Piracaia (SP) – O morador de São Paulo e de outros municípios do estado que costumam fazer churrasco em casa ou ir às tradicionais churrascarias em sistema de rodízio pode, sem saber, estar contribuindo para a exploração de trabalho escravo e infantil que acontece a apenas cem quilômetros da capital. Uma megaoperação de fiscalização realizada nos dias 21 e 22 de janeiro nos municípios paulistas de Piracaia, Joanópolis e Pedra Bela encontrou 34 pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão em carvoarias locais. Além disso, três dos doze estabelecimentos fiscalizados utilizavam trabalho infantil – sete crianças e adolescentes foram afastados do trabalho. A reportagem da Repórter Brasil acompanhou a fiscalização.
A operação contou com a participação de dezenas de agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) da região de Atibaia (SP), quatorze auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), técnicos do Instituto Florestal, representantes da Advocacia Geral da União (AGU) e da Justiça do Trabalho. No total, em dois dias foram fiscalizadas doze carvoarias. Todos os trabalhadores explorados em regime de escravidão foram encontrados em Piracaia, em cinco estabelecimentos. As sete crianças e adolescentes afastadas estavam trabalhando em três carvoarias das três cidades onde a fiscalização aconteceu: quatro em Joanópolis, duas em Piracaia e uma em Pedra Bela. Por meio de um decreto presidencial de 2008, o trabalho em carvoaria está incluído na lista das piores formas de trabalho infantil, sendo vedado para qualquer pessoa que tenha menos de dezoito anos.
A investigação teve início em 28 de novembro de 2013, quando agentes da PRF do apreenderam, num posto próximo à cidade de Atibaia, um caminhão contendo carvão. A nota apresentada era falsa. Após meses de trabalho conjunto entre Polícia Rodoviária Federal e MPT, foram constatados fortes indícios de trabalho escravo, infantil e crimes ambientais em quase duas dezenas de carvoarias da região.
Condições degradantes
Depois de passar pelo centro de Piracaia, cidade de cerca de 25 mil habitantes, o comboio de uma das quatro equipes de fiscalização segue por mais alguns quilômetros pela Estrada André Franco Montoro. Tomando uma estrada de terra e cascalho, chega a uma das carvoarias investigadas. Logo de cara, chama a atenção o fato de ela estar localizada ao lado da passagem de um gasoduto da Petrobras – uma placa alerta para o perigo de se acender fogueiras. Numa grande área à esquerda de uma casa de construção simples, muitos quilos de carvão estão guardados dentro de grandes sacos de fertilizantes e de ração animal. Toras de madeiras cortadas estão empilhadas. Dos dois lados, há pátios, cobertos por telhas de zinco, que cobrem mais toras e fornos feitos de tijolo. São 26 no total. Um pouco mais adiante, à direita, há uma banheira velha cheia de água barrenta onde se apoia uma mangueira que vem do meio da mata. Em uma das bordas, repousa uma lata de Nescau vazia e adaptada para funcionar como um copo.
Ainda mais adiante, está um senhor baixo de pele negra, de nascimento e de carvão. Trabalha no estabelecimento, que produz o Carvão A.M.E., há doze anos, sem registro em carteira nem salário. A jornada, em média, é das sete da manhã até as quatro ou cinco da tarde. Ganha por produção. Recebe R$ 1,40 por cada saco de carvão, a cada quinze dias. Ele diz que em dias bons, quando não sente dores, chega a produzir de trinta a quarenta sacos. Apesar da idade avançada, passa o dia carregando toras de madeira pesadas e as jogando dentro dos fornos superaquecidos. As dores são por conta de uma hérnia inguinal que tem há dois anos – está esperando que a realização de uma cirurgia. Quando estão mais fortes, a produção cai muito, e o dinheiro no fim da quinzena também. Hoje, calcula, recebe em torno de R$ 700 por mês, que complementam o salário mínimo que ganha como aposentado.
No local não há refeitório, e o dono da carvoaria não fornece refeição nem Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). O carvoeiro de pouco mais de setenta anos traz o almoço de casa, e come onde puder encontrar uma sombra. A água para beber vem da mangueira posicionada na banheira velha e imunda, e é consumida na lata de Nescau. Tampouco há sanitários.
Há trinta anos, o senhor mora numa casa simples dentro de uma fazenda vizinha à carvoaria. Trabalhava para o proprietário, também carvoeiro, até se aposentar. Hoje cuida de uma pequena horta e de uma criação de patos e gansos. A esposa faleceu há treze anos. Dos seis filhos, dois também já morreram. Originário de Cambuí, Minas Gerais, ele mora em Piracaia desde 1958. Nesse mesmo ano, quebrou a perna e perdeu o polegar da mão direita num acidente na produção de carvão.
