Não há uma organização comercial ou um grupo político reunindo proprietários rurais que tenham utilizado trabalho escravo, até pela natureza criminosa dessa prática. Esses fazendeiros estão associados aos sindicados rurais de seus municípios, que por sua vez integram as federações estaduais – em âmbito nacional reunidas na Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Além disso, também fazem parte de organizações de atividades econômicas, como é o caso de produtores de grão, algodão, cana, entre outros.
Considerando que esse tipo de mão de obra é usado para garantir competitividade ao produtor, a sua adoção representa, na prática, concorrência desleal com relação àqueles que operam dentro de formas contratuais de trabalho. Contudo, as entidades têm defendido o associado envolvido no crime, ignorando uma ação comercial lógica, que seria retirá-lo do grupo ou suspendê-lo enquanto apresentasse pendências, para evitar uma contaminação da imagem da entidade e do setor e, consequentemente, perdas econômicas. Pois o que é preservado com essa defesa não é um interesse comercial particular, mas a própria classe social dos proprietários rurais.
Trabalho escravo não é resquício do processo de expansão do capital, mas um de seus instrumentos. Fazendo uma analogia, o trabalho escravo contemporâneo não é uma doença, mas sim uma febre, o sintoma de um problema maior que se manifesta nas franjas do sistema. Portanto, a sua erradicação não virá apenas com medidas mitigadoras, como a libertação de trabalhadores, equivalentes a um remédio antitérmico – necessárias, mas paliativas. É necessário um tratamento maior, com mudança da própria estrutura do sistema, incluindo alteração na forma de expansão do capital.
Um caso emblemático é o da proposta de emenda constitucional número 57A/1999 (ex-438/2001) que prevê o confisco de propriedades em que trabalho escravo contemporâneo for encontrado. Ela pretende ser um acréscimo ao artigo da Constituição que já contempla o confisco de áreas em que são encontradas lavouras de psicotrópicos. A demora na sua aprovação se dá por causa por pressões da bancada ruralista.
Por mais que a proporção de empregadores que utilizam trabalho escravo contemporâneo seja pequena diante do universo de produtores rurais, e tendo em vista o número reduzido de condenações por esse crime, esses representantes políticos são contrários à proposta. Pois, para eles, o que está em jogo é a propriedade da terra, capitalizada a partir do século 19, considerada inviolável por parte dos seus representados – os proprietários rurais. A sua manutenção e concentração é condição fundamental para a acumulação por parte dos fazendeiros pois, além de ser capital, é o locus onde se acumula o capital através do trabalho. A PEC é, por esse ponto de vista, um risco à existência da própria classe ruralista e, portanto, lutar contra a sua aprovação representa mais do que manter a exploração de formas não-contratuais de trabalho.
Só assim, no campo simbólico, é que se pode compreender a importância do trâmite dessa proposta por ambos os lados da questão. Pois, na prática, a aplicação da lei encontraria várias dificuldades nos tribunais, sendo menos ampla do que desejam as entidades que atuam no combate ao trabalho escravo.
A análise do comportamento das entidades de classe aponta nessa direção. A CNA não nega a necessidade de que a escravidão contemporânea seja erradicada, defendendo isso inclusive em suas publicações, mas afirma que os seus associados não a utilizam. Embora isso não corresponda à realidade.
Avaliando o cruzamento entre doações de campanha e a “lista suja” do trabalho escravo, não há subsídios para afirmar que os eleitos atuem efetivamente para o favorecimento desses empregadores nesse tema. Também não há provas de que os empregadores-políticos beneficiaram a si próprios. Para uma análise que comprovasse uma relação de causa e efeito, seria necessário pesquisar os projetos e o comportamento desses eleitos na análise de projetos que não dissessem respeito apenas ao trabalho escravo contemporâneo, mas também, com relação às questões de trabalho, fundiárias e preservação do meio ambiente.
