“Daqui eu só saio morta. E espero que não seja pelo disparo da arma de nenhum pistoleiro”. A frase que a agricultora Osvalinda Marcelino Pereira pronunciou diante do procurador da República Paulo de Tarso Oliveira condensa um histórico de violência, expropriações e mortes anunciadas no campo, tão comuns na Amazônia brasileira. Era a primeira vez que um procurador colocava os pés no assentamento Areia, localizado nas proximidades da BR-163, entre os municípios de Trairão e Itaituba, no oeste do Pará. A visita do procurador e de uma rede de apoiadores havia sido motivada pela mais recente ameaça feita ao casal Osvalinda e Daniel Pereira: em 20 de maio, ao sair para colher frutas, eles encontraram no quintal duas covas, cavadas a 100 metros de casa.
Osvalinda e Daniel vivem no Projeto de Assentamento Areia, criado pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) em 1998. A área é vizinha da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, que compõe um contínuo de 28 milhões de hectares de áreas protegidas na região conhecida como Terra do Meio, um dos maiores maciços florestais do planeta. Por dentro do Projeto de Assentamento Areia passa a principal rota de escoamento da madeira ilegalmente extraída da Resex. Segundo Juan Doblas, que coordena os trabalhos de geomonitoramento na Bacia do Xingu pelo Instituto Socioambiental (ISA), os dados levantados em 2017 indicam essa Resex como um dos mais preocupantes pontos de exploração madeireira da Amazônia.
Denúncias feitas ao Ministério Público Federal, em 2011, pelo líder comunitário João Chupel Primo, revelaram que as quadrilhas que ali operam chegaram a transportar, em um único dia, cerca de 3.500 metros cúbicos – o equivalente a mais de 800 mil dólares brutos, podendo passar de 4,5 milhões de dólares se beneficiados.Horas depois de formalizar a denúncia no MPF do município de Altamira, Chupel foi assassinado. De acordo com os relatos de assentados do Areia, entre 2010 e 2018, pelo menos 20 assassinatos relacionados a conflitos pelo controle da terra e da madeira ocorreram na região.
Osvalinda e Daniel estão entre os poucos que conseguiram resistir ao domínio dos madeireiros. Eles chegaram ao PA Areia em 2001. Vinham fugidos da violenta expansão da fronteira do agronegócio em Mato Grosso, quando fazendeiros incendiaram o lote deles no projeto de assentamento Itanhangá após tentativas de comprar a terra para plantar soja. “Deixamos nossas duas filhas na casa do vizinho e viemos de moto, rumo ao Pará, em busca de um lugar para plantar e recomeçar a vida”, conta Osvalinda.
O Itanhangá ficou nacionalmente conhecido em 2014, quando a Polícia Federal deflagrou a “Operação Terra Prometida” e prendeu mais de 30 pessoas, entre políticos, servidores públicos e produtores rurais que expulsavam as famílias das terras destinadas à reforma agrária. Entre os presos, estavam dois irmãos do então ministro da Agricultura Neri Geller. Já as poucas notícias que se têm do Areia vieram à tona porque Osvalinda precisou romper o pacto de medo e silêncio vigente no assentamento para sobreviver.
Quando instalada no Areia, disposta a romper com a dependência que as milícias madeireiras impunham, ela criou uma Associação de Mulheres para buscar capacitação e incentivar outros agricultores a adotar o sistema agroflorestal que, no sítio Nova Esperança – nome que deu ao novo lar, já rendia, anualmente, centenas de quilos de polpas de frutas, produzidas com assistência técnica do Instituto de Pesquisa da Amazônia (IPAM). As visitas da caminhonete branca da ONG ambientalista, confundida pelos jagunços dos madeireiros com o carro do Ibama, bastaram para gerar o boato de que a agricultora denunciava o esquema criminoso.
Osvalinda fazia tratamento médico em Santarém (PA) quando uma companheira de quarto comentou que os madeireiros dos municípios paraenses de Trairão, Itaituba, Uruará e Novo Progresso estavam fazendo uma “vaquinha”, e coletando R$ 3 mil de cada para encomendar sua morte.
Dias depois, 12 homens, entre chefes do esquema madeireiro e seus pistoleiros armados, chegaram à casa dos Pereira e ofereceram dinheiro para que o casal encerrasse as atividades da Associação e trabalhasse para eles. Ante a recusa, Osvalinda conta que começaram as ameaças: “Se vier um empregado meu aqui e matar vocês, a culpa não é minha, é da senhora”. “A senhora tem que morrer como a Dorothy, porque ambientalista que fica prejudicando a gente tem que morrer”.
Até então, Osvalinda conta que nunca havia feito uma denúncia. “Fiz porque eles estavam nos ameaçando”. Ela diz que que, ao tentar registrar o boletim de ocorrência na delegacia do município de Trairão(PA), o escrivão se recusou sob o argumento de que ela e o marido seriam presos. Isso aconteceu em 2012. De lá para cá, inúmeras ameaças se seguiram. E elas costumam se intensificar quando circula o boato de que o Incra irá retomar a terra concentrada por grileiros e distribuí-la às famílias de camponeses sem terra. O recado enviado pelos grileiros é claro: “se o Incra entrar, muita gente vai morrer aqui dentro”.
Em 2013, técnicos do Incra fizeram um relatório de revisão ocupacional no PA Areia e identificaram que praticamente um terço dos lotes do assentamento estava concentrado nas mãos de grileiros. Cinco anos depois, a situação segue igual. Questionado pela reportagem, o superintendente do Incra responsável pelo oeste do Pará, Mário Sérgio Costa, por meio da assessoria de imprensa do órgão, respondeu que os casos identificados foram ajuizados e que “Todas essas ações tiveram liminares em favor do Incra, concedidas nos anos de 2017 e 2018”.
O órgão, entretanto, não agiu para efetivar a retomada das terras. Segundo Pedro Martins, que acompanha a situação como assessor jurídico da Terra de Direitos: “O Incra cruza os braços quando poderia cobrar a execução das decisões que ordenam a reintegração de posse, mas a gestão do órgão parece não priorizar a redistribuição de lotes no Areia.”
Apesar das décadas de denúncias sobre a situação do assentamento, Costa afirma que “não há inação do Incra”, que agiria “na medida da capacidade operacional atual e dos recursos financeiros disponibilizados”.
Costa e seu irmão, o deputado federal Wladimir Costa (SD-PA), são acusados de “transformar a superintendência em palanque eleitoral para a família”. Desde o dia 19 de junho, o superintendente está proibido de participar de eventos institucionais e citar o nome do irmão.“A decisão da 2.ª Vara Federal Cível e Criminal de Santarém foi tomada no âmbito de uma ação de improbidade administrativa proposta por 15 procuradores da República”, disse Paulo de Tarso Oliveira, um dos procuradores que assinam a ação.
Às vésperas da visita do procurador à Osvalinda e da publicação dessa decisão liminar, Mário Sérgio Costa esteve no município de Trairão distribuindo documentos fundiários. O superintendente do Incra estava acompanhado do irmão, o deputado federal Wladimir Costa (SD-PA), que ficou conhecido por ter feito uma tatuagem temporária com o nome do presidente Michel Temer. O prefeito de Trairão, Valdinei José Ferreira, conhecido como Django, também fez parte da comitiva.
Django tem mais de 11 milhões de reais de multas por crimes ambientais, segundo o sistema de consulta pública do Ibama, quase todos relativos à operação ilegal madeireira. Entre seus delitos autuados consta a operação de madeireira no PA Areia. O superintendente do INCRA, Mário Sérgio Costa, renunciou ao cargo no INCRA em 10 de agosto.
O Ibama, ao ser questionado pela reportagem sobre como um foco de exploração de madeira da Amazônia segue em funcionamento após décadas de denúncias, informou que embargou mais de 100 madeireiras no entorno do Resex e do Areia. O órgão destacou que o ICMBio é o principal responsável pela fiscalização no interior da Resex. Procurado, o ICMBio não atendeu à reportagem até o fechamento.
Enquanto a exploração ilegal de madeira persiste, Osvalinda e Daniel seguem expostos. O casal entrou para o Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos em 2014 e recebe, uma vez por semana, a visita de policiais do município de Trairão. Já a ronda feita pelos pistoleiros armados é frequente: “eles passam aqui na porta acelerando as motos várias vezes ao dia ou nos seguem pela estrada quando vamos à cidade”, conta Daniel. O apoio dos vizinhos se restringe a dois amigos que também se tornaram alvo de ameaças. “No Areia, quase ninguém conversa com a gente, com medo dos madeireiros”, completa. Imerso no isolamento geográfico e social, o casal se articula com uma rede de apoiadores externos e tenta mostrar ao mundo suas razões para resistir. “De que vai adiantar a luta se nos matarem e ninguém souber por quê?”, indaga Osvalinda.
E, mesmo entre os apoiadores, sempre surge uma pergunta reveladora da incompreensão que separa o mundo de Osvalinda e Daniel do mundo de quem os defende: “vocês não cogitam a possibilidade de sair daqui?”. O casal, que tão bem entende os ciclos da natureza, também conhece como poucos a sina dos expropriados da fronteira, sempre empurrados para mais longe, a encontrar o mesmo destino. “Ir para onde?”, Osvalinda devolve a pergunta.
Essa matéria foi produzida pela Mongabay e está sendo republicada em português pela Repórter Brasil. Leia o conteúdo original em inglês: Death foretold? A courageous Amazon peasant couple resists illegal loggers