Quando assumi a Coordenação da Fiscalização Rural em Santa Catarina, em 2009, tive como primeira missão a de retomar as fiscalizações na região de maior produção da cebola do Estado, o Alto Vale do Itajaí. Estive na região e algumas outras cidades do entorno como Alfredo Wagner, que, junto com Ituporanga, está entre as principais produtoras de Santa Catarina.
A chefia informara na ocasião sobre uma paralisação das fiscalizações em 2007, ano que produtores colocaram seus tratores no caminho, obstruindo os acessos dos auditores e afirmando que não cumpririam a legislação de proteção ao empregado rural. Observe-se que cerca de um mês antes desta passeata a coordenadora de Fiscalização Rural anterior tinha ido, amigavelmente, realizar palestra de orientação, para facilitar a vida dos produtores.
À época pensei que talvez o assunto não tivesse sido tratado adequadamente. Afinal, como uma população inteira de produtores decide não cumprir leis federais de proteção ao empregado? Não é comum que um grupo todo se negue a cumprir lei federal, e por completo – às vezes, discute-se um ou outro ponto da lei, mas não a resistência total à lei.
Já de início, nas primeiras visitas aos representantes sindicais, obtive a minha resposta: a lei previdenciária fazia perder a condição de segurado especial todo produtor que mantivesse empregados. Note-se que neste benefício previdenciário o produtor se aposenta com cinco anos menos do que o segurado contribuinte e não contribui mensalmente para a Previdência.
Mas, após as manifestações de 2007, as lideranças sindicais tinham conseguido que a lei fosse alterada e, a partir da Lei 11.718 de 2008, houve a ampliação da possibilidade de contratação temporária, no limite de 120 homem/dia, que é o número de empregados vezes o número de dias, sem a perda da condição de segurado especial da Previdência. Desta forma, o produtor da economia familiar não perderia sua aposentadoria de segurado especial e poderia formalizar os empregados que mantinha, pois, com a redução do número de filhos nas famílias, de um lado, e o aumento da produtividade por hectare com as novas técnicas rurais, de outro, a economia familiar também passou a necessitar de mão de obra.
Resistência
Pensavam à época que o problema estaria resolvido, mas já na primeira palestra que nossa equipe realizou em Ituporanga em 2009 passamos a ouvir de vários produtores que estes 120 homens/dia não resolveriam, que eles contratavam mais que isto.
Se um produtor necessita de mais que 120 homem por dia, é porque ele não é tão pequeno assim. Se o vendedor de cachorro-quente da cidade tem que contribuir para se aposentar, por que não estes produtores? |
Ora, ora. Surpresa! Pensei comigo: se um produtor necessita de mais que 120 homem/dia, é porque ele não é tão pequeno assim. Se o vendedor de cachorro-quente da cidade tem que contribuir mensalmente para se aposentar, se eu, você e todos que conheço precisam contribuir para a Previdência, por que estes produtores também não compreendem que não são mais tão pequenos assim e assumem sua parcela na contribuição previdenciária?
Bem, mas eram elucubrações minhas. É claro que, como diz o ditado do Mané da ilha de Floripa, “farinha pouca meu pirão primeiro”. E o empregado… Quem?
O que ficou claro desde o início daquelas fiscalizações em 2009 e com o passar das fiscalizações e dos anos, não restando mais dúvidas, é que para garantir um direito que não mais lhe assistia, o produtor negava o direito ao seu empregado da formalização do vínculo de emprego.
É claro que na região há muitas realidades, como a de pequenas famílias que produzem sozinhas, ou com a ajuda mútua entre vizinhos – realidade conhecida como “troca de dias”, que não configura a relação de emprego, por não haver a subordinação entre os vizinhos. E tão logo a fiscalização contou que aceitaria a troca de dias houve uma avalanche em se criar “notas de produtor” a justificar as trocas de dias mais esdrúxulas – como a de um produtor de cebola que garantia que era “troca de dias”, mas a nota de produtor do cidadão era de uma cidade a mais de 200 quilômetros de distância da lavoura onde trabalhava. Ou outro, ainda, que mostrou uma única nota emitida no ano anterior: de uma abóbora.
Também encontramos desde casos de produtores que necessitam realmente de apenas um dia de trabalho na safra, até outros que emendam o plantio até a safra mantendo cerca de 20 empregados por 6 meses.
Encontramos muitos empregados aliciados em outras cidades, um grande grupo de pernambucanos que vêm sendo trazidos ano após ano.
Trabalho infantil e degradante
Então a realidade começou a se mostrar um pouco diferente da que era contada. Nas fiscalizações encontrávamos crianças e adolescentes aliciados e trazidos sem os pais de outras cidades de Santa Catarina, dormindo em pedaços de espuma no chão, trabalhando sem equipamentos de proteção (como chapéu contra radiação solar e sapato fechado contra animais peçonhentos e outros) e em atividades proibidas com o uso de instrumentos perfurocortantes, tesouras e facas, usadas para cortar o talo da cebola.
E ao contrário do que se ouve reclamar contra a fiscalização, não, não eram os filhos dos produtores. Eram filhos sem pais, trazidos sem qualquer autorização. Um menino de 14 anos, que mais parecia ter 12, declarou na frente do Procurador do Trabalho e do Delegado de Polícia que “…seus colegas estavam dizendo que um Sr. Adão estava oferecendo emprego e os interessados deveriam comparecer às 13h em frente à igreja de Correia Pinto, levar um colchão, copo prato e talheres, que não pediu para levar nenhum tipo de documento”.
Foi no grupo deste menino que em 2009, logo de início, a equipe fiscal realizou um resgate de mais 28 empregados em condições degradantes de trabalho, sendo que destes, nove eram crianças e adolescentes.
As fiscalizações encontravam lavouras sem ao menos uma “privada” na frente de trabalho, fazendo com que os empregados usassem o mato – mesmo onde trabalhavam mulheres e homens juntos.
Em relação aos alojamentos, os produtores não se sentiam responsáveis por eles: ou entregavam uma casa antiga, onde os próprios empregados tinham que trazer seu colchão ou pedaço de espuma velhos, ou os empregados tinham que alugar, em grupos, casas na periferia. Não havia limpeza, condições mínimas como uma cama com colchão em bom estado ou roupa de cama limpa. As condições eram em sua grande maioria degradantes ou beirando a degradância.
Pressão política
E paralelamente a isto a fiscalização passou a verificar que a resistência era fomentada por políticos. Em 2010, a então prefeita em exercício chamou a equipe de fiscalização e determinou, na frente de vários representantes municipais e vereadores, que a equipe de fiscalização deixasse a cidade e cancelasse os autos de infração lavrados, ou do contrário haveria novo “tratoraço”. No retorno do prefeito, este foi à rádio local e disse que “lutaria com os produtores contra a fiscalização”. Com tal estímulo, não foi surpresa quando os produtores passaram a fazer bravatas, rodeando o carro da fiscalização e descendo de seus carros com expressões faciais como as dos filmes de “bang bang”. Também não foi surpresa quando soubemos que produtores tinham telefonado na rádio local e informado que ateariam fogo em nosso veículo.
Um dos produtores disse que, se tivesse uma arma, a usaria contra a fiscalização |
Em 2011, na cidade vizinha de Alfredo Wagner, cujas fiscalizações eram mais recentes (mas que também tiveram palestras em 2009 e 2010), um dos produtores disse que se tivesse uma arma a usaria contra a fiscalização.
Em 2011 também, após a fiscalização regional pedir ajuda ao Ministério do Trabalho em Brasília, foi enviado um grupo especial de fiscalização conhecido como grupo móvel, que ficou por três semanas na região, nas quais contam que os produtores se comunicavam até mesmo com “rojões de pólvora” para avisar que a equipe fiscal estava próxima. Após todo o tipo de sabotagem para que não fossem encontrados empregados, a equipe deixou a região. Já no dia seguinte, um deputado federal se arvorou em atribuir para si a grande conquista de “mandar o grupo móvel embora conforme pedido ao Ministro” Ele só não explicou porque o Ministro não atendeu seu pleito na primeira semana, mas somente após findo o tempo predestinado para a ação.
Nas fiscalizações de 2012 ainda se encontravam poucos produtores buscando as adequações, mesmo após vários Termos de Ajuste de Conduta destes com o Ministério Público do Trabalho, mesmo após muitas palestras e orientações em entrevistas na rádio local. Mas naquele momento a população se mostrava disposta a se adequar e prometiam que, caso a fiscalização regional retornasse às ações, tentariam respeitá-la.
Certamente que a equipe regional não poderia mais retornar à região sem a devida proteção policial.
Mas em 2013, na fiscalização do plantio, esquecidos das promessas, os produtores passaram a se indignar com a proteção policial dos auditores, e com os autos de infração aplicados, ainda que todas por situações de descumprimento de questões básicas: formalização do vínculo de emprego, fornecimento de água potável e em copo individual, “privada” na frente de trabalho, local para guardar a marmita do almoço (para que esta não fique azeda até o almoço), alojamento limpo, camas, instalação sanitária nos alojamentos, transporte seguro, motorista do transporte coletivo com habilitação.
Também foram lavrados autos de infração porque os produtores mandavam que os empregados corressem e se escondessem da fiscalização.
Logo, novos políticos quiseram ocupar seus espaços e passaram a imputar à fiscalização as situações as mais graves: que esta andava armada, que os policiais assustavam crianças e assim por diante. E exigiram uma audiência pública, organizada por deputados estaduais (coincidentemente, é claro, com o ano de eleições que estamos), e os políticos na frente de mais de 2.000 produtores demonstraram compartilhar da ideia dos produtores de que o Ministério do Trabalho deveria suspender as fiscalizações, não exigir a Norma Regulamentadora 31 (NR 31) para os pequenos produtores, não exigir mesmo a formalização dos contratos, porque temporários. Uma das solicitações encaminhadas ao ministro foi a de que não se aplicasse a NR 31 em grupos de até 10 trabalhadores.
A referida reação dos produtores de Alfredo Wagner foi uma infelicidade, porque justamente nas fiscalizações da colheita de 2013 é que finalmente passamos a encontrar um número significativo de produtores que passaram a entender que seguir a lei não é tão difícil nem tão custoso, e é muito mais tranquilo.
Ouvimos declarações de produtores da economia familiar que, entrevistados, disseram: “nossa vocês são muito educados, porque ficam falando por aí que vocês maltratam as pessoas?”. Ora, porque há um grupo de produtores resistentes em cumprir a lei que planta falsas ideias para desmerecer a fiscalização do trabalho.
Os produtores mostravam com orgulho suas conquistas, dizendo que realmente era muito mais tranquilo com as regularizações |
Ouvimos também muitos produtores, mostrando novos alojamentos muito limpos, com camas, roupa de cama, “privadas” construídas com capricho na frente de trabalho, a formalização dos vínculos – alguns até sob a forma de condomínio de empregadores rurais –, e estes produtores mostravam com orgulho suas conquistas, dizendo que realmente era muito mais tranquilo com as regularizações.
Mas a busca pelo voto fácil, se aproveitando do desejo de alguns produtores em ouvir promessas do fim da fiscalização na região, trouxe a esta novela mais um capítulo quando um deputado estadual foi até o jornal de maior circulação no Estado de Santa Catarina e publicou uma nota onde acusa a fiscalização do trabalho dos maiores absurdos, de andar armada, de não permitir que os empregados almocem junto com seus patrões, e de provocar até suicídios entre os produtores. É claro que o deputado não foi capaz de apresentar provas contundentes de nenhuma das alegações. Nem mesmo um único auto de infração com o argumento de que era proibido ao empregado almoçar com seu patrão não foi apresentado, porque não existe.
Procurado pessoalmente, não se mostrou sensível ao fato de que artigos como este têm o dom de incitar à resistência injustificada ao cumprimento da lei de proteção ao empregado rural e também o de incitar a população contra a fiscalização.
“Europa brasileira”
São atos como estes, de pura resistência (não exatamente à fiscalização, mas à lei), que culminaram com a Chacina de Unaí, em Minas Gerais, quando fazendeiros que também decidiram que não obedeceriam a lei de proteção ao empregado rural encomendaram a morte de auditores fiscais do trabalho.
Então hoje, às vésperas de se completar 10 anos da Chacina de Unaí, e às vésperas do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, ainda assistimos em Santa Catarina – a “Europa brasileira” – pessoas que não aceitam que devem cumprir direitos mínimos do empregado rural: CTPS assinada, condições dignas na frente de trabalho (como instalação sanitária e local para refeição), proteções para os riscos das atividades, transporte seguro, alojamento limpo e com cama, colchão em bom estado e roupa de cama limpa.
Santa Catarina é conhecida em todo o Brasil pelo capricho, pelo desenvolvimento, pelas boas condições de vida de seus habitantes em relação ao resto do país, mas então o empregado o que é que não tem direito à sua parcela? É coisa? Ou é menos que coisa? Porque até das coisas se cuidam mais. Por que os políticos cuidam mais dos produtores do que dos empregados dos produtores? Eles rendem mais votos? Eles contribuem mais em suas campanhas?
E os princípios católicos? Sim, porque grande parte da população é católica. Em todos os bairros rurais encontramos pequenas igrejas. O lema da Campanha da Fraternidade deste ano é o Tráfico de Pessoas. Ora, o aliciamento de trabalhadores em outras localidades sem lhes assegurar condições mínimas é uma forma de tráfico de pessoas, combatida pela lei do trabalho. E então, por que estes empregados não são tratados como irmãos? Por que a busca do lucro ainda é maior do que a responsabilidade social?
O lucro somente é um lucro se for justo, e somente é justo se for baseado na exploração equilibrada da mão de obra |
Sim, eu sei que o produtor rural tem suas dificuldades – em anos há lucros, em outros não – e que a vida rural, mesmo com as melhorias da vida moderna, ainda é bastante difícil. Mas o lucro somente é um lucro se for justo, e somente é justo se for baseado na exploração equilibrada da mão de obra, com respeito aos direitos mínimos. Senão, deixa de ser lucro e passa a ser roubo.
Eu busco respostas. Para mim, é simplesmente incompreensível a dificuldade que temos em conseguir fazer o cumprimento da lei em situações básicas, mínimas, para o empregado rural.
*Lilian Carlota Rezende é auditora fiscal do trabalho e coordenadora da fiscalização rural em Santa Catarina.