O Ministério Público Federal (MPF) e a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul apresentaram representações pedindo que os deputados federais Luis Carlos Heinze (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS) sejam denunciados por racismo e incitação ao crime. Os pedidos foram encaminhados na semana passada ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e têm como base os discursos proferidos durante audiência pública realizada em Vicente Dutra (RS), em novembro do ano passado.
Na ocasião, o deputado Heinze afirmou que “índios, quilombolas e gays” representam tudo que “não presta” e, conforme destacado na representação protocolada pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, conclamou os ouvintes a reagirem “contra esses grupos étnicos, inclusive por meio de segurança privada”. Já o deputado Moreira usou o termo “vigaristas” e defendeu que a plateia deveria se vestir de “guerreira” contra eles.
De acordo com a subprocuradora-geral da República Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, que é coordenadora da 6ª Câmara, ambos os parlamentares foram preconceituosos e incitaram o público a praticar crimes, delitos previstos nos artigos 20 da Lei 7.716/89 e 286 do Código Penal. A 6ª Câmara trata de questões relacionadas a populações indígenas e comunidades tradicionais.
Me arrependo [da frase], mas vou manter que sou contra o comando do movimento indigenista, contra o comando do movimento quilombola, contra quem incita os índios a invadirem. Disso eu não me arrependo, do resto sim. Não era a intenção a generalização |
Procurados pela Repórter Brasil, os parlamentares se defenderam negando a intenção de racismo. Heinze afirmou que ainda não havia sido informado sobre a representação e que, por isso, não se pronunciaria. Ele disse que se encontraria com o próprio procurador-geral, que é quem decide sobre a abertura ou não de um processo criminal, mas negou que tenha sido convocado a dar explicações sobre sua declaração. “Não fui citado, ele me chamou, para para falar de outro assunto, da Reserva do Mato Preto”, disse, referindo-se ao processo de demarcação do terras indígenas da Reserva do Mato Preto no município de Getúlio Vargas (RS), onde proferiu o polêmico discurso. “Me arrependo [da frase], mas vou manter que sou contra o comando do movimento indigenista, contra o comando do movimento quilombola, contra quem incita os índios a invadirem. Disso eu não me arrependo, do resto sim. Não era a intenção a generalização”, afirmou, procurando deslegitimar a representação. “Já estamos em eleição, é ano eleitoral. Está em jogo a minha eleição”.
Alceu Moreira, por sua vez, negou que tenha sido preconceituoso ao falar em “vigaristas”. “Chamei de vigaristas os que estão por trás desse processo todo, as ONGs que incitam esse processo. Índio é por natureza uma pessoa pacífica, eles não fariam nada deliberadamente”.
Isso é de responsabilidade exclusiva de quem pronunciou. Não tenho nenhuma responsabilidade, não tenho preconceito. A patota quer me colocar junto com Luis Carlos Heinze para aproveitar isso politicamente |
Ele disse não compactuar com a generalização feita por Heinze em relação a indígenas, quilombolas e gays.”Isso é de responsabilidade exclusiva de quem pronunciou. Não tenho nenhuma responsabilidade, não tenho preconceito. A patota quer me colocar junto com Luis Carlos Heinze para aproveitar isso politicamente. Estamos juntos na luta contra os laudos demarcatórios [de terras indígenas], agora no preconceito eu nunca disse uma palavra. Não aceito fazer qualquer tipo associação da minha imagem com a frase do Luis Carlos Heinze. A frase é dele; feliz, infeliz, deliberada ou não, ele veste calça comprida e responde pelos seus atos”.
Moreira negou incitar crimes ao sugerir que fazendeiros se “fardem de guerreiros e se organizem em redes”. “As pessoas têm direito de defender sua propriedade. Não é por acaso que se tem guarda de condomínio. Isso não é incitação de crime. Pode me processar por isso, eu tenho absoluta tranquilidade na defesa. Não cometi nada que não seja absolutamente deliberado pelo meu mandato”, reiterou. “[A representação] tem posicionamento ideológico claro e eu me defendo como deputado com a soberania que o cargo me deu”.
Câmara dos Deputados
Conforme a representação, mesmo protegidos por imunidade parlamentar, ambos podem ser punidos pelos crimes. “Seria um absurdo supor que a cláusula da imunidade parlamentar autorize manifestação que atente contra a democracia, o pluralismo social, a segurança pública, o Estado de direito, enfim os valores mais caros da sociedade nacional”, aponta o MPF. “Discursos desse tipo, que se propõem a incitar ao menos o desprezo contra determinados segmentos sociais, não podem estar protegidos por uma ordem constitucional que os condena tão veementemente”, completa.
Mesmo na Câmara dos Deputados, os pronunciamentos repercutiram. Fazendo menção ao discurso do deputado Heinze, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) afirmou no plenário que “o que não presta é a homofobia e o racismo” e chamou a atenção para a gravidade dos parlamentares terem defendido ações contra indígenas e quilombolas. “Nós não podemos dizer que um discurso é apenas um discurso. (…) Os discursos colocam em movimento. Antes de a faca ser introduzida e ceifar vidas, elas são afiadas dessa forma, com discurso que incita o ódio e destrói o estado democrático de direito”, disse – confira o pronunciamento no vídeo abaixo.
No Rio Grande do Sul, a reação foi da Assembleia Legislativa, que encaminhou representação à Procuradoria Regional da República da 4ª Região, que, por se tratar de um caso envolvendo deputados federais, a repassou para o procurador-geral da República. O procurador-geral Janot está analisando as representações, segundo a assessoria de imprensa do órgão.
Contexto
Não é a primeira vez que os dois parlamentares são questionados por se posicionarem de maneira considerada preconceituosa contra indígenas. Em outubro do ano passado, Alceu Moreira falou em “vagabundos pintados” em discurso no Congresso Nacional (veja vídeo ao lado) e Heinze tentou agredir o deputado Ivan Valente (Psol-SP), após este solicitar que o termo fosse retirado da ata da sessão, sendo contido pelos demais parlamentares.
Como líderes da Frente Parlamentar de Agropecuária, a chamada Bancada Ruralista, Moreira e Heinze estão entre os parlamentares mais atuantes na série de iniciativas legislativas que visam a retirada de direitos dos povos indígenas do país, que incluem até alterações nos processos de demarcação de terras. Organizações do setor têm procurado chamar a atenção para o que classificam como maior ofensiva em 25 anos (clique no link para ver os principais projetos de lei e propostas de emendas constitucionais em discussão no Congresso Nacional). Na Carta de Mobilização divulgada em outubro do ano passado, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apontou que tais mudanças propostas afrontam tratados internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e a Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Ambos, Heinze e Moreira, estão entre os 274 deputados que votaram pela redução da proteção das florestas do país com a flexibilização do Código Florestal brasileiro, e entre os 29 deputados que votaram contra a Proposta de Emenda Constitucional do Trabalho Escravo, que prevê expropriação de propriedades onde for flagrado trabalho escravo.