No auditório lotado da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo, com um plateia preponderantemente jovem, está quase terminando um bate-papo com a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik sobre “Resistências no país do futebol” (título do livro lançado naquela oportunidade), quando um rapaz faz uma intervenção quase acanhada: “É uma pergunta simples para a Raquel. Eu sou contra essa copa, eu vou pra rua [nas manifestações]. Como posso justificar assistir aos jogos na TV apesar da minha posição política?”. O auditório cai na risada.
“Nossa questão não é impedir a copa, nossa questão é mudar o país, temos coisa muito mais importante a fazer, e mais complexa”, responde sorridente a arquiteta. Professora da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP, Raquel recentemente deixou o cargo de relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, que exerceu de 2008 a maio de 2014. Neste período, tornou-se uma referência internacional no tema violações de populações afetadas por megaprojetos esportivos, sobre o qual elaborou um relatório abordando os casos da Copa na África do Sul, das Olimpíadas na China e dos jogos da Comunidade Britânica na Índia, apresentado à ONU em 2010.
Mais recentemente, Raquel Rolnik tem se destacado como uma das principais analistas e críticas da captura corporativa dos espaços urbanos, dos desmandos e das graves violações de direitos e leis em nome da Copa do Mundo 2014 no Brasil. Este sequestro corporativo dos eventos esportivos, de acordo com a urbanista, é o problema principal que deveria incomodar, e não algum conflito ético de apaixonados por futebol.
“Quando apresentei o relatório [da ONU], descobri a perversa relação entre as políticas neoliberais urbanas e a organização de megaeventos esportivos, e a ligação entre estes dois elementos e a massiva espoliação dos direitos dos setores mais vulneráveis na cidade. Não por acaso os jogos, ao longo de sua história, foram, a partir de Los Angeles, tomados por operações de marketing, organizadas não pelos Estados mas por patrocinadores privados. Tem a ver com a globalização dos mercados imobiliários e financeiros, e a financeirização da produção nas cidades e o quanto essas plataformas dos megaeventos são uma vitrine de tudo e da própria cidade, como objeto de venda”, resume a urbanista.
Nesse sentido, continua Raquel, a organização de um evento como a Copa no Brasil, o pais do futebol, permite que violações em vários âmbitos possam ocorrer em situações que de outra forma não ocorreriam, já que o nacionalismo do futebol é usado para justificar o que especialistas estão chamando de Estado de Exceção. Ou seja, a governança real da Copa há muito tempo não está mais na mão dos Estados e das instituições públicas. Em tempos de hegemonia do capital financeiro sobre o capital produtivo, os grupos que definem a macroeconomia são os mesmos que comandam as operações sob responsabilidade da Fifa.
“Vamos pegar o exemplo a Cidade da Copa no Recife, que foi construída por Parcerias Público-Privadas. Ela foi construída numa enorme área pertencente ao governo do Estado. Ali se decide que um consorcio de empreiteiras liderado pela Odebrecht vai pegar um recurso do BNDES para construir um estádio; e, em contrapartida, vai receber um terreno enorme, público, para fazer um desenvolvimento imobiliário privado, escritórios, moradias de alto nível, shopping, etc. E um BRT (corredor de ônibus, Bus Rapid Transit em inglês) ligando Recife ao local. No Rio, aconteceu a mesma coisa, com o mesmo grupo. Isso é mais radical de tudo que tínhamos visto antes. Isso é entregar um pedaço inteiro de cidade. Aí eu insisto: a direção perigosa não é a corrupção, muito longe disso, a questão perigosa é quando a gente pega uma cidade e diz é tua, com as pessoas dentro, e sem nenhuma mediação política. Isso é que a Copa permitiu”.
As lutas na rua
Mas as manifestações nas ruas, não têm alterado, ao menos um pouco, este quadro? Ou pelo menos questionado? A recente vitória do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que, depois de uma forte pressão, recebeu do governo federal a promessa de atendimento de parte de suas demandas relativas à moradia, o que significa?, pergunta a plateia.
“Estamos vivendo um novo ciclo”, avalia Raquel. Um ciclo que se iniciou com as lutas pela redemocratização nos anos 80, e passou pelos movimentos sindicais e sociais, que foram conquistando novas institucionalidades e levaram à inclusão de novos partidos da base democrática no mainstream da política brasileira. Mas este processo, principalmente no período mais recente, não responde mais a todas as demandas da população, como se viu nas manifestações de junho de 2013, o que provoca rearranjos por vezes desfavoráveis ao processo democrático. “Numa situação como esta que estamos vivendo, como não há forças no campo partidário que ecoem de forma direta e orgânica a voz das ruas, o perigo de totalitarismo, da militarização, está colocado. Fico super incomodada quando faço uma crítica à Copa e vejo o carinha que jamais entrou num hospital ou transporte público dizer ‘nossa que absurdo esse governo, gastando monte de dinheiro com estádio, devia gastar em hospital, é tudo por causa da corrupção, esses caras são muito corruptos. É por causa do Lula, dos Petralhas’. O que se gastou com a copa não é nada perto dos juros pagos aos banqueiros, do que a gente transfere todo dia pras empreiteiras, pros grandes grupos privados na área de saúde. Isso é muito mais grave. Corrupção de 10% do contrato é de menos nessa situação. Os descontentamentos acabam se misturando”, pondera a urbanista.
Já sobre os resultados das manifestações dom MTST, negociados com o governo – um projeto para a construção de cerca de 2 mil moradias no terreno da ocupação Copa do Povo, nas cercanias do Itaquerão, que ainda depende da aprovação do Plano Diretor de São Paulo; a criação de uma Comissão Interministerial para a prevenção de despejos forçados; e medidas que fortalecem a gestão direta dos empreendimentos de moradias populares -, Raquel é cuidadosa. “Vejo a conquista do MTST como fruto das mobilizações de rua, mas não vejo como algo que vá marca uma mudança significativa, nem nas mobilizações de rua nem nas suas pautas. É um episódio inscrito numa diversidade de episódios que não revertem nada, não mudam nada e não constroem uma outra alternativa. É uma forma conjuntural do movimento conquistar pautas para a sua base, e do governo apresentar uma resposta numa conjuntura pré-eleitoral. Não é uma possibilidade de superação das questões que estão colocadas”, avalia a arquiteta. E arremata: “Junho pra mim foi uma espécie de terremoto, as placas se reorganizam. O que existe de mais atrasado e autoritário também se reorganiza e recoloca. Ao mesmo tempo, lutas importantes aconteceram em junho de 2014, como a do MTST, os professores nas ruas com sua greve; enfim, outros elementos como esses estão presentes e fazem parte dessa reorganização das forças políticas no país”.
Mas e quanto assistir aos jogos da Copa sem peso na consciência? Raquel explica que o desafio, agora que a Copa está ocorrendo, é mudar o foco da luta para não se ficar sem bandeira. Foi importantíssima a resistência do “Não Vai Ter Copa” e do “Copa pra Quem”, explica. “Mas assistir aos jogos não muda em nada a nossa luta. A Copa e as olimpíadas são uma vitrine de produtos globalizada que foi muito sabiamente ocupada pelo movimento social pra fazer ecoar suas demandas. Está feito. Agora temos que encontrar outras plataformas. No Rio ainda teremos as olimpíadas. E em São Paulo, qual será nossa plataforma? Porque conseguimos resistir, dizer não, mas não conseguimos construir outra coisa? Temos que nos meter nessa tarefa”, conclui.
Clique aqui para ver a íntegra da fala de Raquel Rolnik, ocorrida no dia 10 de junho durante o lançamento do livro “Resistências no País do Futebol – A Copa em contexto”, editado pela Fundação Rosa Luxemburgo
Texto originalmente publicado no site da Fundação Rosa Luxemburgo