Fernando Haddad (PT) cumpriu integralmente, durante seu mandato, seis de dez metas de combate ao trabalho escravo contemporâneo que acordou como então candidato a prefeito de São Paulo. As metas fazem parte da Carta-Compromisso contra o Trabalho Escravo (disponível na íntegra) que ele assinou em agosto de 2012, quando disputou a eleição pela primeira vez. Na sua gestão, o atual prefeito cumpriu outros quatro pontos apenas de modo parcial e não deixou de alcançar nenhum outro ponto.
O petista, que hoje busca a reeleição, assumiu, ao firmar a carta, efetivar medidas como, por exemplo, a criação de um plano de erradicação do trabalho escravo no município, o alinhamento dos programas municipais aos estaduais e federais sobre o tema e o apoio à criação de leis contra o crime.
Em nota para esta reportagem (veja aqui), a prefeitura listou as ações que realizou para alcançar os dez pontos. A Repórter Brasil também ouviu especialistas acerca da questão, como representantes da sociedade civil, ativistas sociais e autoridades públicas que avaliaram as iniciativas da administração municipal. A partir dessas informações, os compromissos assumidos foram avaliados para verificar se o petista cumpriu, cumpriu parcialmente ou não cumpriu aquilo que prometeu.
Naquilo que Haddad cumpriu, a criação da Comissão Municipal para Erradicação do Trabalho Escravo (Comtrae), que reúne entes do poder público, representantes da iniciativa privada e organizações do terceiro setor, recebeu elogios dos especialistas. O mesmo foi dito sobre a elaboração do Plano Municipal para Erradicação do Trabalho Escravo, que estabelece um cronograma de ações na esfera do município para o combate a este tipo de crime.
Luiz Machado, coordenador para o Brasil do programa de combate ao trabalho escravo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), diz que a efetivação destas duas ações são os primeiros passos para a solução do problema e servem de modelo para outras prefeituras pelo país. “Isso será importante para o próximo governo [municipal] avançar ainda mais no enfrentamento”, afirmou.
No que cumpriu apenas parcialmente, Haddad foi insuficiente ao tentar formalizar contratos das secretarias municipais com empresas que declaram não usar de mão de obra escrava na cadeia produtiva e ao apoiar empreendimentos ligados ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Poucas iniciativas saíram do papel neste sentido. Além disso, ele deixou de efetivar ações mais concretas no atendimento às vítimas da escravidão, não oferecendo condições de requalificação profissional e recolocação no mercado de trabalho.
Submeter alguém à escravidão é crime previsto no artigo 149 do Código Penal. A infração pode ocorrer em quatro situações de forma isolada ou conjunta, segundo a lei brasileira: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes (quando a violação de direitos fundamentais coloca em risco a saúde e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (em que a pessoa é submetida a esforço excessivo ou sobrecarga que acarreta danos à sua saúde ou risco de morte).
Nos três primeiros anos da gestão Haddad (2013 a 2015), 254 vítimas foram resgatadas de situação de trabalho escravo na cidade de São Paulo, de acordo com dados do Ministério do Trabalho — ainda não há informações a respeito de 2016.
Carta-compromisso
A Carta-Compromisso contra o Trabalho Escravo é uma iniciativa da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), que é vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadania e reúne autoridades de Estado e sociedade civil. O documento contribui para pautar o combate ao trabalho escravo durante as eleições e tem por objetivo estabelecer um canal direto de diálogo e de acompanhamento entre os eleitores e os futuros gestores públicos.
Em 2006, a primeira versão da Carta-Compromisso foi assinada pelos três principais candidatos à Presidência da República e por candidatos a governos estaduais que foram posteriormente eleitos. Em 2010, 12 governadores eleitos e a presidenta da República Dilma Rousseff (PT) estiveram entre os candidatos que assinaram a segunda versão da Carta-Compromisso. Nas últimas eleições municipais, em 2012, o candidato e deputado estadual Carlos Giannazzi (Psol-SP) firmou o compromisso, assim como Haddad.
