Trabalhador queima metade do corpo após Justiça liberar máquina interditada

Outro funcionário já havia queimado 70% da pele em caldeira semelhante. Juiz suspendeu a interdição feita por auditor fiscal do trabalho, colocando os trabalhadores em risco
Por Piero Locatelli
 05/05/2017

No início de março, Joel Valdemiro de Borba teve 70% do corpo queimado em uma máquina de pintar tecidos na Nobre Indústria Têxtil, em Gaspar, Santa Catarina. Dez dias depois do acidente, um auditor fiscal do trabalho interditou essa e outras máquinas devido ao risco de novos acidentes acontecerem. Mas a Justiça liberou o funcionamento alegando que o auditor não interditou imediatamente as máquinas (portanto, não haveria risco), que a empresa demonstrava “certa boa vontade” em corrigir o problema e que sua interrupção traria prejuízos financeiros à empresa e aos trabalhadores.

Oito dias depois da liberação, outro trabalhador, Alexandre Souza da Silva, queimou 45% do seu corpo em máquina semelhante no mesmo local.

Dois meses após o primeiro acidente, a fábrica continua a funcionar normalmente, ainda amparada pela mesma medida liminar. Procurada, a empresa, através de nota da sua advogada, afirmou que “está dando apoio aos acidentados e internamente vem promovendo sindicância nas máquinas.” Leia a íntegra da resposta da Nobre.

O caso é um dos diversos onde magistrados liberaram o funcionamento de máquinas após auditores fiscais do trabalho apontarem que elas não davam segurança aos trabalhadores. “A Justiça do Trabalho tem muitas vezes deferido a suspensão das interdições ambientais sob o argumento de preservação de empregos e de contratos comerciais das empresas infratores, pondo em risco a integridade física dos obreiros,” diz um estudo dos procuradores do trabalho André Magalhães Pessoa e Ilan Fonseca de Souza.

Os procuradores analisaram diversos casos semelhantes, e chegaram a conclusão de que não há uma relação entre a paralisação temporária das atividades de uma empresa e a perda de vagas de emprego. Segundo os procuradores, são outros os fatores que determinam a manutenção dos postos de trabalho, como a demanda das mercadorias pelos consumidores.

Entenda, passo a passo, como esse caso aconteceu:

07 de março: O primeiro acidente

Joel teve 70% do seu corpo queimado ao ser atingido pelo líquido quente que estava dentro de uma caldeira usada para tingir tecidos. A máquina que ele operava funciona de maneira parecida com uma panela de pressão de cerca de dois metros de altura. Dentro dela, o líquido chega a uma temperatura próxima a duzentos graus.

Máquina de tintura onde ocorreu o acidente. Foto: SRTE/SC

A máquina não tinha nenhum dispositivo que impedisse sua abertura enquanto estava pressurizada, segundo o relatório do auditor fiscal do trabalho Pedro Maglioni. Algumas das caldeiras da fábrica tiveram, inclusive, os dispositivos de segurança retirados pelo empregador. A empresa, porém, alega que “as máquinas têm diversos dispositivos de segurança”.

Prestes a completar 53 anos, Joel ficou internado em uma Unidade de Tratamento Intensivo durante trinta dias, e agora aguarda a melhora em sua casa.

16 de março: Máquinas são interditadas

Por falta de segurança, as máquinas da fábrica foram interditadas após o acidente pelo auditor fiscal do trabalho. A falta de um dispositivo que impedisse a abertura da caldeira sob pressão foi um dos motivos apontados para a medida.

O auditor determinou que a fábrica só poderia voltar a funcionar se seguisse uma série de recomendações, cujas soluções deveriam ser apresentadas em 4 dias. Como a empresa não se adequou nesse tempo, as máquinas foram interditadas após uma semana.

A indústria questionou a interdição na Justiça, alegando que tinha 25 anos de atuação e 128 empregados, mas somente um acidente em caldeiras neste período. Além disso, também questionava o prazo dado pelo auditor para adequar as máquinas.

Por fim, ela argumentava que a ação atrapalhava a sua atividade econômica. A defesa da Nobre alegava que o não cumprimento de prazos geraria perda de clientes, interrupção nas receitas, não pagamento aos empregados e até a falência da empresa.

17 de março: Juiz libera a operação

Às 18:56 de um domingo, o juiz José Lucio Munhoz decidiu que a fábrica poderia voltar a funcionar. O magistrado argumenta que um caso grave de segurança do trabalho deveria ter suas atividades imediantamente suspensas, mas esse não teria sido o que foi presenciado pela fiscalização, já que houve um intervalo entre a visita do auditor à fábrica e a interdição das máquinas. “Não foi essa a situação presenciada pelo órgão de inspeção, pois do contrário não teria concedido prazo algum para que a impetrante oferecesse documentos. Caso a situação técnica fosse de uma gravidade urgente, a medida deveria ter sido enérgica”, diz o juiz na liminar.

O magistrado da 3ª Vara Trabalhista de Blumenau disse, em sua liminar, que a empresa “demonstra[va] certa boa vontade em sanar as irregularidades”, já que havia contratado um técnico para tratar do problema.

Por fim, o juiz repetiu a falta de histórico de acidentes levantados pela defesa para argumentar que ela merecia outra chance. “Diante do histórico da empresa, parece ser razoável conceder-lhe um prazo para solucionar eventuais problemas de segurança e de possíveis perigos de acidente”.

Em nota enviada à Repórter Brasil, a assessoria de imprensa do Tribunal Regional de Trabalho de Santa Catarina afirmou que “o juiz concluiu que não seria razoável manter a interdição, evitando assim o desemprego de 120 pais de família.”

A nota também diz que o magistrado trabalhava em plantão, e o processo foi redistribuído para a 2ª Vara do Trabalho de Blumenau, “que inclusive não revogou a liminar do juiz Munhoz. Também não há a indicação nos autos de que a União tenha tentado reverter a decisão no segundo grau.” Leia a íntegra da nota do TRT de Santa Catarina.

No dia seguinte à medida liminar, uma segunda-feira, a empresa já poderia voltar a funcionar.

25 de março: Outro trabalhador se acidenta

Uma semana e um dia após a decisão do juiz, Alexandre Souza da Silva sofreu um acidente semelhante ao de Joel em outra caldeira da empresa. Assim como naquele caso, a tampa abriu com a máquin ainda pressurizada, e ele foi atingido por um jato de água quente. Seu braço, sua perna, sua barriga e até suas costas foram queimados.

O operador teve queimaduras de segundo grau em 45% do seu corpo, e também foi internado, segundo informações do Comunicado de Acidente de Trabalho emitido pelo médico da empresa.

Após os dois acidentes, as máquinas seguem funcionando e oferecendo riscos aos funcionários, já que a interdição segue suspensa pela Justiça. Desde então, o Ministério Público do Trabalho (MPT) pediu que a fábrica voltasse a ser interditada, já que a empresa não tomou medidas para diminuir os riscos.

Segundo o MPT, a única prova de que a empresa tomou alguma medida foi um “simples contrato firmado com uma empresa de engenharia” que “não garante em nada que as medidas protetivas necessárias serão efetivamente implementadas.”

Uma tentativa de conciliação entre as partes está marcada para o dia 15 de maio, com a presença do Ministério Público do Trabalho. Até lá, a fábrica pode continuar a funcionar sem restrições.

Em Sergipe, trabalhador perdeu dedo após decisão

O caso da Nobre Tinturaria não é o único que aconteceu após a Justiça liberar o funcionamento de máquinas que, segundo auditores fiscais, traziam riscos. Um caso semelhante aconteceu na Corona, fábrica de chuveiros sediada em Sergipe.

Auditores fiscais do trabalho haviam interditado máquinas da fábrica que não seguiam as regras de segurança do Ministério do Trabalho para equipamentos, a chamada NR-12. A empresa alegou “grave prejuízo econômico em razão da paralisação de 80% do seu maquinário”, e a Justiça liberou que a empresa voltasse a funcionar por 60 dias.

Durante a suspensão do embargo, um trabalhador perdeu parte do dedo da mão direita na fábrica de chuveiros.

Atual controladora da Corona, a Duratex afirmou por e-mail que cumpre todas as normas de segurança em suas fábricas. “A empresa esclarece que adquiriu a Corona em julho de 2015, após o ocorrido, porém, o caso está sendo acompanhado pela companhia.” Leia a íntegra da resposta.

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk

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