O presidente Michel Temer divulgou quatro autos de infração de irregularidades banais afirmando que isso havia levado auditores fiscais a considerarem o caso como “condições degradantes”, um dos elementos que caracterizam trabalho escravo segundo o artigo 149 do Código Penal.
“O ministro do Trabalho me trouxe aqui alguns autos de infração que me impressionaram. Um deles, por exemplo, diz que se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo”, afirmou em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues do portal Poder 360. Ele também mostrou autos relacionados a extintores mal sinalizados e beliches sem escada nem proteção lateral.
Contudo, Temer não informou que foram emitidos outros 40 autos de infração na mesma fiscalização, incluindo aqueles que tratam de problemas graves como o não pagamento de salários, alojamentos superlotados e condições inadequadas de higiene. Ou que a fiscalização foi confirmada pela Justiça do Trabalho, que condenou o empregador. O presidente também não informou o nome da empresa envolvida, a obra de um condomínio sob responsabilidade da MRV Engenharia, no município de Americana, interior do Estado de São Paulo.
Isso ocorre em meio à polêmica sobre uma nova portaria do Ministério do Trabalho que condiciona o flagrante de trabalho escravo ao cerceamento da liberdade com uso de vigilância armada. Isso desconsidera as condições de trabalho em que se encontram as vítimas, indo de encontro ao Código Penal. E também em meio à negociação junto à Câmara dos Deputados para que seja rejeitada a segunda denúncia contra Temer, encaminhada pela Procuradoria-Geral da República.
A fiscalização, que resultou no resgate de 63 trabalhadores, ocorreu entre março e abril de 2011, lavrando 44 autos de infração, e foi coordenada pelo então auditor fiscal João Batista Amâncio. “Encontramos alojamento que era um lixo, com gente dormindo no chão, sem colchão. Faltava higiene, condições sanitárias. Mas também encontramos trabalhador com carteira de trabalho retida, trabalhador que não recebeu salário algum.”
De acordo com ele, durante uma fiscalização, os auditores são obrigados a lavrar autos de todas as irregularidades encontradas, das mais leves às mais graves de acordo com uma lista de infrações estabelecidas pelo ministério do Trabalho. Algumas autuações focam em detalhes tão banais que podem parecer exagero. Contudo, não é a falta de saboneteira ou de escada de beliche que configura condições degradantes e, portanto, trabalho análogo ao de escravo, mas a somatória das autuações mais graves.
Ou seja, para Amâncio, não foram as irregularidades banais que caracterizaram o trabalho escravo. “O presidente, como dirigente de um órgão público, antes de dar uma informação dessa deveria consultar o setor competente, buscar o relatório da fiscalização e dar a informação completa. E não pinçar um auto de infração”, avalia.
A análise é confirmada por Silvio Beltramelli, procurador do Ministério Público do Trabalho que esteve na operação. “Obviamente a caracterização de trabalho escravo não saiu só desses autos de infração.” Para ele, “compreendidos isoladamente, certamente não caracterizam o trabalho escravo”.
“Se você soma tudo, o número de pessoas que a casa não comporta, pessoas sem conseguir tomar banho, gente dormindo no chão da cozinha, sem material de higiene. Tudo isso junto caracteriza essa condição.” Segundo o procurador, tudo isso coopera para o descumprimento de normas de saúde e segurança, que se enquadram no artigo 149 do Código Penal como condições degradantes.
Por conta de ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho, a MRV foi considerada culpada pela Justiça do Trabalho, condenada a pagar uma indenização de R$ 4 milhões à sociedade e mais uma multa de R$ 2,26 milhões pela demora na regularização da situação do canteiro de obras após o flagrante.
A sentença da juíza da 1ª Vara do Trabalho de Americana, Natália Antoniassi, de agosto de 2013, afirma que “lamentavelmente, a existência de trabalhadores em condição análoga à de escravo restou perfeitamente caracterizada. A ação conjunta do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho foi extremamente minuciosa, não deixando dúvidas que a ré se utilizava de mão de obra escrava em suas construções”.