Trabalho infantil
Nos fundos da casa que fica na entrada da carvoaria, à direita e num nível abaixo do terreno onde estão os fornos de carvão e a madeira pronta para ser carbonizada, um grande galpão é reservado para o serviço de empacotamento do produto resultante do trabalho dos carvoeiros. Lá, uma mulher de 37 anos, o marido, o filho de dezesseis anos e o sobrinho de onze colocam o carvão – que chega ao local por meio de uma espécie de escorregador de madeira, a partir da área dos fornos – dentro de embalagens do Carvão A.M.E. e as fecham com grandes grampeadores. Todos eles, assim como o senhor septuagenário, estão inteiramente cobertos de pó preto.
“Difícil arranjar outro serviço na cidade”, diz a mulher. Revela receber 11 centavos para cada quilo de carvão que embala. Em média, ela, o marido e o filho ganham R$ 600 por mês. Cada um dos três repassa R$ 50 para o menino de onze anos, que acabou de passar para a sexta série do ensino fundamental. Ele está há poucas semanas trabalhando na carvoaria, diz a tia. Já o adolescente de dezesseis anos, que acabou de passar para o segundo ano do ensino médio, está há uns três meses no local. Trabalhava em outra carvoaria, mas na queima da madeira. “Lá era muito pesado o trabalho. Por isso o trouxe para cá, para fazer um serviço mais leve”, conta a mãe. De férias da escola, trabalha, em média, das sete e meia da manhã às seis da tarde. A mulher garante que o adolescente quer trabalhar para ter o próprio dinheiro.
Contatada pela Repórter Brasil, Elisabeth Cardoso, responsável pela empresa que produz a marca Carvão A.M.E., disse que a carvoaria estava colocando um fiscal na entrada para impedir a entrada de crianças. Em relação aos casos de trabalho escravo, afirmou estar regularizando a situação. “Os itens de segurança já foram comprados, já tem banheiro lá. Vou pedir para fazer análise da água para mostrar que é potável. Enquanto isso, vamos comprar água engarrafada.”
Churrascarias e açougues
Nas outras duas carvoarias de Piracaia fiscalizadas no primeiro dia da megaoperação, foram encontrados mais trabalhadores em condições análogas à escravidão. Na carvoaria Bonsucesso, que segundo um de seus proprietários fornece carvão para churrascarias da capital paulista e de outras cidades de interior do estado, três homens faziam jornada de em torno de dez horas diárias, não possuíam registro em carteira de trabalho, não utilizavam equipamentos de proteção e não tinham água potável à disposição. As refeições, trazidas de casa, eram consumidas no próprio local de trabalho, próximo aos fornos. A apenas alguns metros de distância dos fornos e do fogo, havia um tanque onde se costumava armazenar litros de óleo diesel, combustível que abastecia os caminhões utilizados para o transporte da produção. Os três empregados ganhavam em torno de 70 centavos pela produção de cada saco de 8 quilos.
Dois dos trabalhadores dormiam em suas próprias casas no município de Piracaia. Um deles, no entanto, dividia a estadia entre a casa da irmã na cidade e dois cômodos na própria carvoaria. No dia da fiscalização trabalhista, um dos quartos estava em condições extremamente insalubres de habitação. Em cerca de vinte metros quadrados, acumulavam-se uma geladeira, uma pia, uma televisão de 29 polegadas, uma poltrona velha e quase uma dezena de monitores de computador apoiados em estantes de ferro. Aos fios de eletricidades que atravessavam todo o cômodo somavam-se inúmeros objetos jogados no chão. Um colchão dobrado e uma cumbuca com ração de gato repousavam em meio à sujeira e ao lixo. Na pia, restos de comida num prato e pó de carvão acumulado.
“Me escondo lá”, revelou à reportagem o trabalhador de 42 anos. Ele cozinhava num fogão improvisado com tijolos e grelhas do lado de fora e mantinha uma horta com tomate, pimenta, salsinha e quiabo. Nascido em Cambará, no Paraná, o carvoeiro vivia havia vinte anos em Piracaia. Na Carvoaria Bonsucesso, trabalhava há quinze. Há dois, dormia com frequência no local. Segundo ele, gostava de mexer nos computadores de noite. Fez um curso de técnico em informática e só aguarda o diploma para tentar seguir nova profissão. Não ambiciona, no entanto, largar o ofício de carvoeiro. Quer arrumar outro emprego para aumentar a renda.
