Depois de trinta anos trabalhando como pedreiro, o paranaense Arlindo de Oliveira tenta fazer fortuna na Amazônia. Sua estratégia, ele alega, é comprar terras que serão indenizadas para a construção das hidrelétricas. Segundo suas próprias contas, Arlindo já se encontra no quarto empreendimento – desta vez, de olho na usina de São Luiz do Tapajós, no Pará.
“Não tem negócio melhor”, diz ele, sentado na varanda da casa que construiu há três anos, em dois lotes que custaram R$ 170 mil. Arlindo diz ter ido para a vila de Pimental, no município de Trairão, no Oeste do Pará, só para receber o dinheiro da indenização da usina. O povoado, onde vivem cerca de mil pescadores, será totalmente alagado caso a barragem saia do papel. O leilão de concessão era aguardado para o próximo semestre, mas o licenciamento foi suspenso em abril pelo Ibama.
Arlindo é o que os moradores das comunidades tradicionais chamam de “barrageiro”: alguém que se infiltra na comunidade para ganhar indenização na hora da remoção. Ele se incomoda com o apelido – uma crítica velada feita pelos moradores de Pimental. Mas a diferença entre um “barrageiro” e um ribeirinho é bastante clara.
Enquanto Arlindo se queixa da demora na instalação da usina, que coloca em risco seus planos de enriquecimento rápido, as famílias locais se organizam para tentar impedir a construção da hidrelétrica, temendo pelo rio, pela floresta e pelo futuro.
Arlindo garante ter recebido indenizações mais gordas do que os ribeirinhos que viviam havia mais de século nos locais inundados
Sentada na porta de casa, depois de correr atrás de uma pequena galinha que teimava em saltar de sua mão, Maria Cecília dos Santos fala do que mais gosta em Pimental: “É dos vizinhos. Aquele, aquele, aquele”, ela se emociona, apontando para as casas ao redor. Aos 80 anos, Maria Cecília viu cada um daqueles pescadores crescer, indo e voltando do rio Tapajós, todos os dias.
“Não sou ‘barrageiro’. Eu compro as terras onde sei que vai ter barragem e vendo para as usinas. Para pegar o dinheirinho deles”, defende-se Arlindo. Na parede de madeira da casa atual, ele tem um mapa onde se destacam os rios da Amazônia. Ali, aponta orgulhoso os negócios que afirma já ter fechado. Dizendo ser orientado por amigos que trabalham em empreiteiras, ele conta que nos últimos oito anos adquiriu lotes na beira do rio Madeira, em Rondônia, onde foram erguidas as usinas de Jirau e Santo Antônio, e nas margens do rio Xingu, no Pará, onde fica a hidrelétrica de Belo Monte.
Arlindo garante ter recebido indenizações mais gordas do que os ribeirinhos das comunidades tradicionais, cujas famílias viviam havia mais de um século nos povoados que acabaram debaixo d’água.
“Eu vim de Altamira, onde fica Belo Monte, comprar terra aqui para quando a barragem vier. Eles [as construtoras] já me conhecem”, diz Arlindo
Ele se vangloria de já ter lucrado mais de R$ 1,4 milhão. Com o dinheiro, diz ter comprado uma casa de praia no concorrido balneário de Florianópolis, Santa Catarina. Com as terras à beira do rio Tapajós, sua maior aposta, esperava ganhar até R$ 6 milhões. Para inflar a indenização, ele diz que chegou a investir em cabeças de gado, plantação diversificada e açudes para peixes.
“Escolado”, assegura conhecer todos os artifícios para fazer crescer os valores pagos pelas empreiteiras. “Esse espaço aqui”, ele aponta para a varanda, “vale mais que a casa”, avalia. “Eu vim de Altamira, onde fica Belo Monte, comprar terra aqui para quando a barragem vier. Daí, eles [as construtoras] já me conhecem. Eu tenho a terra; eles sabem quem é que eu sou. Chegam e já está dado [negócio feito]”, orgulha-se.
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Além de tentar evitar a construção da barragem, os ribeirinhos do Tapajós temem que as indenizações e as obras previstas para mitigar os impactos sociais e ambientais não sejam cumpridas, a exemplo do que tem ocorrido em Belo Monte, onde são muitas as denúncias feitas pelo terceiro setor, movimentos sociais e pelo Ministério Público Federal.
Se de um lado as lideranças locais da vila de Pimental tentam organizar os pescadores para resistir aos planos do governo e das empresas, por outro, figuras como Arlindo tentam convencer os moradores de que a barragem seria de fato um bom negócio. Mais do que isso: seria inevitável.
“Em Itaipu, não tinha como acontecer a usina. A catarata de Guaíra era a mais bonita do mundo, com 45 metros de caimento de água. Mas eles disseram que ia ter usina e acabou”, rememora o barrageiro.
Arlindo largou a lavoura dos pais aos 19 anos. Trabalhou como pedreiro e carpinteiro por três décadas na construção de hidrelétricas. O primeiro emprego foi em Itaipu, a maior do país. Nesse tempo, conta ter observado os processos de indenização dos proprietários de terra por parte das empresas concessionárias das usinas. Foi lá, segundo ele, que se aproximou dos funcionários de médio escalão das construtoras. Há menos de dez anos, colocou seu plano em ação.
“Jirau foi onde fiquei mais tempo. Em Santo Antônio, foi um ano e três meses. Em Altamira comprei uma terra e, em oito meses, já saí”, diz Arlindo
Arlindo pegou a família e partiu para a Amazônia, o principal manancial de energia do Brasil. “Eu morava em Cascavel (Paraná) e trabalhava em Itaipu. Via os caras vendendo as terras que seriam alagadas e era bastante dinheiro. Então, fiquei velho e pensei em fazer algo assim”, relembra. “Jirau foi onde fiquei mais tempo, dois anos. Em Santo Antônio, foi um ano e três meses. Em Altamira, com três meses, comprei uma terra e, em oito meses, já saí. Cheguei a plantar 2.600 pés de laranja e limão. E muita mandioca e milho”, ele diz.
Caos fundiário
A grande aposta de Arlindo era Pimental. Mas foi aí que o negócio “deu errado”, de acordo com suas próprias palavras. Por diversas irregularidades no processo de titulação das terras do povoado e sucessivas denúncias de corrupção que, no ano passado, acarretaram na queda do comando local do Incra (órgão federal responsável pela reforma agrária e pelo apoio aos agricultores familiares), os moradores de Pimental têm documentos que, ao fim e ao cabo, não valem nada.
“Aqui muita gente vai quebrar o nariz por causa disso. Vai ter uma audiência para tentar resolver. Mas pode ir tudo por água abaixo”, diz Arlindo. Segundo ele, um “companheiro” fazendeiro esperava receber uma indenização de R$ 18 milhões pelas terras, até descobrir que seus documentos também não estavam regularizados.
Moradores do povoado acreditam que Arlindo trabalha informalmente para convencer os ribeirinhos a aceitar a hidrelétrica
Arlindo explica que, até o presente momento, não se deparou com outros barrageiros em Pimental. “Em Altamira, cheguei a encontrar mais de cinquenta”, compara. Alguns moradores do povoado acreditam que ele trabalha informalmente para convencer os ribeirinhos a aceitar a construção da hidrelétrica. “Sou muito a favor de barragem”, ele faz questão de dizer.
Gilberto Cervinski, coordenador nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), confirma que o tipo de “especulação” realizada por Arlindo é só mais um dos inúmeros problemas enfrentados pelas populações tradicionais durante o processo de negociação e remoção das famílias. “Isso acontece em toda região em que é construída uma barragem. Há inclusive uma rede de advogados ligados a empresas de indenizações, que ficam com até 30% do que o ribeirinho pode receber”, explica Cervinski. “Isso aconteceu na hidrelétrica de Santo Antônio, em Rondônia”, exemplifica.
O coordenador do MAB explica que esses especuladores conhecem melhor que os ribeirinhos as formas de “valorizar” a terra a ser indenizada, como o próprio Arlindo confidencia. Assim, ao receber uma compensação aparentemente graúda, acabam estimulando os ribeirinhos a aceitar com mais facilidade a construção das barragens.
“É uma luta ideológica. As empresas utilizam esses esquemas para jogar contra os atingidos [pelas hidrelétricas]. O barrageiro amigo da empresa ganha uma boa indenização e prega que, se os atingidos mantiverem uma ‘boa relação” e se não se mobilizarem contra a barragem, vão ganhar mais”, diz o coordenador do MAB. Cervinski acredita inclusive que os barrageiros podem funcionar até mesmo como informantes a serviço dos consórcios construtores das usinas nas comunidades tradicionais.
Boa vizinhança
De fato, Arlindo não tem a mesma relação de afeto com Pimental, embora ele até se relacione bem com as famílias locais. Ele conta que usa sua caminhonete 4×4 para levar os moradores até a cidade de Trairão quando precisam passar por consulta médica ou resolver necessidades burocráticas. E até se considera um bom vizinho, embora não esconda o desejo de ir embora logo.
“A gente até apanha amor na terra, nos bichos, nas plantas, mas quando chega ali [aponta para a porteira], passa. Porque não adianta. Lidar com o governo não adianta. Se é decretada uma usina, pode entrar índio, entrar o que for no meio, que vai sair”, sentencia.
Questionado se a estratégia valeu a pena e se já conseguiu fazer o dinheiro que esperava, Arlindo responde: “Não vou ficar rico. Mas por que ficar num lugar só? Eu quero o dinheiro porque eu já sei para onde é que eu vou, já tenho até área comprada”, finaliza o barrageiro, fazendo mistério.