É a partir dos bosques áridos do Chaco, região de rica biodiversidade resistente ao calor intenso e à escassez de água, que o governo paraguaio pretende consolidar o país como açougue mundial. Turbinada por investidores brasileiros, a agenda de Estado do presidente Horacio Cartes é constituir, na próxima década, um rebanho de 20 milhões de cabeças de gado, o triplo da população paraguaia. O presidente em fim de mandato é um importante pecuarista nesse bioma que, originalmente, compreende mais da metade do território do país.
O capital brasileiro é crucial nesse processo, não só o de frigoríficos, mas também o de pecuaristas atraídos por terras ainda baratas. Para se ter uma dimensão da influência na economia vizinha, as duas maiores companhias de abate de animais em atividade no Paraguai, responsáveis por quase 70% das vendas internacionais de carne bovina, são de origem brasileira.
Embora preocupem organizações ambientalistas e indigenistas, os investimentos graúdos indicam que a indústria brasileira da carne foi ao Chaco para ficar. Sediado no interior de São Paulo, o grupo Minerva costurou, em 2013, uma injeção de US$ 85 milhões da IFC (International Finance Corporation), braço do Banco Mundial, para impulsionar seus negócios no Paraguai. Hoje, o grupo é líder de mercado no país, seguido pelo frigorífico Concepción, controlado pelo também brasileiro Jair Antonio de Lima.
Em 2017, o Minerva bateu recorde de receita com R$ 12,1 bilhões. Em parte, as cifras históricas se devem à compra, em julho do ano passado, de nove unidades da JBS, a maior processadora de proteína animal do planeta, localizadas na Argentina, Uruguai e Paraguai. Há cinco anos a companhia vem ampliando seu leque de fornecedores e adquirindo plantas de abate na América do Sul. O setor passa por profundas transformações desde que foi deflagrado o envolvimento de alguns dos maiores grupos do setor com escândalos de corrupção. Em junho passado, o mercado entrou em polvorosa com rumores sobre a possível fusão do Minerva com outro gigante nacional: a BRF, donas das marcas Sadia e Perdigão. Até o momento, a união dos dois grupos não foi confirmada.
O business da pecuária no Paraguai cresce a uma velocidade tão vertiginosa quanto os dados de desmatamento ilegal e as denúncias sobre trabalho forçado de indígenas, incluindo crianças. Por essa razão, o governo local e o setor produtivo têm sido cada vez mais pressionado a olhar com cuidado para o Chaco, a porção ocidental do país para onde a criação de gado tem se expandido nos últimos anos. Apesar de ocupar quase 60% do território paraguaio, uma área equivalente à do estado de São Paulo, o Chaco abriga apenas 3% do total de habitantes.
“O Chaco é hoje a ecorregião que sofre a maior devastação em nível mundial”, explica Alberto Yanosky, diretor-executivo da organização ambientalista Guyra. “Estamos derrubando bosques originais para produzir carne”, completa.
Em novembro do ano passado, o desmatamento atingiu seu ápice. Ao longo daquele mês, uma impressionante média de 2 mil hectares de vegetação nativa tombou diariamente – o equivalente a 2.600 campos do Maracanã. De acordo com o monitoramento por satélite realizado pela Guyra, ao menos um terço do Chaco já virou pastagem para alimentar metade de todo o rebanho bovino paraguaio.
Na área trabalhista, as notícias tampouco são animadoras. Para setembro está previsto o lançamento de um aguardado relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre trabalho forçado e escravidão por dívida de comunidades indígenas na região. Além de recorrentes denúncias de sindicatos e movimentos sociais, esparsas fiscalizações trabalhistas realizadas recentemente acenderam uma luz vermelha.
“As autoridades sempre quiseram ocultar essas deficiências”, critica Melanio Morel, diretor da central sindical CUT-Autêntica, lembrando que o próprio presidente Horacio Cartes é um importante pecuarista no Chaco. “O Ministério do Trabalho não toma medidas específicas para solucionar o problema”, acrescenta.
“O Chaco é hoje a ecorregião que sofre a maior devastação em nível mundial”, diz Alberto Yanosky, da organização ambientalista Guyra
O fato é que a primeira fiscalização trabalhista do Chaco que resultou no resgate de indígenas em condições análogas às de escravo ocorreu apenas em novembro de 2016. Um grupo de 35 indígenas foi encontrado produzindo carvão vegetal em condições desumanas em uma estância de gado no departamento de Boquerón, no norte do país. Em um ambiente em que a temperatura alcança 50 graus, os trabalhadores sequer tinham acesso a água para beber e só foram resgatados após um pedido de socorro ter sido encaminhado ao Ministério Público (MP) do Paraguai.
“Eu não posso afirmar que em todas as fazendas do Chaco acontece isso. Mas, quando há uma denúncia e se fiscaliza, é isso que se encontra”, aponta Teresa Martinez, procuradora do MP responsável pelo resgate dos 35 trabalhadores.
Menonitas e a escravidão de indígenas
Localizada a 450 quilômetros da capital Assunção, Filadélfia é a porta de entrada para o Chaco. A cidade foi fundada há quase 90 anos por colonos menonitas, cristãos protestantes que migraram da Europa e se estabeleceram na porção ocidental do Paraguai. Ela abriga a sede de uma das três cooperativas menonitas que movimentam a economia – com frigoríficos, laticínios e curtumes – e geram a maior parte dos empregos do Chaco.
Em março deste ano, o Ministério do Trabalho paraguaio inaugurou um escritório no centro de Filadélfia especialmente para receber reclamações de indígenas que trabalham nas estâncias de gado na região. A responsável é Erundina Gómez, uma indígena cujo pai “trabalhou 20 anos em uma fazenda, mas não lhe pagaram nada”.
“Os indígenas ganham pouco, trabalham muito, comem pouco, não dormem bem. Falta água. E todo mundo sabe disso”, diz líder comunitário Guarani-Ñadeva.
De acordo com Erundina, o posto não dispõe de estrutura para ir a campo, nem de autonomia para verificar in loco eventuais irregularidades. Isso porque, no Paraguai, fiscais do governo só podem entrar em propriedades rurais mediante ordem judicial. Assim, o trabalhador não só tem de ir ao escritório de Filadélfia para registrar sua queixa, como também precisa entregar ao próprio patrão a notificação oficial que convoca o empregador a prestar esclarecimentos.
“O Ministério não investiu nada [neste escritório]”, critica Erundina. “Eu preciso imprimir papéis em outro lugar”.
As queixas mais comuns dos indígenas ouvidos pela Repórter Brasil dizem respeito a baixos salários, invariavelmente inferior ao piso mínimo estabelecido por lei. É comum que serviços temporários, como limpeza de pastos e construção de cercas, sejam oferecidos por “contratistas” – agenciadores de mão de obra que não raro adiantam dinheiro aos indígenas e fazem o acerto ao término da empreitada.
“O contratista cobra tudo: botas, roupas, comida. Tudo é por conta do trabalhador”, resume Isabelino Bogado, líder comunitário Guarani-Ñadeva. “Os indígenas ganham pouco, trabalham muito, comem pouco, não dormem bem. Falta água. Isso acontece em toda parte. E todo mundo sabe disso”, afirma. Nas comunidades indígenas no entorno de Filadélfia, as queixas recaem principalmente sobre os colonos menonitas que em sua maioria também se dedicam à pecuária bovina.
Patrick Friesen, gerente de comunicação da cooperativa menonita Chortitzer, sediada em uma cidade vizinha a Filadélfia, garante que os 6.500 sócios são instruídos a operar em acordo com a legislação trabalhista. A cooperativa é dona da Trébol, a marca de produtos lácteos mais popular do Paraguai, e também controla o Frigo Chorti. Trata-se da única planta de abates de bovinos instalada em pleno Chaco, já que a maior parte dos frigoríficos em atividade no Paraguai se situa nas imediações da capital Assunção.
“Alguns estavam com colchões no chão, outros dormiam sobre madeiras. As coisas não estão mudando.”, diz procuradora do Ministério Público
“O Chaco é muito grande. E a região onde estamos pode ser completamente diferente de outra a 400 quilômetros daqui, onde um empresário pode empregar gente em sua terra trabalhando de maneira forçada ou sem o pagamento devido”, ressalva Friesen.
Distante dos principais núcleos urbanos do Chaco, o primeiro resgate de trabalhadores em condições de escravidão feito pelas autoridades paraguaias, em novembro de 2016, ocorreu no extremo norte do país, já próximo à fronteira com a Bolívia. Mas o proprietário da estância de onde foram resgatados os 35 trabalhadores em condições de escravidão era um colono menonita associado à Chortitzer, que chegou a ser condenado judicialmente pelo crime de tráfico de pessoas.
