Quem vê Euclides de Carli, um senhor de 74 anos, careca e de bigode grisalho, no comando de um bingo beneficente do Rotary Club em São José do Rio Preto não imagina que por trás da estampa de benfeitor está um latifundiário que colecionou inimigos e deixou um rastro de ódio por onde passou. Carli, que durante décadas fez fortuna com venda e arrendamento de terras, construiu com esmero a imagem de empresário-filantropo no interior de São Paulo, mas, entre comunidades rurais do Nordeste do país, é considerado um dos maiores grileiros da região.
Carli é definido como “o senhor das terras” pelo juiz Heliomar Rios, da vara agrária de Bom Jesus, no Piauí. O juiz estima que ele tenha abocanhado, por meio de fraudes e falsificações, território equivalente a duas cidades de São Paulo (300 mil hectares). “Mas pode ser bem mais do que isso”, diz. Carli também é acusado pelas famílias das vítimas e por pequenos produtores rurais de ter ameaçado e mandado matar aqueles que se opuseram a ele no processo de apropriação de terras. Apesar das suspeitas de crimes que rondam o latifundiário, Carli se gaba de nunca ter sido condenado por grilagem.
Ele responde, contudo, por uma ação na Justiça, que o acusa de grilagem e que bloqueou, por meio de liminar, 124 mil hectares de uma de suas fazendas no Sul do Piauí. Uma das estratégias usadas por Carli para conseguir as propriedades na região de Matopiba – acrônimo formado pelas siglas do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – envolve o uso de laranjas e um esquema de triangulação com três cartórios, de acordo com a ação judicial. Ainda segundo a ação, os cartórios são suspeitos de terem sido coniventes com o esquema pois chegaram a aceitar procuração assinada por pessoas mortas.
“Seu nome provoca pavor nas comunidades e famílias das quais ele deseja as terras”, afirma o professor da Universidade Federal do Oeste do Pará, Raoni Azeredo, que estuda conflitos fundiários no Sul do Piauí. “Há um consenso de que o Carli é uma figura poderosa e que acaba sempre vencendo”.
Se por um lado Carli é acusado de roubar terras, por outro ele é apontado como um dos responsáveis por modernizar o Nordeste ao abrir caminho para que grandes empresas produtoras de soja e algodão entrassem no Sul do Maranhão e Sudoeste do Piauí. “É a nova fronteira agrícola que se abre e ninguém segurará este progresso”, profetizou Carli em uma carta enviada a um missionário há 24 anos.
“Seu nome provoca pavor nas comunidades e famílias das quais ele deseja as terras”, diz Raoni Azeredo, professor da UFOPA
Entre seus clientes estão gigantes do agronegócio, como Cargill, SLC Agrícola, Bunge, Agrinvest e até fundos internacionais. Em 2015, o Teachers Insurance and Annuity Association (TIAA), fundo de pensão que gerencia investimentos de cinco milhões de professores norte-americanos (incluindo docentes aposentados de Harvard), também comprou terras de Carli, conforme reportagem do jornal New York Times.
O latifundiário é definido pelo jornal norte-americano como “empresário nebuloso” (“shadowy”, em inglês), além de “um especulador de terra acusado de empregar pistoleiros para roubar, por meio da força, terras dos agricultores pobres”.
A Repórter Brasil conversou com mais de 30 pessoas, consultou teses e relatórios de ONGs, e vasculhou processos judiciais sobre Carli para tirar o empresário das sombras. Insistiu para entrevistá-lo pessoalmente, mas o pedido foi negado por ele, que citou problemas de saúde. Ele respondeu às perguntas enviadas por email, em que nega as acusações. “Fosse eu tudo isso que falam de mim eu deveria estar preso ou condenado”.
Ele diz se considerar um “colonizador” e usa uma frase do poeta Cassiano Ricardo para se definir: “Pois quem caminha e leva uma fronteira nos pés, caminha dividido: de um lado é herói, do outro é bandido”.
Primeiros voos
Carli começou a negociar terras na década de 1970 no Mato Grosso do Sul. Teve uma frota de aviões para pulverizar agrotóxicos em plantações de soja e chegou a trabalhar como piloto. Foi um dos fundadores do Sindicato Nacional de Aviação Agrícola, entidade de relevância no setor. No início da década de 1990, vendeu sua frota de aeronaves para um sobrinho e partiu para o Nordeste brasileiro – mais precisamente o Sul do Maranhão.
No Estado da família Sarney, Carli, apesar de discreto, passou a ter um bom relacionamento com a elite local. “Ele nunca perdeu uma ação no Maranhão”, destaca Roberto de Souza Miranda, professor da Universidade Federal de Campina Grande, que estudou a questão fundiária no Sul do Maranhão e pesquisou a trajetória do empresário. Um dos motivos de o grileiro ter passado incólume no estado, segundo o pesquisador, seria seu bom relacionamento com clientes do agronegócio.
“Quem caminha e leva uma fronteira nos pés, caminha dividido: de um lado é herói, do outro é bandido”, escreve Carli, citando o poeta Cassiano Ricardo.
“Euclides de Carli atua com o aval do estado. Extorque terras da região, além de usar violência física e psicológica. Usa métodos lícitos e ilícitos. Desde oferecer grana abaixo dos valores de mercado até o uso de segurança armada para amedrontar famílias”, concorda o professor da Universidade Federal do Oeste do Pará, Raoni Azeredo, que estuda conflitos fundiários no Sul do Piauí.
“Carli aterroriza. Seus seguranças colocam corrente nas estradas para que não possamos passar e entram de noite nos barracos ameaçando”, afirma Vitório Lopes, morador que disputa, com Carli, a posse de um terreno em Santa Filomena (PI). O litígio se arrasta há mais de uma década. Em 2011, no auge das desavenças, seu irmão José Antônio Lopes foi assassinado.
Lopes não tem dúvidas de que o mandante do assassinato foi Carli. O inquérito policial concluiu que o assassino foi João da Cruz, parente da vítima. Ele está foragido e com mandado de prisão em aberto, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão. Lopes, irmão da vítima, diz que o assassino teria recebido uma oferta de R$ 30 mil pelo crime. “O único inimigo que meu irmão tinha era Carli”, afirma.
Questionado sobre a acusação de ser o mandante da morte de José Antônio, Carli afirma que comprou o terreno da família e que a vítima recebeu o pagamento. “Quem sabe na partilha os familiares se desentenderam? O assassino é parente deles e está foragido”, diz o empresário.
Uma das estratégias do grupo chefiado por Carli, segundo a investigação contra ele, seria justamente essa: desarticular, ameaçar e aliciar famílias que moram nas terras de seu interesse. De acordo com Miranda, professor da UFCG, algumas famílias receberam dinheiro para deixarem suas terras ou para ficarem divididas e brigarem entre si.
A imagem que Carli quer passar é bem diferente. No site da empresa, o destaque são para ações beneficentes do empresário. Lá, é possível saber que ele doou 47,5 toneladas de arroz para famílias do interior do Piauí, promoveu ações sociais para arrecadar recursos para Apae e recebeu homenagem por seu trabalho no Rotary Club, no interior paulista. É possível até escutar uma música feita em homenagem a ele, por um corretor de imóveis e cantor amador, que narra em versos caipiras a trajetória do empresário.
Mataram até o poodle
Outra morte não esclarecida ronda o empresário. João Emídio de Souza Marques, conhecido como João Orelhinha, era um dos sócios de Carli no suposto esquema de grilagem de terras, responsável por falsificar procurações públicas para adquirir terrenos. Em um dos episódios, Orelhinha comprou terras de um fazendeiro que havia morrido sete anos antes. Quem desmantelou e detalhou o esquema foi o promotor Francisco de Assis Rodrigues Santiago Júnior, do Ministério Público do Piauí.
Depois de décadas trabalhando como suposto testa de ferro de Carli, João Orelhinha foi assassinado, em 1998, junto com a esposa e um cachorro da raça poodle. Na região, em conversas com moradores e com quem estudou e investigou o caso, atribui-se a morte deles a pistoleiros que teriam sido pagos por Carli por queima de arquivos.
A Repórter Brasil não encontrou, no Tribunal de Justiça do Piauí, qualquer registro de condenação do pistoleiro que matou João Orelhinha. A assessoria de imprensa do Tribunal realizou uma busca e encontrou 18 processos em que Orelhinha é citado, mas nenhum trata do assassinato. “Esse documento sumiu”, afirma o juiz Heliomar Rios, da vara agrária de Bom Jesus (PI. “Se você conseguir encontrar, me diga, pois até hoje não encontrei”.
“Carli aterroriza. Seus seguranças colocam corrente nas estradas para que não possamos passar e entram de noite nos barracos ameaçando”, diz Vitório Lopes, morador do interior do Piauí
Questionado se foi mandante da morte do seu ex-sócio, Carli respondeu: “Já virou folclore. Cada problema coligado com terras, o suspeito sou eu”. O empresário afirma que João Orelhinha “foi regiamente indenizado” quando acabou seu trabalho e que depois teria se mudado para a região de Barreiras (PI). “Desconheço as atividades do João naquela parte do Estado e com quem ele se envolveu”, afirma.
A ação de Orelinha como sócio de Carli foi rastreada pelo promotor Santiago Júnior e embasou a ação que gerou o bloqueio das terras. Segundo Carli, o bloqueio de terras aconteceu por problemas na descrição da localização das fazendas e não por fraudes relacionadas aos documentos. “Entremeios tem alguns documentos falsos de fato, onde fui enganado pelo Cartório de Imóveis. Tive que comprar duas ou mais vezes para sanear o problema. Todas as terras foram compradas de particulares e não apropriação de terras devolutas”, afirma.
‘Se tiver terra no inferno, ele vai tomar’
Ao longo de seus negócios no Matopiba, Carli contou com a ajuda de amigos e de pessoas influentes, mas também enfrentou resistência e cultivou inimigos. Um deles foi Bruno Haspinger, missionário religioso italiano que comandou a Associação Camponesa em Balsas e que hoje, aos 78 anos, mora na Alemanha.
Haspinger acionou, no final da década de 1990, uma rede de ONGs internacionais e iniciou uma campanha para mostrar que a soja da região estava “suja de sangue”. O religioso diz que recebeu várias ameaças de morte durante a campanha e que o geógrafo responsável por mapear as terras griladas por Carli chegou a ser agredido. “Numa noite pularam o muro da minha casa e queimaram todas as telas para proteção de mosquitos das janelas”, lembra Haspinger.
Além do Maranhão, Carli também fez inimigos no Piauí. “Tive o desprazer de conversar com ele duas vezes. É um ser humano educado, mas vil. Um homem que vive de tomar terra dos outros. Se tiver terra no inferno, ele vai tomar”, afirma o produtor rural Franklin Batista, que disputa com Carli na Justiça a posse de terras em Santa Filomena (PI).
Outro inimigo declarado de Carli é o ex-deputado estadual do Maranhão, Manoel Ribeiro, que foi ao plenário da Assembleia Legislativa em 2012 e o acusou de grilar e desmatar 11 mil hectares de mata nativa para plantação de soja nos Gerais das Balsas. O deputado faz eco às acusações de assassinato atribuídas a Carli. “Vou provar, inclusive com vídeo, a verdadeira face desse bandido”, afirmou o deputado na ocasião. A reportagem tentou entrevistar Ribeiro, sem sucesso. Questionado sobre as denúncias do ex-deputado, Carli o chamou de “inconsequente” e atribuiu os ataques a uma disputa de terra entre os dois.
O próprio juiz Heliomar Rios – que ordenou o bloqueio de terras de Carli –, ficou em um programa de proteção por três anos,escoltado diariamente por policiais armados. “Foi uma tentativa de inibir meu trabalho. De amedrontar. Hoje a minha rotina é normal, mas durante esses três anos até a minha família andava escoltada”, recorda.
Nas respostas à Repórter Brasil, Carli considera que os crimes atribuídos a ele são frutos da “inveja e incapacidade de visão do futuro de certas pessoinhas”. Ele afirma que usou no Maranhão e Piauí a experiência que teve no Mato Grosso. “Antevi o futuro e comprei”, diz sobre as terras.
Uma cidade para chamar de sua
A pressão feita pelo religioso Haspinger levou Carli a iniciar um processo de melhoria da sua imagem, como destaca Miranda. Ele doou terrenos para criar uma cidade, que se chamaria “Vila de Carli”, próxima a Balsas (MA). A construção previa ainda um anel rodoviário para escoar a soja do Sul do estado.
Hoje o local leva o nome de Vila Batavo, pois lá vive um grupo da Cooperativa Batavo. Ali moram também famílias expulsas de suas terras após disputas com Carli e que foram “compensadas” com lotes na vila. No livro “O Cerrado em disputa – Apropriação global e resistências locais”, publicado em 2009, o então professor da UFMG, Carlos Eduardo Mazzeto Silva, conta a história de Tereza Pereira dos Santos, ex-posseira que foi expulsa de sua terra pelos capangas de Carli e foi morar na Vila Batavo, em um terreno de 100m², tamanho padrão dos lotes do povoado. “Estamos aqui tomando chupa de boca de jumento…”, afirma a ex-agricultora no livro, queixando-se da situação de miséria da vila que originalmente teria o nome de Carli.
Miranda, da UFCP, resgatou ainda a correspondência de Haspinger com Carli e publicou trechos em sua tese. Carli revela, nas cartas, seus desdém por comunidades tradicionais e povoados que vivem do extrativismo. “Jamais cultivaram as terras que ocupam e sim apenas derrubaram a floresta natural e a queimaram. Vivem de caça predatória”, escreveu, em 1994. Para ele, a agricultura sem tecnologia é uma cultura condenada. “Não adianta insistir na ‘roça de toco’ que se fazia antigamente. É preciso técnica, dinheiro e crédito”.
‘Euclides é um cara filantrópico’
Com a camisa dobrada pouco abaixo do cotovelo, Carli aparece em entrevista na TV Rio Preto, em setembro de 2017, para anunciar a quarta edição de um boi no rolete beneficente. O objetivo era arrecadar dinheiro para a Apae, onde ele ocupa o cargo de vice-presidente.
“Euclides é um cara filantrópico”, define o presidente da Apae de São José do Rio Preto, Valdir Nonato. “É um cara muito discreto ainda mais para quem tem uma fortuna incalculável. Tem uns caras frescos que gostam de aparecer. Ele (Carli) não é desses”. Nonato conta que Carli doou um terreno recentemente para Apae e que na cidade ele é dono de cerca de 30 estacionamentos. “Essas denúncias que falam dele no Maranhão é tudo mentira, coisa da política de lá”, acredita Nonato.
Carli recomenda que, quem duvida de sua palavra, consulte o site de uma de suas empresas. Lá é possível fazer o download de certidões onde nada consta contra ele na Justiça do Maranhão e do Piauí. “Fosse tudo grilado, não estaria tudo na justiça? É tudo fake news”, conclui Carli.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil