Sindicalistas cobram mais transparência das certificações

Em evento promovido sobre o tema pela Repórter Brasil, avaliação é que auditorias e certificações no campo ganham importância com reforma trabalhista, desde que sejam mais transparentes e construídas coletivamente
Por Guilherme Zocchio
 01/11/2017

O processo de auditoria e certificação de cadeias produtivas pode se tornar um meio importante para a manutenção de condições dignas de trabalho no Brasil. Em um momento em que o país se prepara para colocar em vigor uma legislação mais flexível e vê as fiscalizações laborais diminuírem, o instrumento tem potencial de ganhar força para pressionar por melhorias a favor de empregados, de um lado, e para evitar abusos por parte de chefes e patrões, de outro.

Essa avaliação foi feita por lideranças sindicais, pesquisadores, representantes das instituições certificadoras e integrantes de entidades da sociedade civil que se reuniram no seminário “Transparência e Participação em Certificações”, para discutir os processos de auditoria e certificação de cadeias produtivas.

O evento foi promovido em São Paulo, em 24 de outubro, pela Repórter Brasil, e contou com o apoio da organização CIR (Christliche Initiative Romero), da Alemanha, e do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola).

Evento da Repórter Brasil contou com o apoio da organização CIR (Christliche Initiative Romero), da Alemanha, e do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola). Foto: Repórter Brasil

As auditorias são uma forma de fiscalização da iniciativa privada para atestar, entre outras coisas, se a elaboração de uma mercadoria está em conformidade com determinadas regras como leis, padrões internacionais de normalização (as chamadas ISOs) ou mais exigências. Caso estas sejam cumpridas, o produto recebe uma certificação, por meio de um selo, que garante que ele é feito com boas práticas empresariais.

Esse processo é muito utilizado, nacional e mundialmente, para verificar se uma cadeia produtiva, por exemplo, não explora mão de obra análoga à de escravo, comete infrações trabalhistas ou descumpre normas ambientais. Alguns dos principais setores da economia brasileira, como o do café, o da laranja, o do açúcar e o de outras commodities fazem uso desses processos de auditoria e certificação. Estima-se que 40% do café mundial já receba algum tipo de selo; no Brasil, cerca de 10% do suco de laranja também já possui alguma certificação.

O mecanismo apresenta falhas, contudo. Relatório da Repórter Brasil sobre selos atestando boas práticas na produção de café encontrou casos de cadeias auditadas e certificadas com problemas de ordem trabalhista, como o emprego de mão de obra informal, descontos indevidos nos salários e o não pagamento de benefícios adquiridos por lei, e de ordem ambiental, como o desrespeito a normas para aplicação de agrotóxicos.

Ainda assim, o instrumento é considerado relevante. No seminário, participantes afirmaram que, apesar de reconhecerem problemas nos sistemas de certificação, o debate sobre este tema deve avançar para aperfeiçoar o seu funcionamento, sobretudo na atual conjuntura do mundo do trabalho no país. O encontro aconteceu próxima da entrada em vigor da reforma trabalhista —que começa a valer em 11 de novembro e trará uma legislação mais frágil para a proteção dos empregos. Ocorreu também a poucos dias da publicação, em 16 de outubro, de uma portaria do Ministério do Trabalho que diminuiu as regras para fiscalização de casos de escravidão contemporânea.

“O mecanismo da certificação é uma ferramenta. A avaliação nossa é de que a gente deve fortalecer isso e utilizá-lo a favor da nossa causa. A legislação está enfraquecida. Pode ser uma forma de a gente garantir os nossos direitos a partir desse processo de certificação. Não há uma só saída”, disse Aparecido Bispo, secretário de Formação, Educação e Qualificação Profissional da Feraesp (Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo).

Jorge Ferreira dos Santos Filho, integrante da Adere-MG (Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais), afirmou que as auditorias e certificações, de fato, ganham importância na atual conjuntura, mas desde que sejam mais transparentes e construídas coletivamente.

Uma queixa comum de sindicatos de trabalhadores é que não são ouvidos durante esses processos de fiscalização das cadeias produtivas, algo que, segundo eles, poderia evitar algumas das falhas comumente encontradas. “É importante, ao mesmo tempo, que a gente conseguisse melhorar o mecanismo. Aí, sim, a gente falaria que um dos principais instrumentos de defesa de direitos seria o instrumento das certificações”, observou Jorge.

Parte dos institutos que fazem a auditoria e que concedem o selo de boas práticas dizem que há pouco envolvimento das entidades de trabalhadores e reconhecem que esta é uma falha do mecanismo que precisa ser corrigida. Heidi Cristina Buzato, especialista técnica da Imaflora, afirmou que o instrumento não dá conta de todas as reivindicações laborais, mas que trata de muitos assuntos de interesse mútuo. “Temos muitos temas de agendas comuns.”

De acordo com o Heidi, as certificações deveriam ser complementares, já que o papel do Estado na proteção das relações de emprego é insubstituível. “É uma ferramenta diferente de uma ferramenta de governo. Os mecanismos de governança na sociedade funcionam com a participação ativa.”

Na prática, as auditorias pressionam os setores empresariais a cumprirem os requisitos de certificação, interferindo nas relações de compra e venda. Uma mercadoria sem o atestado de boas práticas pode ter dificuldades para a exportação ou sofrer boicote dos consumidores. O fortalecimento da relação dos instrumentos de certificação com as entidades de trabalhadores podem servir para tornar o mecanismo mais rigoroso. Quanto mais informações os institutos obtiverem, mais valioso se torna o selo que concedem.

Para o assessor jurídico da Contar (Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais), Carlos Eduardo Chaves Silva, mais conhecido como Cadu, a participação ativa de trabalhadores nesse processo pode amenizar, ainda que não substitua, os efeitos da leis e da inspeção do trabalho mais frágeis que se avizinham. “Não está no horizonte a recuperação da fiscalização do Ministério do Trabalho. A gente vai ter municiar de informações quem certifica e os mercados. Em um momento como esse, a ferramenta da certificação, que já precisávamos antes, agora precisamos mais.”

Funcionamento

Os processos de certificação funcionam com a participação de vários atores e têm como critério uma série de regras. A auditoria é feita por um instituto certificador, contratado por uma entidade credenciadora que detém um selo de boas práticas. O certificador faz a inspeção da cadeia produtiva para verificar se os produtores nela atendem às normas necessárias para obter o atestado. Essas normas obedecem a padrões mundiais, como convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho), ou nacionais, como as leis trabalhistas de um país. Isso varia conforme a credenciadora.

Mariana Barbosa, representante no Brasil da UTZ, uma das maiores certificações de boas práticas do setor cafeeiro, explicou que, no caso dela, vale o que for rigoroso. Se a lei do país for a que colocar mais exigências, como proteção aos empregados ou mitigação de impactos ambientais, é a que vale; se for outra regra, como as exigidas por mecanismos internacionais ou associações privadas, conta esta outra.

No geral, nas auditorias, fiscais visitam as partes da cadeia produtiva, verificando o cumprimento das exigências. Fazem a inspeção, entrevistando trabalhadores e empregadores e apurando quais as condições em que as atividades são desenvolvidas. Constatada a situação, as certificações são concedidas ou não. Posteriormente, os produtores certificados ficarão disponíveis para consulta na base de dados das entidades credenciadoras e certificadoras.

Ocorre, porém, que nem sempre o que foge às regras é constatado, e as auditorias deixam passar problemas importantes —como, na maior parte dos casos, violações trabalhistas. Além disso, falta transparência, conforme observou o pesquisador André Campos, um dos autores do relatório da Repórter Brasil sobre as certificações no setor cafeeiro.

Trabalhador em fazenda de café certificado em Santo Antonio do Amparo (MG). Foto: Lilo Clareto/DanWatch

No seminário, ele citou o caso de várias fazendas produtoras do grão com o selo que só eram identificadas pelo nome delas – fazenda Boa Esperança, por exemplo – na página das certificadoras e credenciadoras na internet. Não constavam, segundo disse, outras informações como o CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), o município em que se encontram ou o proprietário. “Quantas fazendas Boa Esperança será que existem no Brasil?”, questionou, salientando que é necessário melhorar a comunicação dos instrumentos.

Para André, há três pontos que as auditorias poderiam aprimorar no curto prazo. O primeiro seria oferecer canais de queixa acessíveis aos empregados de uma cadeia produtiva, para que o desrespeito a questões trabalhistas possa ser verificado nas certificações. Depois, o engajamento das auditorias com atores locais, como sindicatos e movimentos sociais, com o objetivo de ampliar a coleta de informações. E, por fim, o aperfeiçoamento da transparência, de modo a melhorar os meios de comunicação, com a publicação de informações mais detalhadas sobre os locais inspecionados.

“Essa questão de coleta de dados, de acesso a dados, de transparência de informações, de tudo que está disponível, é um dos grandes desafios para a certificação”, acrescentou Nicole Gobeth, da organização internacional Solidaridad Network, que busca, entre outros objetivos, melhorar as condições de trabalho nas cadeias produtivas de mercadorias rurais. A entidade é uma das que participa dos espaços de discussão oferecidos pelas certificadoras para melhorar a gestão de seus processos.

Governança

Luís Fernando Guedes Pinto, gerente de certificação agrícola da Imaflora, sustentou o argumento de que a participação e envolvimento de mais setores da sociedade são importantes para melhorar o funcionamento das auditorias. “Esse instrumento é uma nova governança. Ele é o mercado, com as suas imperfeições e as contradições que um instrumento do capitalismo leva. Mas estamos nessa disputa de reforma do capitalismo. Dado esse ponto, o instrumento funciona muito melhor quanto mais a sociedade o vigia.”

A participação mais intensa nos espaços de governança pode repercutir em efeitos positivos. Nas principais áreas da economia brasileira, há casos que indicam os dois lados da moeda — de resultados com mais participação e de carências com a falta delas.

No café, por exemplo, pesquisas indicam trabalhadores mais qualificados e melhorias no setor, após produtores aderirem à certificação de suas cadeias. A maior efetividade do instrumento também provoca impactos positivos nas vendas. Apesar de ainda persistirem problemas, a imagem de que o Brasil produz o grão com boas práticas o ajuda a ocupar o posto de maior exportador do mundo, segundo Marcos Antonio Matos, diretor-geral do Cecafé (Conselho dos Exportadores de Café do Brasil).

O setor quer investir mais na governança para que o país seja reconhecido como uma referência mundial de cadeia produtiva socialmente sustentável. Para isso, iniciou o Projeto Mesa de Café, em parceria com a CRI e o Inpacto (Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo) com o objetivo de conscientizar sobre a importância das condições decentes de trabalho para manter boa produtividade com boas taxas de lucro.

Mas não é uma regra. No setor de laranjas, especialmente na produção de sucos, há dificuldades para dar visibilidade à situação dos trabalhadores devido à ação sistemática de práticas antissindicais que não chegam às certificações, de acordo com Abel Barreto, diretor do sindicato dos empregados rurais de Duartina. O município fica em um importante polo de cultivo da fruta, no interior do Estado de São Paulo, considerado o maior produtor mundial da commodity.

Abel afirmou, no seminário, que os empregadores barram a visita de representantes das entidades de classe e que viu, desde que os processos de auditoria se tornaram mais frequentes, pouco da situação melhorar. Ele avaliou que essas dificuldades esbarram na concentração deste mercado, que tem apenas três indústrias na ponta final da cadeia produtiva – Cutrale, Fisher e Louis Dreyfus. “Os trabalhadores assalariados não têm liberdade para denunciar as violações que sofrem”, disse.

De acordo com Ebenezer Marcelo Marques de Oliveira, do Inpacto, que monitora, entre outras coisas, os riscos que uma cadeia produtiva pode correr, caso não se faça uso de boas práticas empresariais, “coloca-se em risco toda a performance do negócio”. “Mesmo que haja subnotificação, as certificações são um importante instrumento para diálogo com as empresas”, concluiu.

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