Afonso Aparecido da Silva, um dos proprietários da Carvoaria Bonsucesso afirmou à reportagem que discorda do entendimento do MPT e do MTE sobre o flagrante de trabalho escravo em sua carvoaria. “Os trabalhadores que estavam aqui recebiam devidamente os salários. Mas como não pagávamos os encargos públicos, estão falando que usamos mão de obra escrava. Isso acontece em toda a região, com todos os meus concorrentes. Não há um único funcionário sendo judiado. Pelo contrário, é ele que manda no próprio serviço, já que o pagamento é por produção”, diz.
Outra carvoaria de Piracaia flagrada com trabalho escravo, que produzia marca própria, o Carvão Atibainha, também vendia sua produção para as marcas Tennessee, Vila Carrão, São Carlos e Le Petit Filet. O padrão de violações era semelhante às das demais carvoarias onde houve flagrante de trabalho escravo: falta de registro em carteira, pagamento por produção, e falta de equipamentos de proteção, refeitório, sanitário e água potável. O fechamento das embalagens era feito por meio de uma máquina, manuseada pelos trabalhadores. O risco de lesões nas mãos era evidente. Antes de ir para Piracaia, um dos trabalhadores contou que trabalhava na limpeza dos vidros de um prédio na Avenida Paulista, em São Paulo. Com duas hérnias, sem conseguir mais emprego com carteira assinada, mudou de profissão. Há um mês trabalhando como carvoeiro, ganhava em torno de R$ 900 por mês, R$ 26 por cada forno que enchia com madeira.
Procurada, a Central de Carnes Tennessee, rede de açougues da capital paulista dona da marca de carvão Tennessee, não havia enviado um posicionamento até o fechamento desta reportagem. Já os responsáveis pelo Carvão Atibainha não quiseram dar declarações. A reportagem não obteve sucesso em contatar as demais marcas.
Em Joanópolis, a operação constatou inúmeras irregularidades trabalhistas, mas que não configuraram trabalho análogo à escravidão, segundo os fiscais. No município, no entanto, foram encontrados quatro casos de trabalho infantil, em uma carvoaria cujo cliente exclusivo era o Carvão São José. Em Pedra Bela, tampouco houve flagrante de escravidão, mas uma criança foi encontrada trabalhando.
À Repórter Brasil, José Roberto Veríssimo, um dos proprietários do Carvão São José, que divulgou uma nota à imprensa, afirmou que a empresa não tinha conhecimento das condições de trabalho de sua fornecedora. Além disso, disse que na verdade eram três adolescentes empregados, não quatro. “Temos seis produtores parceiros, e somente um deles apresentava condições que a gente desconhecia. Eles embalam nossos produtos, somos a última ponta da cadeia. Recebemos a visita dos representantes do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho e eles disseram que tínhamos sim responsabilidade”. Na quinta-feira, 23, a empresa, na presença da Justiça do Trabalho, indenizou os adolescentes que trabalhavam na carvoaria e registrou os demais trabalhadores. Além disso, assinou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) se comprometendo a ajudar a sanar as violações encontradas. “Pretendemos, em vez de abandonar nosso fornecedor, ajudá-lo a montar um sistema de empacotamento modelo, para que amanhã a mídia volte e veja o que foi feito”, diz Veríssimo.
Ciclo vicioso
No segundo dia da megaoperação, foram encontrados quinze trabalhadores em condições análogas à escravidão em duas carvoarias de Piracaia pertencentes à mesma empresa, o Carvão Cacique, de Bragança Paulista. Segundo o auditor fiscal José Weyne Nunes Marcelino, coordenador de um dos grupos móveis nacionais de combate ao trabalho escravo, a maioria dos trabalhadores resgatados trabalhavam no plantio e corte do eucalipto usado na produção de carvão. “Eles recebiam apenas a cada três ou quatro meses. Por isso, ficavam endividados nos mercados na cidade e eram obrigados a continuar a trabalhar para poderem receber e pagar as dívidas. Era um ciclo vicioso feito, consciente ou inconscientemente, para manter o pessoal no trabalho”, diz.
A empresa que comercializa o Carvão Cacique não foi localizada pela reportagem.
Na quinta-feira, 23 de janeiro, sete carvoarias fiscalizadas pela megaoperação assinaram TACs diante do MPT se comprometendo a eliminar as violações trabalhistas encontradas e a não contratar mão de obra infantil. Destas, três foram flagradas com trabalho escravo – elas se comprometeram a pagar verbas rescisórias e indenizações individuais aos resgatados até segunda-feira, dia 27.
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