Em 2014, as candidatas à Presidência da República Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (naquele momento, no PSB) aderiram à Carta-Compromisso contra o Trabalho Escravo, afirmando que estabeleceriam como prioridade o combate à escravidão contemporânea em suas gestões, caso eleitas. À época, Eduardo Jorge (PV) e Luciana Genro (PSol) também firmaram o compromisso. O então candidato e senador Aécio Neves (PSDB-MG) foi convidado a assinar, mas não se pronunciou.
Políticas públicas adotadas durante as gestões dos candidatos eleitos tiveram origem no documento, como a criação de comissões estaduais contra o trabalho escravo, o lançamento de planos estaduais de combate a esse crime e a aprovação de leis que restringem as compras públicas de mercadorias produzidas com trabalho escravo.
Confira, na sequência, os compromissos assumidos por Haddad, o indicativo se eles foram cumpridos e a avaliação de especialistas do tema e da prefeitura sobre o que foi feito.
1) Não permitir influências de qualquer tipo em minhas decisões que me impeçam de aprovar leis ou implementar ações necessárias para erradicar o trabalho escravo
O que diz a gestão Haddad: “No lançamento da Comtrae [Comissão Municipal para Erradicação do Trabalho Escravo], o prefeito declarou a erradicação do trabalho escravo como uma das prioridades de São Paulo e ressaltou o fato de que nenhum interesse de aliados ou de outros atores impediriam a implementação de ações”.
O que diz a Organização Internacional do Trabalho (OIT): “Haddad não permitiu essas influências. Houve um fortalecimento da prefeitura no combate ao trabalho escravo, na proteção aos vulneráveis, na implementação de uma agenda de trabalho decente. Ele foi um protagonista no tema”, declara Luiz, coordenador no Brasil do programa de combate ao trabalho escravo da OIT.
O que diz a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae): “Não vi nenhum processo em que as ações da prefeitura tenham esbarrado em empecilhos de alianças políticas ou outras coisas do tipo”, afirma Adilson Carvalho, coordenador em exercício da Conatrae.
2) Efetivar ações presentes no plano nacional de erradicação do trabalho escravo, além de apoiar a implantação e/ou manutenção de comissões municipais para erradicação do trabalho escravo
O que diz a gestão Haddad: “São Paulo tornou-se o primeiro município do país a criar uma estrutura nos moldes da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e das Comissões Estaduais (Coetraes) e similares. A Comissão Municipal para Erradicação do Trabalho Escravo de São Paulo (Comtrae), no seu primeiro ano de existência, elaborou o I Plano Municipal para a Erradicação do Trabalho Escravo”.
O que diz a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae): “O plano nacional de combate ao trabalho escravo prevê a criação de estruturas subnacionais. A prefeitura de São Paulo é a única do Brasil que tem uma comissão municipal sobre o tema”, declara Adilson, da Conatrae.
O que diz o Ministério Público do Trabalho (MPT): “O plano municipal [de erradicação do trabalho escravo] foi aprovado rapidamente. Além disso, a comissão do tipo em São Paulo é a única que existe em âmbito municipal. Estes dois passos são importantes e complementam as ações nacionais”, afirma Christiane Nogueira, procuradora e coordenadora-nacional em exercício de erradicação do trabalho escravo no MPT.
3) Apoiar a articulação política pela aprovação de leis que contribuirão para a erradicação desse crime
O que diz a gestão Haddad: “A gestão Haddad se dispôs a contribuir para aprovação de leis em todos os níveis da federação para erradicar o trabalho escravo. Em uma das ações contínuas do Plano Municipal, está previsto que a Comtrae atue em prol da aprovação de legislações relevantes para a erradicação do trabalho escravo”.
O que diz a Organização Internacional do Trabalho: “Haddad cumpriu a meta, se compararmos com outras gestões municipais do Brasil e as anteriores de São Paulo. Tem uma lei que criou a comissão [municipal de erradicação do trabalho escravo], um decreto que criou um instrumento [o plano municipal] e outra que está tramitando [na Câmara Municipal]”, afirma Luiz, da OIT.
O que diz o Ministério Público do Trabalho: “Dentro das possibilidades e das competências do município e dos limites impostos do que poderia ser feito, a meta foi cumprida. Houve decretos e iniciativas legislativas. E houve discussão, no plano municipal, para apoiar outras iniciativas”, declara Christiane, do MPT.
4) Não promover empreendimentos e empresas que tenham utilizado mão de obra escrava ou infantil. Apoiar as empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo a combater a incidência desse crime em setores produtivos
O que diz a gestão Haddad: “A Prefeitura de São Paulo colocou em instrumentos normativos cláusulas sociais para a não contratação de serviços de empresas que façam uso de mão de obra infantil ou de trabalho desempenhado em condição análoga a de escravo”.
O que diz o Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo: “Buscamos as secretarias para verificar cada caso específico. As coisas demoram… Se a prefeitura fez algo nesse sentido, falhou em comunicar às empresas ligadas ao Pacto. Não foi possível cumprir”, diz Mércia Silva, coordenadora-executiva do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Inpacto), que congrega grandes empresas brasileiras e multinacionais para prevenir o trabalho escravo em seus negócios e cadeias de valor.
O que diz a vereadora Patrícia Bezerra (PSDB), que propôs um projeto de lei contra o uso de trabalho escravo por empresas em São Paulo: “No sentido de coibir, não vi nada específico com relação a contratos de empresas com a prefeitura e a Câmara. Não foi firmado algo para não favorecer empresas e empreendimentos do tipo. Isso está no plano [municipal de erradicação do trabalho escravo], mas há pouca procura para efetivar essas questões”, ela afirma.
5) Buscar proteção aos defensores dos direitos humanos e líderes sociais que atuam no combate à escravidão e na defesa dos direitos trabalhistas
O que diz a gestão Haddad: “A Secretaria [de Direitos Humanos] possui um balcão de atendimento, voltado para o diálogo com a sociedade em defesa dos direitos humanos. O serviço pode ser acessado na rua Líbero Badaró, 119, e pelo telefone (11) 3113-8994 | 8993. De segunda-feira a sexta-feira, das 10h às 16h”.
O que diz o Centro de Apoio e Pastoral do Migrante: “Houve mais abertura para escutar essas lideranças. Talvez não tenhamos vistos as mudanças, porque no plano político demora até as coisas se consolidarem. Há diálogo maior, pode-se acessar melhor as pessoas das secretarias”, diz Carla Aguilar, assistente social do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami).
O que diz a Missão Paz: “A administração [municipal] deu mais oportunidade para a sociedade civil chegar ao poder público. E a prefeitura esteve mais próxima das entidades que tratam da migração, da imigração e do direito do trabalho”, afirma Maristela Schmidt, advogada da Missão Paz, principal foco de acolhimento a migrantes estrangeiros em São Paulo.
6) Apoiar a criação e implantação de estruturas de atendimento jurídico e social aos trabalhadores migrantes brasileiros e estrangeiros em território nacional
O que diz a gestão Haddad: “Em novembro de 2014 […] foi criado o Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes, equipamento público municipal de referência na atenção especializada à população imigrante da cidade de São Paulo, o primeiro de sua natureza no Brasil”.
O que diz o Centro de Apoio e Pastoral do Migrante: “Haddad teve um grande esforço para conseguir as políticas públicas para migrantes. Ele foi um dos prefeitos mais abertos a essa questão. [Na gestão dele] foi criado o primeiro abrigo municipal”, afirma Carla, do Cami.
O que diz a Missão Paz: “Há falha da prefeitura. Isso ainda está muito a cargo da sociedade civil. Houve apoio à imigração, mas faltam mais abrigos públicos. Os abrigos da prefeitura acolhem pessoas com perfis diferentes, e a orientação jurídica fica a cargo das instituições civis”, declara Maristela, da Missão Paz.
7) Informar os trabalhadores sobre seus direitos por intermédio de campanhas de informação e buscar a inclusão da temática do trabalho escravo contemporâneo na rede pública de ensino municipal
O que diz a gestão Haddad: “As ações são desenvolvidas com apoio da sociedade civil e da Secretaria de Educação. Os professores da rede municipal de ensino estão sendo capacitados […] Também está em andamento um curso pela Escola Municipal de Administração Pública de São Paulo, destinado a servidores públicos municipais”.
