência com as partes envolvidas ocorrida no último 5 de setembro, o juiz Alexandre Carneiro da Cunha Filho disse que não há dúvidas das irregularidades constadas na construção dos empreendimentos. “Restou incontroverso que foram feitas obras pela JHSF sem a devida licença ambiental de instalação.” O magistrado deferiu em parte o pedido judicial da Apaps e determinou a suspensão das obras dos três empreendimentos, até que a empresa tenha as licenças necessárias para construí-los. No caso de descumprimento, está prevista multa diária de R$ 10 milhões à incorporadora. De acordo com a ata da audiência, ainda, o Ministério Público do Estado (MP-SP) pontuou o fato de que a decisão do Consema vai de encontro aos embargos realizados pela Cetesb. “A decisão do Consema de aprovar a licença prévia aparentemente contraria o que foi constatado pela vistoria da Cetesb”, afirmou o promotor de Justiça Luis Roberto Proença.
Desenvolvimento em curto prazo
Um dos principais argumentos em defesa da construção dos três empreendimentos, além da suposta contribuição para diminuir o déficit aeroviário brasileiro, é o de que tais empreendimentos podem desenvolver a área e trazer investimentos para os municípios ao redor. A JHSF Incorporadora diz, por meio de sua assessoria de imprensa, que “a região de São Roque será beneficiada com a geração de 5 mil empregos diretos e indiretos na fase de construção e operação do empreendimento”. Entre hoje raras porções de Mata Atlântica e Cerrado, os moradores do condomínio Porta do Sol defendem que, na verdade, isso significaria transtornos a médio e longo prazo.
“Não encontrei ainda um morador que fosse favorável à construção [dos empreendimentos]”, aponta Gabriel Bitencourt. As poluições do ar e do som, decorrente da atividade do aeroporto, são algumas das principais preocupações dos habitantes da região. O diretor ambiental da Apaps argumenta que gases emitidos pelas aeronaves diminuiriam a qualidade do ar e poderiam provocar a precipitação de chuva ácida. A respeito disso, ele enfatiza que os principais atingidos seriam os animais e plantas, portanto, todo o bioma de Cerrado e Mata Atlântica do local. A disputa em torno da construção ou não do aeroporto na região coloca em questão o próprio modelo de desenvolvimento do país, com mais ganhos a curto prazo em vez de um projeto nacional pensado a partir de uma matriz sustentável.
A poluição sonora prejudicaria, em especial, as aves da região (ouça). Os moradores do condomínio Porta do Sol estão no meio de um processo de catalogação do inventário de flora e da fauna locais e cadastramento das nascentes aquáticas do local. “Fazemos até campanhas para não soltarem fogos de artifício por aqui. Tomamos esse nível de cuidado para não prejudicar a fauna, e agora vêm instalar uma aeroporto”, pondera Gabriel Bintencourt. Na ocasião da visita da reportagem à área, de fato era possível ouvir o canto de várias espécies de aves diferentes, em meio ao farfalhar das árvores com o vento. Há relatos de moradores que já viram quatis, tamanduás-bandeira, onças-pardas, jararacas, veados, cuícas-de-três listras, entre outras espécies ameaçadas que desapareceriam com o sucesso dos empreendimentos na região.
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