A abolição formal e inconclusa advinda com a Lei Áurea, pelo contexto e forma com que se deu, não teve como objetivo enfrentar os efeitos nefastos de uma sociedade que se construiu com base em quase quatro séculos de escravidão negra. Após 1888 o Estado brasileiro, última nação americana a abolir oficialmente o regime da escravidão, optou por políticas que reforçaram a opressão física, social, política, cultural e econômica da população negra.
A política de Estado para o “branqueamento” da população brasileira, baseada na ideia racista da superioridade branca, pressupunha que o desenvolvimento da nação se daria à medida que a população se tornasse branca. Expoentes da intelectualidade como o abolicionista Joaquim Nabuco, o escritor Euclides da Cunha, o jurista Clóvis Bevilácqua e o escritor Monteiro Lobato, entre outros, contribuíram para disseminar essa ideologia racista na mentalidade nacional. Houve desdobramentos jurídicos dessa política, como o Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, que condicionava a entrada de imigrantes asiáticos e africanos à autorização especial do Congresso Nacional, em detrimento da livre entrada de outras etnias, principalmente as de origem europeia. O Decreto-lei nº 7.967/1945, revogado apenas em 1980, dispunha que a política de imigração deveria atender “a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia”.
As políticas estatais racistas que aprofundaram a opressão à população negra após a abolição da escravidão só tiveram fim, no plano formal, com a Constituição Federal de 1988. Na abstração da lei afirmou-se que o Estado brasileiro tem por fundamento a construção de uma sociedade livre, justa e solidária que promova o bem de todos, sem preconceitos de origem e raça, afirmando expressamente o repúdio ao racismo. Foi apenas com a Constituição de 1988 que se reconheceu na lei a necessidade de valorizar e fomentar as culturas afrobrasileira e indígena, concedendo a esses dois segmentos étnicos da população brasileira o direito à terra, fundamental para a garantia de reprodução física, social e cultural desses povos.
Apesar dessa importante mudança no plano formal, vitória política do movimento negro brasileiro, a realidade mostra que o racismo ainda prevalece na sociedade e nas instituições públicas, impedindo que direitos fundamentais, como o acesso à terra para as comunidades quilombolas, se realizem passados mais de 25 anos de vigência da Constituição.
O reconhecimento oficial e abstrato da lei não se confirmou na realidade e as comunidades quilombolas continuam a enfrentar muitos obstáculos para ter garantido o direito constitucional |
Letargia estatal
A demanda por uma política pública de reconhecimento de direitos territoriais para as comunidades quilombolas é tão antiga quanto a própria escravidão. André Rebouças (1838-1898), engenheiro negro e abolicionista, foi um dos maiores defensores da realização de uma reforma agrária que viabilizasse acesso à terra para a população negra após a abolição da escravidão. Se a causa é legítima e defendida há séculos, foi apenas com o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988 que o ordenamento jurídico brasileiro reconheceu esse direito oficialmente. Contudo, o reconhecimento oficial e abstrato da lei não se confirmou na realidade e as comunidades quilombolas continuam a enfrentar muitos obstáculos para ter garantido o direito constitucional.
Os dados da Fundação Cultural Palmares atualizados até 25 de outubro de 2013 indicam que existem 2.408 comunidades quilombolas oficialmente reconhecidas pela instituição e que outras 287 aguardam a emissão do certificado de reconhecimento, totalizando 2.695 comunidades quilombolas que, em conformidade com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, reconhecem e manifestam suas identidades étnicas coletivas. Muitas dessas comunidades pleiteiam junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a titulação dos seus territórios.
Contudo, o Estado não dá uma resposta adequada à demanda. Atualmente o Incra conta com 1.281 processos administrativos de titulação de territórios quilombolas abertos, mas apenas 164 processos superaram a primeira fase, com a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), composto por estudos técnicos e científicos que dão guarida à caracterização espacial, econômica, ambiental e sociocultural das terras ocupadas pelos quilombolas. É o primeiro documento a ser produzido nos processos de titulação, que só se finaliza com o julgamento das contestações eventualmente apresentadas.
O andamento dos processos após a fase de elaboração do RTID também não é promissor. Dos 164 processos com RTID finalizado, 78 tiveram a portaria de reconhecimento – instrumento que finaliza a fase de estudos e abre a fase de desapropriação para titulação dos territórios – expedida pelo Incra. E apenas 21 territórios foram efetivamente titulados. Assim, os dados mostram o que o Incra, em mais de dez anos de vigência do Decreto federal 4887/03, deu conta de responder, no que diz respeito à efetiva titulação dos territórios, a apenas 1,64% da demanda.
Quando analisados comparativamente os ritmos de conclusão de RTIDs, de expedição de portarias e de territórios titulados percebe-se uma acentuada queda, principalmente quanto aos RTIDs e portarias de reconhecimento, a partir de 2010. A queda no ritmo de trabalho do Incra, desacompanhada de qualquer justificativa técnica e justamente quando a política parece tomar algum fôlego positivo, evidencia o recuo político do governo federal na titulação dos territórios, cedendo às pressões de ruralistas, mineradoras e de setores do próprio governo, como a Marinha e o Exército, que têm disputas com quilombolas em Alcântara (MA), Marambaia (RJ) e Salvador (BA).
O cenário de atuação pífia do Estado brasileiro para a efetivação do direito à terra das comunidades quilombolas obriga uma reflexão sobre as causas dessa inconstitucional letargia que viola, entre outros direitos, o da garantia da duração razoável do processo, prevista no art. 5º da Constituição. Entre os principais sintomas da letargia estatal está a ausência de estrutura necessária para que o Incra possa fazer frente à demanda. Mas isso é apenas sintoma de uma decisão política do governo federal.
Os problemas estruturais do Incra para dar cabo da política de titulação vão da falta de funcionários (antropólogos, técnicos agrícolas, agrimensores etc.), passam pela ausência de recursos e estrutura para a realização de atividades (diárias para trabalhos em campo, veículos, motoristas) e chegam à excessiva burocratização do procedimento previsto na Instrução Normativa nº 57, norma que rege o trabalho do Incra na matéria. Ingerências políticas da presidência do órgão, alterando o fluxo de andamento dos procedimentos administrativos (Memo circular 37/DF/INCRA, de 28/12/2012 e Mem. 01/2013-P/Circular de 03 de janeiro de 2013), sem qualquer justificativa técnica ou consulta às comunidades, são outros elementos que corroboram para a fraca atuação.
Os resultados obtidos pela autarquia nos últimos anos, ainda que muito modestos, são frutos do árduo trabalho de seus servidores públicos e de órgãos como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), que estão realmente comprometidos com a efetivação de direitos e que ousam enfrentar a deliberada política de paralisia adotada pela presidência do Incra. Esses resultados, por óbvio, também são conquistas obtidas pelo movimento social quilombola, em especial pela atuação e fortalecimento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Frise-se que as disputas políticas e as ameaças vindas do Poder Legislativo e do Poder Judiciário não foram capazes, nos últimos dez anos, de impor qualquer medida concreta que justificasse os péssimos resultados.
O grande desafio político de combater esses possíveis retrocessos legislativos, no que diz respeito ao governo federal, deveria ter como principal ação a aceleração dos processos de titulação |
Tramitam no Congresso Nacional diversos projetos de lei que atacam diretamente os direitos dos quilombolas. Uma das principais ameaças é o Projeto de Emenda Constitucional 215, que pretende transferir do Poder Executivo para o Legislativo a competência para decidir sobre a titulação das áreas. Contudo, a PEC 215 e outros projetos de lei não têm, até o presente momento, capacidade alguma de interferir no trabalho do Incra. O grande desafio político de combater esses possíveis retrocessos legislativos, no que diz respeito ao governo federal, deveria ter como principal ação a aceleração dos processos de titulação.
Também não é possível afirmar que o Poder Judiciário esteja criando grandes problemas para a continuidade do trabalho do órgão. Ainda que a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), seja uma grave ameaça ao Decreto federal 4887/03, não há nenhuma determinação do STF que impeça o Incra de realizar seu trabalho. Em que pese existam algumas poucas ações judiciais que em casos específicos tenham determinado a paralisação dos trabalhos, importantes decisões de tribunais têm respaldado sua atuação, determinado celeridade nos processos administrativos e ratificado a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03.
Em 2010 o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão que teve como voto condutor a posição adotada pelo hoje ministro do STF Luiz Fux, refutou ação de reintegração de posse da Marinha brasileira contra um quilombola residente na ilha da Marambaia, localizada no Rio de Janeiro (Recurso Especial nº 931060). Nesse precedente o STJ adotou postura que reforça a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03. Em dezembro de 2013 a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região afirmou a constitucionalidade do decreto por 12 votos a 3, confirmando a interpretação de que o art. 68 do ADCT da Constituição encerra um direito humano autoaplicável (Autos da Arguição de Inconstitucionalidade nº 5005067-52.2013.404.0000). A Adin 3239 e outras ações judiciais são graves ameaças aos direitos territoriais das comunidades quilombolas, mas até o momento não tiveram impacto significativo para justificar a pouca eficiência do Incra.
As dificuldades para a efetivação da política pública estão atreladas às decisões políticas que o governo federal tem tomado sobre a questão. Ao que tudo indica a omissão ilegal do Estado está atrelada a uma leitura política que não admite que os quilombolas sejam importantes sujeitos da transformação e do crescimento econômico, social e político do Brasil. Se por um lado a política de titulação dos territórios é ineficiente, por outro as políticas de Estado para o agronegócio, a mineração, os grandes projetos como Belo Monte e os grandes eventos como a Copa do Mundo andam a passos largos.
Expoentes da luta contra os direitos das comunidades quilombolas, como a senadora Kátia Abreu (PMDB/TO), de grande trânsito no governo federal, são contumazes em afirmar impropérios para defender seus interesses econômicos e políticos contra a realização de direitos constitucionais dos quilombolas. De forma irresponsável e consciente a senadora afirma que “basta eu me juntar a cinco pessoas, dizermos que somos remanescentes de quilombos e definirmos a área que queremos e a Fundação Palmares (ligada ao Ministério da Cultura) nos dá o reconhecimento definitivo e encaminha o processo ao Incra”. Qualquer pessoa minimamente comprometida com a realidade sabe que o processo de autoidentificação e de titulação das terras quilombolas está muito longe de ser o que afirma a senadora. Se assim o fosse as 2.408 comunidades quilombolas brasileiras já teriam suas áreas tituladas.
Argumentando defender uma suposta segurança jurídica e o direito de propriedade, o que a senadora faz é a defesa da concentração fundiária e da exclusão de negros e índios do acesso à terra que lhes garante a reprodução física, social e cultural. Ademais, não custa lembrar que o Brasil é o segundo país do mundo em concentração fundiária, pois segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1% dos proprietários rurais controla 45% de todas as terras cultiváveis da nação, ao passo que 37% dos proprietários rurais possuem apenas 1% da mesma área. Se país rico é país sem miséria, não se pode buscar erradicar a pobreza extrema sem perseguir a desconcentração fundiária. Nunca na história deste país se pôde observar a estruturação de uma política pública séria de democratização do acesso à terra, seja na política de reforma agrária ou nas políticas de efetivação de direitos territoriais dos povos tradicionais e indígenas. Coube historicamente aos movimentos sociais o papel de lutar por esse direito. Nesse sentido, caberá à sociedade brasileira impor ao Estado uma mudança de postura política no enfrentamento da questão agrária.
Se no passado os ruralistas se opunham à abolição da escravidão e reivindicavam uma indenização casos os negros escravizados fossem libertos, hoje, com a roupagem moderna do agronegócio, se opõem à luta centenária dos herdeiros políticos do abolicionismo protagonizado pelo negro na conquista da terra. Hoje soa como absurdo defender a posição dos escravocratas do fim do século 19, assim como ao final do século 21 soará, quero acreditar, um absurdo a posição da senadora Kátia Abreu.
*Fernando Prioste é advogado popular e coordenador da Terra de Direitos