“As condições eram muito precárias. Alguns estavam com colchões no chão, outros dormiam sobre madeiras. Eles colocaram uma lona entre as árvores para se proteger do sol”, descreve Teresa Martinez, do Ministério Público, que coordenou a operação. “Eles teriam que trabalhar seis meses, mas com três meses já não aguentavam mais. Porque partiram de outra localidade, daqui da região Oriental, e não se habituaram ao clima pesado do Chaco e à falta de água”, completa.
Os trabalhadores eram indígenas do povo Ache, recrutados em sua comunidade natal, a 800 quilômetros de distância da fazenda onde foram encontrados enchendo fornos de carvão com troncos de árvores nativas – etapa que geralmente antecede a formação de pastos para a criação de gado.
Meses depois da operação realizada perto da fronteira com a Bolívia, uma segunda fiscalização encontrou adolescentes novamente na produção de carvão, em condições desumanas. A procuradora Teresa Martínez não hesita em cravar que, se mais ações forem realizadas, novos casos de trabalho escravo virão à tona. “As coisas não estão mudando. E deveriam mudar”, reconhece.
Investimento de risco
Ao contrário dos colonos menonitas historicamente estabelecidos no Chaco, que em sua maioria cultivam propriedades de porte médio, por volta de 400 hectares, os pecuaristas brasileiros que investem em terras na região em geral adquirem estâncias de áreas até 30 vezes superiores.
Além dos menonitas e de investidores brasileiros, a região também atrai criadores de gado da Argentina e do Uruguai. “O preço da terra no Chaco subiu 4.000% na última década”, aponta Alberto Yanosky, diretor-executivo da organização ambientalista Guyra. “Nós asseguramos uma unidade de conservação uns dez anos atrás e pagamos US$ 20 o hectare [área equivalente a 10 mil metros quadrados]. Hoje, essa mesma terra está sendo negociada por US$ 800 o hectare”, compara o ambientalista.
O boom da pecuária no Chaco chamou a atenção da Agência Internacional para Desenvolvimento do governo norte americano – USAID, na sigla em inglês. No ano passado, o organismo publicou um extenso relatório de monitoramento dos impactos socioambientais do investimento de US$ 85 milhões feito pelo o Banco Mundial, através do seu braço IFC, em maio de 2013 no Minerva para impulsionar as atividades da companhia brasileira no Paraguai.
“Grandes exportadores de carne bovina, como o Minerva, operam sob rígidos controles sanitários”, afirma o relatório da USAID. No entanto, “a aplicação de critérios ambientais e sociais na gestão da cadeia de fornecedores é praticamente inexistente”. A publicação ressalta que o investimento no Minerva foi enquadrado na categoria de risco A – a mais alta, segundo os parâmetros da própria IFC. Dentre os potenciais impactos negativos, destacam-se justamente o incremento da devastação ambiental, o aumento dos casos de trabalho forçado e o avanço da pecuária sobre terras indígenas.
Passados quatro anos desde a aprovação do financiamento do IFC, os técnicos USAID analisam que ainda faltam mecanismos concretos para garantir que o gado comprado de produtores no Chaco não tenha pastado em áreas desmatadas irregularmente e para evitar que trabalhadores indígenas sejam submetidos a condições análogas às de escravo.
Na mesma medida em que se avolumam as vendas internacionais, também cresce a pressão para aprimorar a rastreabilidade da carne do Chaco. “Estamos conscientes de que o comprador mundial quer conhecer e estar seguro da legitimidade de seu produto”, afirma Patrick Friesen, gerente da cooperativa menonita que controla o Frigo Chorti, terceiro maior exportador do Paraguai. “Mas temos que saber que o branding do Paraguai não está somente nas mãos do setor privado, mas também do governo”, acrescenta.
A Repórter Brasil enviou uma série de perguntas ao Minerva sobre suas operações no Paraguai, questionando inclusive se a empresa havia adquirido gado de produtores autuados por trabalho forçado, mas a empresa afirmou por meio de sua assessoria de imprensa que não iria se pronunciar.
O IFC, por sua vez, respondeu que “o melhor caminho para garantir sustentabilidade à pecuária no Paraguai é desenvolver estratégias de mercado para incrementar a produção em áreas já abertas e proteger as florestas remanescentes em mãos privadas”. No caso específico do financiamento concedido ao Minerva, o IFC afirma que está trabalhando com o frigorífico para “aprimorar o gerenciamento de sua cadeia de fornecedores no Paraguai” e que “a empresa está à frente de outras companhias do setor” (leia a resposta na íntegra em inglês aqui).
Esta reportagem foi realizada com apoio da Ituc (International Trade Union Confederation)