O Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM) denunciou o empresário Luiz Cláudio Morais Rocha, conhecido como “Carioca”, pela prática de trabalho escravo associada ao ciclo de exploração econômica da piaçava nas regiões do Alto e Médio Rio Negro, no Amazonas. Piaçava é uma palmeira amazônica da qual é retirada a matéria-prima (fibra) para fabricação de vassouras, escovões e artesanatos.
Durante operação conjunta realizada pelo MPF, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), entre 26 de abril e 11 de maio deste ano, foram resgatados 13 trabalhadores que atuavam na extração da piaçava nos municípios de Barcelos (a 405 quilômetros de Manaus) e Santa Izabel do Rio Negro (distante 846 quilômetros da capital).
Foi constatado que, pelo menos entre novembro de 2013 e abril de 2014, o empresário Luiz Cláudio Morais Rocha reduziu 13 trabalhadores à condição análoga à de escravo, restringindo a liberdade deles em razão de dívidas decorrentes do sistema de aviamento imposto, bem como submetendo-os a jornadas exaustivas e a condições degradantes na atividade de extração e beneficiamento de fibra de piaçava de mata nativa.
O relatório da fiscalização também apontou que o empresário obrigou os trabalhadores a usarem mercadorias por ele repassadas para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida e omitiu, em documentos de Previdência Social – como folha de pagamento, Carteira de Trabalho e Previdência Social, documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as obrigações da empresa perante a previdência social – o nome dos trabalhadores, seus dados pessoais, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços e sua remuneração, para evitar provas do crime.
Entre os trabalhadores identificados como vítimas da ação de “Carioca”, estavam indígenas da etnia Yanomami. Foi constatado que alguns dos trabalhadores viviam submetidos à condições semelhantes à de escravidão há mais de dez anos.
Na denúncia, o MPF/AM pede à Justiça Federal a condenação do empresário Luiz Cláudio Morais Rocha pelos crimes de redução à condição análoga à de escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal, de frustração de direito assegurado por lei trabalhista, constante do artigo 203 do mesmo código, e de falsificação de documento público, relativo ao artigo 297 do Código Penal, todos em relação aos 13 trabalhadores identificados pelas equipes de fiscalização.
O MPF/AM quer ainda que seja determinado ao empresário o pagamento de R$125.472,94, que devem ser revertidos aos 13 trabalhadores, como reparação mínima pelos danos materiais causados.
Sistema de aviamento – O ciclo produtivo da piaçava inicia-se com a contratação verbal do piaçaveiro pelo patrão. Os piaçaveiros (ou “piaçabeiros”) são trabalhadores, indígenas ou não, que, sob a promessa de futuro pagamento, são arregimentados e levados à “colocação”, piaçaval ou local de instalação de barracas, para ali trabalharem na extração, corte e beneficiamento da piaçava.
Os “patrões” são os comerciantes que adquirem dos piaçaveiros a piaçava extraída, cortada e beneficiada. Eles geralmente são conhecidos como os donos das colocações nas quais os extrativistas realizam, mediante “autorização”, a extração da piaçava.
No sistema de aviamento, os patrões costumam fornecer aos piaçaveiros meios de trabalho – como barcos, combustível, ferramentas de trabalho –, alimentos e outros itens por preços abusivos, como uma espécie de “adiantamento” que os permite iniciar o trabalho.
Diante do difícil acesso do local de trabalho a armazéns ou comércios da cidade, o trabalhador se vê obrigado a adquirir essas mercadorias, vendidas sob preços abusivos que chegam a gerar um lucro de 300% para o patrão, em alguns casos. As dívidas surgidas desses adiantamentos costumam consumir quase toda – quando não toda ou ser mesmo superior a ela – a remuneração devida pelos patrões aos piaçaveiros em razão da venda da piaçava. Estabelece-se, assim, um ciclo de repressão da força de trabalho através da dívida e outros mecanismos de dominação.
Muito comumente, o piaçaveiro inicia o trabalho e, quando chega o momento de entregar a fibra, atualmente remunerada em média com R$ 0,70 o quilo, e de receber seu pagamento, descobre que não extraiu o suficiente de piaçava. Dessa forma, ele se vê constrangido a voltar ao trabalho no piaçaval, sujeito a novas dívidas, para cobrir o débito anterior para com o patrão. Com isso, as dívidas do trabalhador vão aumentando, de modo que ele fica cada vez mais dependente do patrão e impossibilitado de pôr fim a essa relação, que se traduz em verdadeira servidão por dívida ou condição análoga à de escravo.
O regime de servidão por dívida é proibido por normas internacionais, como as Convenções 29 e 205 da Organização Internacional do Trabalho, e pela legislação brasileira, em normas como a Consolidação das Leis do Trabalho e o Código Penal. “Esse sistema limita a liberdade do trabalhador, porque o força a manter a relação empregatícia até que seja capaz de sanar as dívidas anteriormente contraídas, o que, em termos práticos, nunca ocorrerá, pelo fato de suas futuras remunerações já estarem inteiramente ou quase inteiramente comprometidas com essas e novas dívidas necessárias à subsistência”, afirmou a procuradora Polyana Washington de Paiva Jeha, na denúncia apresentada à Justiça Federal.
O relatório resultante de fiscalização no local indicou que muitos dos produtos cobrados dos trabalhadores são de fornecimento obrigatório pelo patrão, como é o caso de botas e facões para o trabalho, da gasolina e do óleo diesel para o transporte de trabalhadores e mercadorias. Os gastos com alimentação também não poderiam ser cobrados integralmente, já que, de acordo com a Lei nº 5.889/73, o limite máximo de desconto que o empregador rural pode fazer a título de alimentação é de 25% sobre o salário-mínimo.
Condições degradantes de trabalho – Segundo o relatório da fiscalização, nos locais em que permaneciam ou trabalhavam os trabalhadores não havia qualquer infraestrutura, somente os próprios locais improvisados por eles mesmos para pernoite. Não havia banheiros nem fornecimento de água potável.
Como o empregador não fornecia alojamento e dada a necessidade de permanecerem nas proximidades dos pontos de extração da fibra por conta da dificuldade de acesso a esses locais, os trabalhadores eram obrigados a improvisar espaços para servirem como áreas de vivência e locais para pernoite. Dessa forma, 11 trabalhadores pernoitavam em barracos, um dormia em um casebre de madeira e dois trabalhadores pernoitavam em pequenas embarcações atracadas nos igarapés próximos às frentes de trabalho de cada grupo.
Um dos barracos um barraco foi improvisado com forquilhas de madeira, nas quais foram dispostos outros galhos de árvores de modo a formar uma grande armação triangular, que foi coberta com folhas secas de caranã, retiradas da mata nos arredores desse local. As laterais dessa estrutura eram completamente abertas e o solo era de terra. Existia ainda uma espécie de mezanino ou segundo andar, feito de galhos de árvores, ao qual se chega com escada feita também de galhos e que permanecia apoiada nesse outro andar e no chão. De acordo com o trabalhador, essa estrutura foi construída porque, na época da cheia, o rio inunda o barraco e as águas chegam até a altura desse “segundo andar”, chamado de “jirau alto” pelo trabalhador.
A água consumida era captada por eles mesmos no rio ou nos igarapés às margens dos quais os trabalhadores permaneciam instalados e estava sujeita à contaminação ocasionada pela enxurrada e pelo escoamento de águas pluviais, folhas e outros detritos, bem como pela utilização por animais silvestres. Também não havia energia elétrica em nenhum desses locais.
A rotina de trabalho dos piaçaveiros era extenuante: de segunda a sexta-feira, eles extraíam as fibras da piaçava, sendo que parte deles ainda reservava o final do dia para beneficiar o produto, penteando e amarrando a piaçava. Os sábados e domingos eram geralmente reservados apenas para o beneficiamento do produto, penteando e amarrando a piaçava. A extração por si só já era muito trabalhosa porque o trabalhador tinha que percorrer longas distâncias para chegar à palmeira de onde era extraída a piaçava, por acessos difíceis, encharcados com lama, percorrendo às vezes mais de uma hora de caminhada e, na volta, ainda tinha que trazer, nas costas, as fibras da piaçava que pesavam uma média de 50 quilos.
Outras medidas – O MPF e o MPT têm atuado também para garantir a regularização da cadeia produtiva da piaçava, para evitar a perpetuação do modelo baseado no sistema assemelhado à escravidão. Em maio deste ano, o MPF/AM entregou recomendação a representantes de órgãos e autarquias estaduais e federais que atuam nas áreas de meio ambiente, produção rural, trabalho e emprego e política fundiária no Amazonas, para que assumissem compromissos formais, com prazos definidos, no sentido de regularizar a cadeia produtiva da piaçava. A reunião de discussão e entrega do documento contou com a participação do MPT.
Entre as medidas apontadas na recomendação estavam a implementação de obrigações previstas no acordo de cooperação técnica e no plano de trabalho já elaborados e referendados por diversos órgãos relacionados ao setor extrativista no Estado, com a participação efetiva dos piaçaveiros, e a concretização da regulamentação do decreto de subvenção da piaçava.
O MPF recomendou ainda a realização de ações permanentes de formação e capacitação dos piaçaveiros, inclusive em relação à conscientização quanto às condições de trabalho nos piaçavais, e a exclusão dos patrões que exploram a piaçava sob o regime de aviamento das tratativas de regularização da cadeia, para não legitimar essa prática ilegal.
O MPF e o MPT têm acompanhado o cumprimento das medidas junto aos órgãos envolvidos. Reuniões na região de Barcelos e Santa Izabel do Rio Negro foram realizadas, com a participação de órgãos do governo e de organizações da sociedade civil, para discutir os termos das propostas de organização de cooperativas junto aos indígenas e ribeirinhos para viabilizar financiamento e estruturação da cadeia produtiva da piaçava pelo governo.
No âmbito trabalhista, atuação do MPT garantiu o bloqueio de R$ 255.472,94 em bens e valores do empresário Luiz Cláudio Morais Rocha e da empresa de propriedade dele, Irajá Fibras Naturais da Amazônia (L. C. Morais Rocha Comercial). A indisponibilidade de bens e valores foi concedida em caráter liminar pela Justiça do Trabalho no Amazonas e teve por objetivo garantir o pagamento das verbas rescisórias e indenizações dos 13 trabalhadores resgatados em condições de trabalho similares às de escravos.
Texto originalmente publicado na página do Ministério Público Federal no Amazonas
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