Contaminação por mercúrio, matança de peixes, desmatamento, remoção de comunidades e alterações no rio Tapajós devem ser o saldo amargo deixado pela construção de um conjunto de hidrelétricas na bacia do rio Tapajós, no Pará. A maior delas é a usina de São Luiz do Tapajós, que vai consumir R$ 30 bilhões e remover pelo menos 2,5 mil pessoas de comunidades tradicionais e aldeias indígenas, além de alterar o meio ambiente e a economia local de toda a região. Para conhecer a vida do rio e dos pescadores que estão na rota das usinas, a Repórter Brasil navegou por 280 quilômetros do Tapajós durante dez dias.
Dos rios mais extensos do Brasil, o Tapajós percorre 800 quilômetros desde o norte do Mato Grosso até chegar à cidade paraense de Santarém, onde desagua no rio Amazonas. No percurso, o rio forma ilhas, praias e lagoas, que se modificam de acordo com as chuvas. O rio alimenta também igarapés, cursos de água típicos da Amazônia que são ricos em vegetação e onde vivem certos peixes e jacarés. E cria as florestas de igapós, região repleta de árvores com raízes submersas onde ocorre a desova de peixes e onde vivem anfíbios típicos da região.
Uma das principais controvérsias é que os estudos de impacto ambiental da usina não levantaram o quanto dessa riqueza local será destruída. O Ibama, órgão ambiental responsável pelo licenciamento do empreendimento, ainda não aprovou os relatórios feitos pelo Grupo de Estudos Tapajós. O consórcio é liderado pela Eletrobrás e integrado pelas empresas que têm interesse na obra: Eletronorte, Camargo Correa, Copel, Endesa Brasil, Cemig, Neoeergia, além das francesas EDF e GDF Suez.
Foram mais de cem dúvidas e questionamentos levantados pela equipe técnica do Ibama, que remeteu os relatórios de volta às empresas. A Eletrobras informou que ainda não concluiu as respostas. Segundo o geógrafo Rodrigo Herles, assessor técnico da Diretoria de Licenciamento do Ibama, entre os pontos questionados estão a falta de estudos sobre o impacto ambiental nas regiões acima e abaixo do reservatório da hidrelétrica e sobre o impacto social e econômico sobre a pesca ornamental (peixes de aquário) e artesanal (peixes para consumo das comunidades tradicionais). Além do risco de contaminação por mercúrio, que não foi devidamente estudado.
Foram mais de cem dúvidas e questionamentos levantados pela equipe técnica do Ibama, que remeteu os relatórios de volta às empresas
O questionamento começa no levantamento sobre o tamanho do patrimônio ambiental que a usina vai afetar. Segundo estudo do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), o Tapajós conta com 494 espécies de peixes. Já segundo o estudo de feito pelo grupo interessado em construir a obra, a região conta com apenas 352 espécies.
Berço de rica biodiversidade, com frequência espécies novas são achadas na região. Em novembro do ano passado, uma expedição com pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará descobriu novas espécies no igarapé Açu, que fica na Floresta Nacional do Tapajós (Flona). A região fica no local onde será construído o reservatório da usina. O novo peixe é um tipo de “piaba”, semelhante ao encontrado em outros rios do país, mas com coloração, anatomia e porte diferentes. A descoberta foi feita pelo biólogo Cárlison Silva de Oliveira, que encontrou 117 espécies de peixes em apenas 22 igarapés.
Em análise crítica ao relatório de impacto ambiental da Eletrobras, especialistas convocados pelo Greenpeace criticaram a metodologia e os resultados do documento elaborado pelas empresas. A Eletrobras não quis comentar o relatório da organização, mas ele gerou reação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), órgão responsável pela aprovação da licença ambiental. Representantes do Ibama reuniram-se no começo de março com quatro especialistas responsáveis pelo relatório e começaram a analisar o texto da ONG para apresentar questionamentos à Eletrobras.
“Estas fragilidades geram dúvidas a respeito da qualidade das informações obtidas, que podem ter sido originadas a partir de identificações errôneas e mistura de espécies”
De acordo com os especialistas, erros na identificação de espécies comprometem o estudo das empresas interessadas no leilão. Há espécies identificadas duplamente e outras que não são citadas. Segundo o Greenpeace, houve erro na identificação e falta de informações sobre peixes mais conhecidos do rio, como curimatã e pirarucu. “Estas fragilidades geram dúvidas a respeito da qualidade das informações taxonômicas (de classificação dos seres vivos) e biológicas obtidas, que podem ter sido originadas a partir de identificações errôneas e mistura de espécies”, conclui o relatório.