Por exemplo, a comparação entre a lista de doadores e as listas de votação da PEC 57A/1999 é inconclusiva. Muitos deputados seguem a recomendação da bancada a que fazem parte. Além disso, a votação em primeiro turno dessa PEC na Câmara ocorreu sob forte comoção pública gerada pelo assassinato de quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego que fiscalizavam propriedades rurais na região de Unaí, Estado de Minas Gerais, em 2004. E o segundo turno, ocorrido em maio 2012, caiu bem no calendário eleitoral. Isso pode ter influenciado na decisão dos deputados. Há parlamentares que eram contrários à aprovação da PEC, mas nas votações em plenário, feita por voto aberto, posicionaram-se a favor, provavelmente para não terem sua imagem vinculada à manutenção dessa forma de exploração do trabalho em um momento delicado como aquele.
O ato da doação é um indício de que o doador comunga das propostas do candidato, deseja que ele o represente politicamente, seja por suas ideias, seja por sua classe social ou quer criar um vínculo por meio desse apoio em campanha. O benefício não precisaria vir em assuntos diretamente relacionadas ao trabalho escravo contemporâneo, mas em outros temas que dizem respeito à defesa da expansão do capital em determinada região ou ramos de atividade, por exemplo. Portanto, com base nesse levantamento, pode-se afirmar que esses empregadores estão representados politicamente, mas não que esses representantes têm agido, necessariamente, em prol de seus financiadores de campanha.
A escravidão contemporânea é a exploração mais degradante possível dentro das formas não-contratuais de trabalho. Tendo em vista o seu caráter ilegal, não há quem a defenda abertamente. A forma de justificar os atos de fazendeiros flagrados com esse tipo de mão de obra, portanto, é afirmar que o flagrante em questão não foi de trabalho escravo – atitude tomada sistematicamente por associações de classe e por parlamentares e detentores de cargos executivos que prestam apoio a fazendeiros. Com a justificativa fraca e sem sustentação na realidade de que falta definição para o tema na lei, atuam para barrar qualquer restrição aos proprietários rurais que cometam esse crime.
É claro que não há projetos de leis tramitando no Congresso Nacional com o objetivo de favorecer explicitamente a escravidão, mas há aqueles que contribuiriam indiretamente. Como os que facilitariam a terceirização ilegal e a diminuição de direitos trabalhistas e dificultariam a atuação da fiscalização. Ou seja, projetos que atuam em prol de um processo de descontratualização do trabalho, o que aumentaria a margem de lucro das empresas através da economia em capital variável e, portanto, sua capacidade de competição no mercado. Além disso, há outros projetos que contribuiriam com o combate ao trabalho escravo, além da PEC 438, que apresentam um trâmite lento no Congresso.
O então governador do Mato Grosso Blairo Maggi era considerado um dos maiores produtores de soja do mundo e sócio da Amaggi, uma das maiores exportadoras do grão no país. A empresa chegou a comprar soja de propriedades presentes no cadastro de empregadores [de trabalhadores em condições análogas à escravidão] e, hoje, afirma adotar critérios para a compra de produto, limando produtores da “lista suja” de sua rede de fornecedores. Blairo recebeu doação de um produtor que chegou a ser envolvido com trabalho escravo pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Mas não se pode aplicar uma relação de causa e efeito entre as doações de campanha e o comportamento do governador, que se insere mais em uma lógica da manutenção do status quo dos proprietários rurais. Mas o apoio que ele garantiu a sojicultores, cotonicultores e pecuaristas para a expansão da fronteira agrícola no estado, defendendo-os de acusações de trabalho escravo e desmatamento ilegal, é suficiente para afirmar que há, pelo menos, uma sintonia política muito fina entre eles. E que, nestes casos, a doação se mostra, em verdade, um bom investimento.
* Este texto contém trechos da tese de doutorado “Os acionistas da Casa-Grande: a reinvenção capitalista do trabalho escravo no Brasil contemporâneo” (2007).
** Leonardo Sakamoto é jornalista, doutor em Ciência Política e coordenador da Repórter Brasil.