Ela confirmou as condições degradantes a que estavam submetidos os trabalhadores e ressaltou outros elementos, como o aliciamento. Trazidos de “regiões miseráveis do Norte e Nordeste” com a promessa de que teriam a viagem custeada pela empresa e que ganhariam um bom salário, eles encontraram outra realidade ao chegar à cidade. A viagem foi descontada do pagamento e os salários combinados, quando pagos, vinham com atraso ou descontos indevidos. O intervalo entre jornadas era suprimido total ou parcialmente e a comida tinha que ser complementada pelos operários, pois era pouca. Os trabalhadores não tinham dinheiro para ir embora e, por isso, iam ficando.
A magistrada considerou que os trabalhadores pertenciam à MRV apesar dos problemas estarem ligadas a duas pequenas empresas que prestavam serviços a ela nas obras, “uma vez que foram reconhecidas as terceirizações ilícitas”. E lembrou que as obras estavam entre as financiadas pelo programa “Minha Casa, Minha Vida”, do governo federal.
Em setembro de 2013, o Ministério Público do Trabalho e a MRV fecharam um acordo nacional para regularizar os problemas em seus canteiros de obras. Segundo o MPT, a empresa assumiu a responsabilidade solidária com empreiteiras, subempreiteiras e prestadoras de serviços pelo cumprimento das normas de segurança de trabalho e demais direitos trabalhistas. O valor da indenização devido ao caso de Americana foi reduzido para R$ 2 milhões. O processo correu sob número 0002084-28.2011.5.15.0007.
A MRV Engenharia não havia enviado um posicionamento até a publicação desta reportagem. Assim que isso acontecer, ele será incluído no texto.
Nova portaria
Na segunda (16), o ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira atendeu a um antigo pedido da bancada ruralista no Congresso Nacional e reduziu o conceito de trabalho escravo, o que dificulta a libertação de pessoas.
Sob a justificativa de regulamentar a concessão de seguro-desemprego aos resgatados do trabalho escravo, benefício que lhes é garantido desde 2003, uma nova interpretação para os elementos que caracterizam a escravidão e que, portanto, norteiam a ação das operações de fiscalização foi emitida.
Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
A nova portaria estabelece o cerceamento de liberdade como condicionante para a caracterização de “condições degradantes” e de “jornada exaustiva”, ao contrário do que está no artigo 149 do Código Penal. Segundo essa lei, qualquer um dos quatro elementos separadamente é suficiente para caracterizar a exploração.
Dessa forma, as condições de trabalho a que estão submetidas as vítimas, por piores que sejam, passam a ser acessórias para determinar o que é trabalho análogo ao de escravo pelos auditores fiscais e a concessão de seguro-desemprego aos resgatados.
Na mesma entrevista em que trouxe a informação incompleta sobre a fiscalização para justificar a mudança, Temer mostrou desconhecimento sobre a nova portaria de seu governo. Pelo que mostrou, ignora a subordinação de “condições degradantes” ao cerceamento da liberdade: “Não é isso que está na portaria. A portaria que ele me mandou, pelo menos, tem várias hipóteses, agora não me recordo de todas, mas reveladoras de que o trabalho degradante, o trabalho que impõe condições desumanas de vida é trabalho escravo. Não é só o direito de ir e vir, não. Direito de ir e vir está assegurado amplamente”.
Temer completa: “Acho que nem tem sentido usar esse argumento. Não estou nem defendendo a portaria e nem condenando a portaria. Estou dizendo que ela está sofrendo objeções que estão sendo analisadas”.
A mudança que torna irrelevante as “condições degradantes” foi elogiada pela bancada ruralista, por associações ligadas ao agronegócio e empresários do setor têxtil, entre outros críticos do sistema de combate ao trabalho escravo.
A procuradora-geral da República Raquel Dodge criticou a portaria em audiência com o ministro do Trabalho. Segundo ela, “ao adotar um conceito de trabalho escravo restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana, a portaria fere a Constituição”. Concedeu dez dias para a Presidência da República se pronunciar sobre o tema. Nesta quinta (20), a Rede entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade sobre a portaria no Supremo Tribunal Federal.
De acordo com Renato Bignami, auditor fiscal do trabalho que coordenou esforços para resgate de trabalhadores escravizados em São Paulo, condições degradantes reduzem a capacidade laboral do trabalhador já que passa a ser tratado como uma mercadoria. Ele ressalta que essas condições encontram proibição expressa não apenas na legislação nacional, mas também na Constituição Federal de 1988, nos tratados internacionais ratificados pelo país e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Prejudicam não apenas a pessoa do trabalhador, mas também criam distorções no mercado de trabalho, concorrência desleal entre as empresas e acabam por impactar negativamente a própria Seguridade Social “, completa.
A mudança na portaria reforça a questão do não consentimento do trabalhador para a caracterização de trabalho forçado. Hoje, em consonância com as Nações Unidas, as operações de resgates de pessoas têm considerado o consentimento irrelevante para a caracterização. Dessa forma, mesmo que uma pessoa aceite uma proposta de trabalhar só por comida, o Estado tem a obrigação de considerar tal ato como escravidão contemporânea.
Lista suja e MRV
A nova portaria também condiciona a inclusão de nomes à “lista suja” do trabalho escravo, cadastro de empregadores flagrados por esse crime que garante transparência ao combate à escravidão, a uma determinação do próprio ministro. Ou seja, a divulgação pode deixar de ter uma caráter técnico e passar a contar com uma decisão política.
E as novas regras afirmam que, para poder levar um empregador à lista, os autos de infração relacionados a um flagrante de trabalho escravo passam a depender da presença de um boletim de ocorrência lavrado por uma autoridade policial que tenha participado da fiscalização. Dessa forma, a palavra final sobre a existência de trabalho escravo pode sair das mãos de auditores fiscais, especialistas no tema, e passar para a dos policiais.
A “lista suja” é uma base de dados mantida pelo Ministério do Trabalho que publiciza os casos em que o poder público caracterizou o crime através de resgates de pessoas e nos quais os empregadores tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias. Os empregadores envolvidos permanecem por dois anos na relação a menos que façam um acordo com o governo. Nesse caso, seguem para uma lista de observação e podem sair após um ano.
Apesar do governo não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, a lista tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. O que tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.
Em meio ao plantão do recesso de final de ano de 2014, o Supremo Tribunal Federal garantiu uma liminar à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) suspendendo a “lista suja”. A entidade questionou a constitucionalidade do cadastro de empregadores, afirmando, entre outros argumentos, que a inclusão na lista suja era realizada sem o direito de defesa dos autuados.
A suspensão foi derrubada em maio de 2016 pela ministra Cármen Lúcia após o Ministério do Trabalho publicar novas regras de entrada e saída. Porém, o governo Michel Temer manteve a publicação da relação congelada até que perdeu uma batalha judicial para o Ministério Público do Trabalho. Com isso, a “lista suja” voltou a ser divulgada em março deste ano.
Na época da suspensão, a Abrainc era presidida pela MRV Engenharia – empresa responsabilizada pelo caso que Michel Temer usou como exemplo para questionar a caracterização de condições degradantes.
Por conta de resgates de trabalhadores nos quais o poder público envolveu a MRV Engenharia, ela chegou a ser incluída na “lista suja”.
Na análise de um pedido de liminar da empresa à Justiça do Trabalho para ter o nome retirado da relação, o juiz Francisco Luciano de Azevedo Frota cita o caso desta reportagem: “A fiscalização na obra da cidade de Americana mostrou que se repetiam basicamente as mesmas irregularidades constatadas nas obras anteriores já citadas, além de outras. Instalações sanitárias insuficientes para o número de trabalhadores, alimentação insuficiente e de má qualidade, falta de fornecimento de equipamentos de proteção individual, falta de instalações elétricas adequadas e seguras nos alojamentos, ausência de pagamento de salários”.
Em sua decisão, o juiz negou a liminar em 10 de agosto de 2012. Hoje, a MRV não está relacionada na atual versão da “lista suja” de março de 2016.
A polêmica portaria surgiu menos de uma semana após a exoneração do coordenador nacional de fiscalização do trabalho escravo do próprio ministério, André Roston. Sua dispensa causou polêmica porque a mudança teria partido da base de apoio do governo no Congresso Nacional em meio às negociações para que não seja admitida a segunda denúncia contra Temer. Em depoimento ao Senado Federal, Roston havia informado que as operações de fiscalização de trabalho escravo estavam sem recursos financeiros.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk