Condenação por trabalho escravo no Paraguai expõe fornecedores de montadoras europeias

Fábrica de couro que utiliza gado do Chaco, região do Paraguai campeã em desmatamento ilegal e em denúncias de trabalho escravo, tem relação com multinacionais de carros
Por Carlos Juliano Barros e André Campos
 19/09/2018

“Para mim, existem dois conceitos antropológicos muito importantes”, reflete Patrick Friesen, com seu espanhol de sotaque acentuado. Descendente de protestantes menonitas que deixaram a Europa para fundar colônias agrícolas na árida região do Chaco paraguaio, Friesen é o gerente de comunicação da Chortitzer. A cooperativa é uma das três grandes associações menonitas que lideram a economia da inóspita porção ocidental do país.

“O primeiro [conceito] é que as pessoas do [hemisfério] Norte precisam acumular. Trabalham de sol a sol, investindo, para depois sobreviver no inverno”, Friesen desenvolve seu raciocínio. “Já uma pessoa do [hemisfério] Sul, para dizer de uma maneira grosseira, pode ficar sentada debaixo de uma mangueira que uma manga cai em sua cabeça. A natureza dá a segurança”, conclui o gerente da Chortitzer, diferenciando o que seriam os mapas mentais de menonitas e indígenas que há quase um século convivem no Chaco.

Constituído por bosques secos resistentes à escassez de água e a temperaturas escaldantes, o Chaco ocupa mais da metade do território do Paraguai. Na última década, a pecuária bovina avançou em ritmo acelerado e a região já responde por 43% rebanho do país. Depois da soja, o item carne é o segundo mais vendido na pauta de exportações paraguaia, somando U$ 1,1 bilhão em 2017. As vendas de couro também aparecem no Top 10.

Porém, à medida que os derivados da pecuária bovina conquistam espaço no mercado internacional, pipocam focos de desmatamento ilegal e se avolumam denúncias de trabalho escravo entre a população indígena. Nesse sentido, o Chaco está para o Paraguai assim como a Amazônia está para o Brasil.

35 indígenas foram encontrado produzindo carvão vegetal em condições desumanas em uma estância de gado. (Fotos: Ministério Público do Paraguai)

Agravado pela falta de fiscalizações realizadas pelo Estado paraguaio, o quadro de irregularidades socioambientais coloca em xeque a sustentabilidade de cadeias produtivas globais de marcas mundialmente conhecidas. A montadora alemã BMW tem entre seus fornecedores uma indústria que produz couro a partir de gado criado no Chaco: a Cencoprod. Já as francesas Citroën, Peugeot e Renault são abastecidas por uma companhia que já adquiriu insumos dessa mesma fábrica paraguaia. É o que aponta uma investigação conjunta da Repórter Brasil com o jornal britânico The Guardian.

A Cencoprod é uma sociedade mantida pelas três cooperativas menonitas que comandam a economia do Chaco: Fernheim, Neuland e Chortitzer. Dentre os membros dessa última, figura o primeiro e único condenado da história da Justiça paraguaia pelo crime de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.

Leia também:

Indústria brasileira da carne avança sobre Chaco paraguaio

O caso ocorreu em novembro de 2016. Fiscais do governo encontraram 35 pessoas trabalhando e vivendo em condições desumanas em uma fazenda no departamento de Boquerón, próxima à fronteira com a Bolívia. Os trabalhadores eram indígenas do povo Aché recrutados a quase mil quilômetros de suas comunidades para fazer carvão a partir da derrubada da mata nativa. No grupo, também havia crianças e adolescentes com feridas nas mãos causados pela produção de carvão. No Chaco, é comum que a atividade anteceda a formação de pastagens.

Dormindo em colchões jogados no chão e protegidos do sol apenas por lonas plásticas, o grupo sequer dispunha de água suficiente para matar a sede, apesar de a temperatura alcançar até 50 graus na região. Os trabalhadores ainda acumulavam dívidas para pagar a comida impostas pelo “contratista” – o agenciador de mão-de-obra. Na tentativa de economizar, deixavam até mesmo de jantar. A propriedade rural onde houve o flagrante, denominada Estância Ruroka, pertence a Rudi Kauenhowen Friesen, colono menonita associado à cooperativa Chortitzer

Entre os resgatados, havia crianças e adolescentes com feridas nas mãos causadas pela produção de carvão

A operação só foi deflagrada pelo Ministério Público do Paraguai depois de uma denúncia chegar ao gabinete da procuradora Teresa Martínez. “É preciso controlar. Se não se controla, ocorrem essas coisas”, afirma. “Neste caso, entramos [na fazenda] porque pediram ajuda. Mas nós temos um problema: os inspetores não podem entrar sem uma ordem judicial. E para que consigam essa ordem nós [do Ministério Público] temos que intervir [perante a Justiça]”, complementa a procuradora.

Contudo, são muitos os obstáculos para a fiscalização – até as mais altas autoridades paraguaias relutam em admitir problemas. Não é difícil encontrar declarações públicas de ministros do governo do ex-presidente Horacio Cartes, ele mesmo um grande proprietário de terras e pecuarista no Chaco, minimizando ou até mesmo negando a existência de trabalho escravo na região.

BMW, Renault, Citroën e Peugeot

Em resposta a questionamentos feitos pela investigação conjunta da Repórter Brasil e do Guardian, a BMW anunciou uma auditoria em sua rede de fornecedores. Primeiro, a montadora alemã afirmou por meio de nota oficial que não tinha conhecimento da condenação envolvendo o colono associado à Chortitzer, mas confirmou que um de seus fornecedores de couro adquiria insumos da Cencoprod.

“Em casos como esse, nós damos início a uma investigação com o nosso fornecedor direto para checar os fatos”, afirma a empresa. “O Grupo BMW definitivamente não tolera qualquer tipo de violação de direitos humanos em suas cadeias produtivas”.

Em um segundo momento, a BMW informou que a fazenda Ruroka – palco do flagrante de trabalho escravo – não era fornecedora da Cencoprod e, portanto, não estaria diretamente envolvida em sua cadeia de suprimentos.

A investigação também rastreou outras montadoras europeias que já tiveram ligações com a Cencoprod. A Renault e o grupo PSA (responsável pelas marcas Citroën e Peugeot) afirmaram que seu principal fornecedor de couro, a empresa italiana Italthierry Auto Leather Spa, deixou de comprar matéria-prima da Cencoprod em 2016. Contactadas, tanto a Cencoprod como a Italthierry não se pronunciaram.

De todo modo, a Europa segue como um importante destino do couro paraguaio. No ano passado, por exemplo, centenas de toneladas foram despachadas para a Itália. Tendo em vista a quase inexistente fiscalização trabalhista no Chaco, as cadeias produtivas das montadoras europeias estão expostas a riscos que não podem ser subestimados.

Rastreabilidade

A economia do Chaco paraguaio gira em torno da pecuária bovina. De acordo com um levantamento da organização ambientalista Guyra, um terço da vegetação nativa já se transformou em pastagens. “O que mais nos preocupa é que quase 50% do desmatamento é completamente ilegal”, afirma Alberto Yanoski, diretor da Guyra.

Mas é nos núcleos urbanos fundados pelos colonos menonitas que se encontram os mais de 30 mil descendentes dos imigrantes europeus. Nessas cidades, é inevitável cruzar com placas de trânsito em alemão. Também é comum topar com crianças de olhos e cabelos claros brincando em jardins bem cuidados. Aos fins de semana, as igrejas protestantes ficam lotadas de menonitas.

Nas zonas urbanas, estão sediadas as três cooperativas menonitas que lideram a economia do Chaco. Apesar de competirem no segmento de carne bovina com seus frigoríficos próprios, elas mantêm sociedade no mercado de couro através da Cencoprod.

O gerente de comunicação da Chortitzer, Patrick Friesen, reconhece que a pressão dos consumidores internacionais vem obrigando as cooperativas a tomar medidas para garantir a sustentabilidade dos seus produtos. “Obviamente, a clientela manda. Se a clientela exige rastreabilidade, temos que cumprir”, assegura.

Entretanto, ele é menos assertivo sobre como a Chortitzer pode cobrar o cumprimento das leis ambientais e trabalhistas de seus membros. “Nós como cooperativa tradicionalmente não obrigamos nossos sócios a fazer o que quer que seja”, explica o gerente da Chortitzer.

Mesmo com o calor que chega a 50°C, os trabalhadores não tinham água suficiente para matar a sede

Questionado sobre o caso do primeiro condenado por tráfico de pessoas para trabalho escravo no Paraguai, envolvendo um associado da Chortitzer, ele afirma: “Nós podemos incentivá-lo, motivá-lo, e também dizer ao associado que enfrente as consequências legais. E não protegê-lo por uma coisa errada”.

Frisen garante que a Chortitzer “tem regras muito rigorosas de rastreabilidade do gado”. Porém, afirma que a cooperativa não compra bois da fazenda Ruroka, palco do primeiro flagrante de trabalho escravo do Paraguai. Assim, as regras não se aplicariam ao caso específico dessa propriedade rural.

Por fim, o gerente de comunicação da Chortitzer também acredita que o Estado paraguaio deveria reforçar a fiscalização na região do Chaco. “O branding do Paraguai não está somente nas mãos do setor privado, mas também nas do governo”, complementa.

Em março deste ano, o Ministério do Trabalho paraguaio inaugurou um posto em Filadélfia para registrar exclusivamente denúncias de indígenas. A única funcionária do local é Erundina Gómez, indígena cujo pai “trabalhou 20 anos em uma fazenda, mas não lhe pagaram nada”.

Ela sabe que o problema vivido por seu pai ainda é recorrente. Em fevereiro deste ano, quatro adolescentes indígenas entre 15 e 17 anos foram encontrados pela polícia em uma propriedade rural, depois de um contratista abandoná-los sem água e sem comida. Eles haviam sido recrutados para produzir carvão na fazenda de um colono menonita da região.

Esta reportagem foi realizada com apoio da Ituc (International Trade Union Confederation)

 

International Trade Union Confederation (logo).svg

 

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM