Da fazenda ao curtume, trabalhadores ligados à JBS queixam-se do desrespeito a direitos básicos em todas as etapas da indústria da carne. Na semana passada, em 15 de julho, essas condições de trabalho viraram caso de polícia em Santa Catarina. Determinado pelo Ministério Público do Trabalho, o inquérito conduzido pela Polícia Federal irá investigar a submissão de trabalhadores à condição análoga a de escravo, jornadas exaustivas, lesão corporal e exposição dos funcionários a graves riscos devido às condições de um frigorífico em São José, na grande Florianópolis.
Os problemas trabalhistas não se resumem a uma ou outra etapa da produção da JBS, a maior produtora de proteína animal do mundo, que registrou lucro líquido de R$ 4,6 bilhões em 2015. A Repórter Brasil ouviu, em três estados do país, vaqueiros em fazendas, caminhoneiros da empresa, além de empregados de frigoríficos e curtumes – onde o couro dos bois é tratado. As denúncias não são restritas a violações à legislação trabalhista. Todos os entrevistados enfatizam a falta de apoio da JBS, mesmo após acidentes graves e doenças ocupacionais.
Clique nas fotos para conhecer as condições de trabalho em cada etapa de produção do gado e do couro da JBS:
Essa reportagem faz parte de uma investigação da Repórter Brasil sobre a indústria da carne e do couro no Brasil. Confira novas reportagens na semana que vem.
Frigorífico
“A vida dele não tem preço”
Andreza Ventura da Silva perdeu o marido há cinco anos. Trabalhador do frigorífico da JBS em Lins, interior de São Paulo, Luís André de Oliveira morreu dentro de uma câmara fria, área de armazenamento de carnes onde a temperatura chega a -20 °C. O corpo do técnico, responsável pela manutenção de máquinas, foi encontrado esmagado por um elevador.
Logo após o acidente, a empresa se colocou à disposição de Andreza para o que fosse necessário. Durante três meses, ela recebeu cestas básicas e orientação de um psicólogo, mas a ajuda da JBS se encerrou após esse período. “Todas as vezes em que eu ligava, ou estavam viajando, ou não podiam me dar assistência, ou não podiam fazer mais nada por mim”, relembra. Desde então, ela cuida dos três filhos somente com a pensão recebida do INSS.
“Todas as vezes em que eu ligava, ou estavam viajando, ou não podiam me dar assistência, ou não podiam fazer mais nada por mim”
Inquirida sobre a história de Andreza, a JBS afirmou que “prestou todo o auxílio à família, bem como forneceu as informações necessárias para conclusão do Inquérito Policial às autoridades competentes”. A empresa não detalhou se as falhas que levaram à morte de Luís André foram solucionadas, afirmando que “investe constantemente, em todas as suas unidades, em medidas de segurança do trabalho”. (Leia a resposta da empresa)
Hoje, Andreza busca uma compensação pelos anos longe do marido. Na vila Santa Terezinha, na periferia de Lins, ela conta que ainda não quitou o pagamento da casa onde mora. Para piorar, acumulou dívidas para manter os filhos. Em dezembro de 2015, a JBS foi condenada em primeira instância a pagar R$ 66 mil a Andreza. Mas ela nem de longe considera o valor suficiente. “A vida dele não tem preço. E, se for para colocar na balança tudo que passei e passo com as crianças, isso é muito pouco”, revolta-se Andreza, que já recorreu da decisão.
Transporte
“O risco de acidente é enorme, é incalculável”
Durante 17 anos, Romero José da Costa sentou-se ao volante de um caminhão por até 20 horas por dia, de domingo a domingo. Desse período, ele guarda as memórias por todo o seu corpo: estreitamento da coluna, hérnia de disco e bico de papagaio, além da dificuldade para pegar no sono todas as noites. “Antigamente, a gente sonhava em ser motorista. Aí depois nem sobra tempo para dormir”, lembra Romero, que começou a trabalhar como motorista no grupo Bertin, carregando peças de couro entre frigoríficos, curtumes e outras unidades da empresa. Romero continuou na mesma função quando a empresa foi incorporada pela JBS, em 2009.
Além dos problemas de saúde, Romero contabiliza dois acidentes fatais como legado desse período. No primeiro deles, um ciclista surgiu à sua frente em meio à pista. No segundo, seu caminhão foi atingido por um carro, mesmo parado no acostamento da rodovia. Nos dois casos, ele não recebeu qualquer auxílio da empresa para se defender dos processos judiciais, e teve que pagar do próprio bolso as viagens por conta dos processos, além dos honorários dos advogados. “A JBS nunca me deu um litro de gasolina”, lembra Romero. “Eu não estava passeando, estava trabalhando para eles, e eles teriam que me dar um suporte”, desabafa.
“A JBS nunca me deu um litro de gasolina. Eu não estava passeando, estava trabalhando para eles, e eles teriam que me dar um suporte”
Questionada sobre o relato de Romero, a JBS respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que adota um “rigoroso sistema de controle de jornada de trabalho, que propicia aferição das jornadas, das folgas e de todos os intervalos, evitando longas viagens, bem como risco à saúde e segurança do motorista e terceiros que transitam pelas estradas.” (Leia a íntegra da reposta da empresa)
Romero parou de dirigir há mais de um ano. Hoje, está “encostado” devido aos problemas de saúde. Na cidade de São Luiz de Montes Belos, interior de Goiás, ele não consegue esquecer por um momento sequer do período em que trabalhou como caminhoneiro. “É difícil até para se deitar, as dores são muito fortes. Não posso pegar peso. E tem até que saber como deitar e se levantar. Hoje, subir em um caminhão para viajar seria praticamente impossível”, lamenta.
Curtume
“A gente avisou: a máquina está com defeito. Passados três dias, aconteceu o acidente.”
Trabalhador do curtume da JBS em São Luiz de Montes Belos, interior de Goiás, Carlos Rocha Conceição até avisou seu supervisor que o sensor de movimento da máquina onde ele trabalhava estava com problemas. Três dias depois, prendeu a mão esquerda nas lâminas que separavam o couro da carne dos bois. A mutilação prejudicou para sempre os seus movimentos.
O acidente aconteceu quando ele tentava ajeitar a pele de um animal que havia travado o funcionamento de uma máquina conhecida como ‘descarnadeira’. “Eles aconselham a não deixar rasgar o couro porque é desperdício, e eu coloquei a mão para tentar desenrolar. Quando eu estava com o braço inteiro lá dentro, senti ela fechar e tirei o braço. Mas foi tarde, pegou a mão, do punho para a frente”, recorda Carlos.
“Fiquei oito meses parado, sem fazer nada. Ninguém veio me visitar, nem para saber como é que eu estava”
Passado mais de um ano desde o acidente, ele conta que a JBS não o ajudou nem com os remédios, que ele teve de pagar do próprio bolso. Ninguém da empresa acompanhou sua recuperação. “Fiquei oito meses parado, sem fazer nada. Ninguém veio me visitar, nem para saber como é que eu estava”. Questionada pela reportagem, a JBS alega que Carlos “recebeu todo o auxílio da companhia com despesas extras ao plano de saúde, tais como exames, medicamentos, fisioterapia e deslocamentos.” (Leia a resposta da empresa)
Ainda funcionário da JBS, Carlos agora trabalha em outra máquina. Com a mesma mão mutilada pelo acidente, ele separa o rabo do couro dos animais. “Lá, na hora em que o sangue está quente, a mão não dói. Mas, na hora que você chega em casa, colega do céu, dói demais”, finaliza.
Fazenda
“Aqui só não tem o chicote na mão e o tronco para amarrar você porque a lei ainda protege. Mas, se o fazendeiro pudesse bater na gente, bateria.”
Sílvio Ricardo Oliveira e Wellington da Silva cuidam de três mil cabeças de gado em uma fazenda fornecedora da JBS em Três Lagoas, Mato Grosso do Sul. “Eu acho que o nosso maior problema é o perigo. Tem que trabalhar ligado, não pode cochilar. Cochilou, o cachimbo cai”, diz Oliveira, mostrando cicatrizes no corpo herdadas de quedas de cavalos e acidentes com bois.
Wellington, o vaqueiro mais novo, conta que quebrou o pé justamente numa queda, o que o levou a ficar afastado sem receber salário ou qualquer auxílio médico. “Fiquei trinta dias parado sem receber nada. Eles põem outro no lugar e está ótimo para eles”, reclama.
Cada vaqueiro recebe mil reais por mês, salário que deve ser usado, inclusive, para a compra dos equipamentos utilizados no dia a dia, como arreio, sela, espora e chapéu. “Qualquer firma fornece uniforme, toda proteção para trabalhar. Aqui, não: você tem que tirar do seu salário”, queixa-se Wellington.
“Qualquer firma fornece uniforme, toda proteção para trabalhar. Aqui, não: você tem que tirar do seu salário”
De cabeça, ele faz as contas e tenta justificar por que não seria difícil para a dona da fazenda fazer os pagamentos. Ele calcula que a fazenda comercialize cerca de 100 cabeças de boi por mês – rendimento bruto da ordem de trezentos mil reais. “E ela ainda vem falar pra gente que está falindo”, questiona.
Aos 19 anos, Wellington não pretende chegar aos 34 na fazenda, como seu colega Sílvio. “Eu tenho que trocar de profissão. Esse meio de serviço não dá mais para viver”, conclui.
Questionada sobre os dois trabalhadores, a JBS afirmou que “não tem como política fazer a verificação em campo das condições de trabalho nas fazendas, mas constantemente orienta e divulga boas práticas”. (Leia a íntegra da reposta da empresa)