O que diz o Ministério do Trabalho: “Na fiscalização, a gente vê como positiva a formação dos servidores públicos municipais no entendimento da temática do trabalho escravo. Isso dá capilaridade para o tema e abre o olhar de todos os equipamentos municipais”, declara Luis Alexandre Faria, auditor fiscal do Ministério do Trabalho, que fiscaliza o cumprimento das leis trabalhistas e casos de trabalho escravo.
O que diz o Ministério Público do Trabalho: “Isso foi incluído no plano municipal. Posteriormente ao plano, houve a articulação com a sociedade civil. O MPT participou da capacitação de servidores públicos para identificar e atender casos de trabalho escravo”, afirma Christiane, procuradora do MPT.
8) Apoiar a implementação de uma política de atendimento aos trabalhadores resgatados com ações específicas voltadas à educação básica e profissionalizante e à reintegração social e econômica do trabalhador
O que diz a gestão Haddad: “A educação básica e/ou profissionalizante e reintegração social e econômica às vítimas de trabalho escravo está disponível para resgatados das fiscalizações que encontram pessoas trabalhando em condições análogas a de escravo, por meio da articulação entre as secretarias integrantes da Comtrae e do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes”.
O que diz o Ministério Público do Trabalho: “Não houve a criação de atendimentos para os resgatados, mas para pessoas em situação de vulnerabilidade. Na medida das suas possibilidades, o município tem dado o seu apoio. Isso depende também das esferas estadual e federal”, afirma Christiane, do MPT.
O que diz o Ministério do Trabalho: “Requalificação e recolocação ainda são muito deficitárias e exigem interlocução com as esferas estadual e federal. No atendimento direto às vítimas, já existe um fluxo claro entre os órgãos municipais”, declara Luis Alexandre, auditor fiscal do Trabalho.
9) Buscar a aprovação ou a regulamentação de projetos de lei municipais que condicionem a formalização de contratos da administração pública com empresas que declarem não ter utilizado trabalho escravo
O que diz a gestão Haddad: “O Plano Municipal possui dois pontos relacionados a esse aspecto que preveem ações contínuas. A atividade 25 […] e a ação 26. […] Contratos firmados pela Secretaria de Direitos Humanos, por exemplo, já possuem cláusulas especificas que vetam a contratação de empresas flagradas em situações de trabalho análogo”.
O que diz o Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo: “Não foi aprovado nada nesse sentido, embora haja algumas iniciativas em trâmite. Não acompanhei nada com relação à legislação municipal, mesmo um decreto. O banco de dados de fornecedores da prefeitura é de certo modo caótico”, declara Mércia, do InPacto.
O que diz a vereadora de São Paulo Patrícia Bezerra (PSDB), da oposição ao prefeito Haddad (PT): “Falta articulação do governo dentro da Câmara nesse sentido. A lei que estamos propondo até agora não foi apreciada ou teve garantia de que sanção [pelo prefeito Fernando Haddad]. Não se chega a uma ação mais concreta para isso, não há mobilização suficiente”, afirma a autora de projeto de lei 105/2013, que cassa a licença municipal de empresas com trabalho escravo e embarga locais onde o crime for encontrado.
10) Apoiar o cadastro de empregadores flagrados com mão de obra escrava, conhecido como a “lista suja” do trabalho escravo
O que diz a gestão Haddad: “Divulgamos a lista no site da Assessoria Especial para Promoção do Trabalho Decente da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Além disso, a Comtrae fez uma nota de repúdio sobre a suspensão da ‘lista suja’.
O que diz a Organização Internacional do Trabalho: “Os secretários [da gestão Haddad] se posicionaram, mesmo que não tenha havido uma manifestação direta do prefeito. Eles agiram positivamente para proteger a ‘lista suja’, sobretudo o [Rogério] Sottili [que chefiou a pasta de direitos humanos]”, afirma Luiz, da OIT.
O que diz o Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo: “Os secretários [municipais] de direitos humanos declararam apoio em documento. Houve um movimento no sentido de ter voz-ativa na política nacional. E cogitou-se fazer algo semelhante [à ‘lista suja’] no nível do município”, declara Mércia, do InPacto.