Para o pesquisador Jansen Zuanon, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), responsável pela análise crítica do relatório sobre a vida aquática, houve pouco esforço na coleta manual de peixes do Tapajós, sobretudo nas sessões de mergulho na região dos pedrais, justamente onde será instalado o reservatório da usina. Segundo ele, isso compromete a avaliação da extensão dos danos aos peixes e outros animais que vivem no rio.
Até os estudos de impacto oficiais, feito pela Eletrobras e outras empresas interessadas na obra, admite que as áreas de contenção da barragem, as chamadas de “ensecadeiras”, desviarão trechos do rio, causando a morte de peixes. Ao reduzir o volume de água nos pedrais de São Luiz, ambiente ideal para reprodução de diversas espécies, e ao criar um paredão que serve de obstáculo para o deslocamento dos animais, a obra coloca em risco a sobrevivência de peixes, botos cor-de-rosa, ariranhas e jacarés-açus.
“Será um desaparecimento rápido com consequência brusca para a fauna local, o que pode ocasionar perda de animais e diminuição de suas populações”
O estudo de impacto oficial também revela a perda de lagoas permanentes e as que se formam apenas em algumas épocas do ano. Além do alagamento de pedrais, corredeiras, praias e ilhas nos rios Tapajós e Jamanxim. O impacto se estende por 38 mil hectares (380 quilômetros quadrados). Desse total, metade da área terá de ser desmatada, perdendo floresta nativa e formações de água muito específicas da região, que são responsáveis pela sobrevivência de espécies que só existem ali.
“Será um desaparecimento rápido com consequência brusca para a fauna local, o que pode ocasionar perda de animais e diminuição de suas populações”, lê-se no relatório de impacto da Eletrobras.
Uma das principais críticas ao estudo de impacto ambiental é que ele foi focado sobretudo na região que será alagada, que compreende as comunidades de Pimental, Montanha Mangabal (que terá uma parte submersa) e aldeias indígenas Munduruku. As áreas abaixo e acima da barragem não foram devidamente estudadas. Essa falha é apontada pelas comunidades tradicionais, prefeituras dos municípios envolvidos, como Santarém e Itaituba, ONGs e pelo Ministério Público Federal do Pará.
As falhas nos estudos de impacto poderiam ser menores se o processo tivesse incluído as populações locais, maiores conhecedores das espécies locais e da dinâmica do rio. A ausência de uma Consulta às comunidades tradicionais foi alvo de ação do Ministério Público Federal de Santarém. O órgão denuncia que o empreendimento é obrigado a ouvir as comunidades locais de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, do qual o Brasil é signatário.
População local ignorada
Ao descer o rio Tapajós, de Itaituba a Santarém, o que mais se vê nas colônias de pescadores é o temor com o futuro, sob o risco da construção da hidrelétrica. Em Pimental, vila de pescadores que será completamente alagada, os cerca de 700 moradores não sabem para onde vão depois de serem removidos, nem como serão indenizados.
Em busca de peixes ornamentais, como a “borboleta” e os “acarás”, Risonildo Lobo dos Santos, o Seu Miga, usa o puçá, uma rede pequena de nylon fino, e retira os peixinhos delicadamente com as mãos para não machucá-los. Encontra os cardumes na beira do rio ou nos igarapés.
Da Associação de Moradores e Pescadores de Pimental, seu Miga é um dos nomes mais respeitados da comunidade e um dos poucos pescadores ornamentais. A maioria pesca “peixes grandes”, que são vendidos logo pela manhã, transportados em pequenas motocicletas para as cidades vizinhas. As vendas têm de ser rápidas porque as comunidades são simples, não contam com frigoríficos nem esquemas profissionais de distribuição de peixes. A pesca é artesanal.
No barco coalhado de redes que segue lentamente de Itaituba a Santarém, Raimundo Nonato Firmino encara o Tapajós até cochilar sobre o parapeito. Tem a magreza, as manchas, rugas e cicatrizes profundas do pescador Santiago, consagrado por Hemingway em “O Velho e o Mar”. Mas o que mais o faz lembrar Santiago, que em uma onda de azar ficou 84 dias sem pegar um peixe, é a fragilidade.
Raimundo é pescador em Barreiras desde jovem. É o que sabe fazer. Tem 72 anos, oito filhos e aguarda a chegada do décimo quarto neto.
“Rapaz, não sei nem explicar o que eu sinto. Na minha mente, não era para acontecer isso. Vai prejudicar a gente aqui porque o rio vai baixar. Vai prejudicar as tartarugas, a desova dos peixes, que vão diminuir. Deus é quem sabe se eu vou viver para ver. Mas meus filhos e meus netos vão e eu acho isso muito triste”, lamenta.
Assim como o Greenpeace mostrou as falhas no relatório de impacto ambiental sobre os peixes e a própria Eletrobras admitiu que igapós e igarapés vão desaparecer, os pescadores locais já sabem que as alterações estão a caminho. Em Barreiras, o maior risco é a perda do piau, um dos peixes símbolos da comunidade.
“O piau desova na ilha de igapó (vegetação aquática típica da Amazônia), que não vai mais encher por causa da barragem. O período de pesca dele é de abril a julho e, nos dois primeiros meses, dá para pescar até 15 quilos por dia só dele, que a gente vende a R$ 11 o quilo. Mas a gente também não sabe o que vai acontecer com o pirarucu, tambaqui, curimatã, pacu, mapará, branquinho, que se pesca por aqui. Vai ver vou ter de ir embora”, fala Edson Carlos Porto, 41 anos, que largou os estudos na quarta série para trabalhar na pesca com o pai.
Peixe contaminado
Uma das denúncias mais graves, entre as que pesam sobre a os impactos ignorados pelos estudos oficiais, é a contaminação por mercúrio.
Duas comunidades pesqueiras já são monitoradas desde os anos 90 por pesquisadores e autoridades sanitárias devido à contaminação de mercúrio causada pelo solo amazônico, pelo despejo do metal proveniente do garimpo e pelo desmatamento. Moradores de Barreiras (que fica rio abaixo de onde será o reservatório) e São Luiz do Tapajós (três quilômetros acima) passam por exames periódicos de medição do metal desde os anos 90.
A recomendação é para que as pessoas consumam menos peixe, explica a técnica de enfermagem Vaneide Amorim dos Santos, que trabalha no posto médico de São Luiz, onde há cartazes pedindo aos pescadores que comam menos peixe. Vaneide admite, no entanto, que é difícil modificar a dieta dos moradores. Um quilo de carne custa de15 a 20 reais, enquanto o pescador vende o quilo de seu pescado por muito menos. A reportagem chegou a comprar um quilo de mapará por R$ 3. Cinco quilos de mapará valem um quilo de carne. Para o pescador, o mapará se pesca em minutos, de graça, na porta de casa.
A hidrelétrica será um agravante nesse processo de contaminação por mercúrio, que comprovadamente causa danos cerebrais e fetais. Munido de pesquisas e documentos internacionais, o ex-superintende regional de saúde e neurocirugião Erik Jennings fez a denúncia durante audiência pública promovida pelo Ministério Público do Pará..
Jennings afirmou que a barragem poderá aumentar o nível de contaminação por mercúrio de humanos, algas, botos e, sobretudo, dos peixes que se alimentam de outros peixes, como o mapará. O neurocirurgião explicou que um caso do começo do século passado alertou o mundo para a contaminação do metal e de um veneno produzido a partir dele, o metilmercúrio, em humanos e peixes. O caso ocorreu no Japão e levou décadas para que começassem a aparecer os sintomas.
“O Núcleo de Medicina Tropical estuda o nível de mercúrio no cabelo das pessoas de Barreiras e São Luiz e há um grupo que estuda os impactos neurológicos”, explica Jennings. Essas duas comunidades têm mostrado nível alto de metilmercúrio. “Eles não aparentam sintomas agora, mas os sinais clínicos do Japão foram reconhecidos após 24 anos. Imagine nessas comunidades ribeirinhas, com sistema de saúde precário”. Segundo ele, antes mesmo da instalação da usina, pesquisadores já revelaram que alguns moradores apresentam perda de sensibilidade tátil e nos lábios.
O problema se agrava com a usina por que o solo da região amazônica é rico em mercúrio e a água foi contaminada lentamente pela prática do garimpo. A atividade, que usava o metal para extrair ouro, o despejou no rio por décadas. O desmatamento também é um fator importante para o aumento de mercúrio no rio Tapajós, porque a erosão provocada pelo desflorestamento facilita que o mercúrio depositado no solo seja levado ao rio. Agora, com a construção da usina, esse mercúrio inorgânico deve ser transformado na substância tóxica metilmercúrio.
Jennings esclarece que, para tornar esse material venenoso, é preciso que bactérias ajam sobre ele e proliferem em áreas de pouco oxigênio. Por isso, as áreas alagadas são as ideais para a produção desse veneno.
A turbina da hidrelétrica funciona como um distribuidor dessa substância, jogando a água contaminada (pelo metilmercúrio já existente e pelo criado com o reservatório) na região abaixo do reservatório. “Em Tucuruí, por exemplo, o nível mercurial a jusante é maior que o do reservatório”, conta o médico.
Outra crítica dos pesquisadores, médicos e populações tradicionais do Tapajós quanto aos estudos de impacto, é que levou-se em consideração padrões suíços para afirmar que os ribeirinhos estão fora do risco de contaminação. Por esse padrão, conta-se um consumo semanal de 400 gramas de peixe. A realidade dos amazônicos é bem diferente. Na casa dos ribeirinhos, come-se peixe no almoço e jantar, quase de domingo a domingo.
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