Um decreto publicado pelo governo federal em 21 de novembro fragiliza o cumprimento dos direitos humanos por empresas nacionais e multinacionais, previstos na Constituição Federal e em documentos internacionais adotados pelo país.
Assinado por Rodrigo Maia, presidente da República em exercício, o decreto 9.571/2018 cria as “Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos” e institui o selo “Empresa e Direitos Humanos”, como premiação por boas práticas. A adesão dos empresários às medidas, porém, é voluntária, o que representa um retrocesso, na visão de especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.
Entidades da sociedade civil que acompanham a temática e participam das discussões junto ao governo foram surpreendidas pelo decreto, publicado de forma “inesperada” e “sem diálogo”, na opinião de seus representantes.
O secretário nacional de Cidadania, Herbert Borges Paes de Barros, afirma que as diretrizes nacionais previstas no decreto foram instituídas observando os Princípios Orientadores Sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, que foram aprovados em 2011 e serviram de base para as recomendações feitas pelo Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, após visitas ao país em 2015.
O decreto estabelece medidas de fomento e implementação de princípios de direitos humanos ao Estado e às corporações nacionais e multinacionais com atividade no Brasil, além de critérios de fiscalização, responsabilização e reparação para violação de direitos.
No eixo em que versa sobre o Estado, o documento estabelece “obrigações” a serem implementadas. Um avanço, na opinião de especialistas.
Em relação às entidades privadas, porém, o decreto estabelece o cumprimento dos direitos humanos como “responsabilidades” a serem aderidas voluntariamente, inclusive, no que diz respeito “aos direitos humanos protegidos nos tratados internacionais dos quais o seu Estado de incorporação ou de controle sejam signatários” (artigo I) e “aos direitos e às garantias fundamentais previstos na Constituição” (artigo II).
Em entrevista à Repórter Brasil, Paes de Barros admitiu que o documento abre margem para o “debate” quanto ao cumprimento ou não dos direitos humanos pelas empresas, mas argumentou que os Princípios da ONU são baseados na voluntariedade de adesão, ressaltou que um decreto não pode se sobrepor à legislação vigente e, então, não “desobriga” as empresas de cumprirem o que já é lei. “A grande vantagem do decreto é organizar em um único instrumento nacional diretrizes sobre o tema e, no âmbito de governo, estabelecer regras para os quais os Estados precisam se atentar na garantia dos direitos”, afirmou.
Especialistas discordam, porém. Para Flávia Scabin, professora da Escola de Direito de São Paulo da FGV e coordenadora do Centro de Direitos Humanos e Empresas (CeDHE) da FGV, estabelecer as diretrizes como voluntárias é um “retrocesso político, jurídico, social, além de econômico”, já que o Brasil aderiu a tratados internacionais, se comprometeu a cumpri-los e, judicialmente, há decisões que contemplam o cumprimento dos direitos humanos, inclusive, em setores como o agronegócio e o têxtil, conforme mapeamento realizado pelo CeDHE.
“Já temos direitos humanos. O que precisamos é esclarecer o que as empresas devem fazer e cobrar delas cada vez mais. Não podemos dizer que esses direitos não valem, que são
voluntários”, ela ressalta. Em âmbito econômico, Scabin entende que, deixando de fomentar direitos humanos, o Brasil poderá, inclusive, ficar fora do mercado global, que já cobra ações
de corporações com atuação internacional. Ela cita, por exemplo, legislações que estão sendo implementadas em países europeus, como a da França, que exige das empresas auditoria em direitos humanos, algo colocado como voluntário no decreto brasileiro.
Jefferson Nascimento, assessor do programa de Desenvolvimento e Direitos Socioambientais da Conectas, ressalta que o decreto foi publicado em um contexto de “enfraquecimento dos mecanismos de proteção aos direitos socioambientais” pelo governo federal. Ele cita, inclusive, a publicação da portaria n° 1129/2017, de 13 de outubro de 2017, que propunha a descaracterização da definição de trabalho escravo.
Para Nascimento, as diretrizes “mitigam obrigações que estão previstas em lei”. “O decreto passa a impressão de que as empresas não têm obrigação de respeitar os direitos humanos, já que elas podem optar por implementar as diretrizes”. Ele também chama a atenção para a ausência, no documento, de formas de fiscalização e revisão do selo, caso a empresa certificada seja flagrada em situações de violação aos direitos humanos.
“Decreto não tem eficácia”
Representantes de entidades que atuam no campo também criticam a flexibilidade do decreto. Eles apontam que, hoje, os direitos humanos já não são respeitados como deveriam pelas empresas do setor e, então, são necessárias medidas rígidas de fiscalização e controle para alcançar mudanças nesse cenário.
“Principalmente em relação a trabalhadores do campo, que estão à exposição a tanta barbárie, as medidas precisam ser cobradas e fiscalizadas. Por mais que seja um bom decreto, o documento acaba não tendo qualquer utilidade, principalmente em um setor comandado por multinacionais, que se preocupam apenas em gerar lucratividade”, critica José Luiz Stefanin Junior, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaú, que atua principalmente no setor da laranja.
Jorge Ferreira dos Santos Filho, coordenador da Articulação dos Empregados Rurais do Estado (Adere-MG), que atua junto à cadeia do café, entende que, no setor, “há violação dos direitos com a prática do trabalho escravo”, com a inserção do trabalhador em situações degradantes, “que geram a miséria”, o “desrespeito às questões previdenciárias”, entre outras questões que, na opinião dele, exigem medidas de controle e fiscalização rígidas.
Já Nathan Herszkowicz, presidente do Sindicafé (Sindicato da Indústria de Café do Estado de São Paulo), defende que há um esforço do setor em respeitar o trabalhador e os direitos humanos, formalizado pelas certificações internacionais das quais os produtores nacionais fazem parte.
Premiação como autopromoção
Outra preocupação dos especialistas está na premiação das empresas pelo selo “Empresa e Direitos Humanos”, que pode servir apenas para promover as corporações, sem impacto, de fato, no fortalecimento dos direitos humanos.
“Talvez as empresas queiram aderir às diretrizes mais como meio de mostrar que se preocupam, e não com o objetivo de garantir os direitos humanos. Isso pode ser usado como um certificado de boas práticas, mas não há como saber o quanto será benéfico para o ser humano”, comenta Márcio Propheta Sormani Bortulucci, advogado do Sindicato dos Trabalhadores e Empregados Rurais de Piratininga.
Manoela Carneiro Roland, coordenadora do Centro de Direitos Humanos e Empresas da Universidade Federal de Juiz de Fora, reforça: “É um documento, dentro do arcabouço da responsabilidade social corporativa, sob o controle da empresa, e que pode servir a favor dela, reforçando uma imagem positiva e não sendo capaz, em contrapartida, de evidenciar as violações reais que ela está prometendo”.
Para Roland, o decreto segue, porém, “gargalos deixados pelos próprios Princípios Orientadores Sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU”, que coloca nas mãos da empresa o controle e fiscalização sobre sua atividade, em uma lógica que não prioriza as discussões com a sociedade civil e o controle das violações aos direitos.
“É preciso criar mecanismos, ouvir a sociedade civil e estabelecer, além de um tratado internacional, uma regulamentação interna, mas sobre outras bases”. As atuais, ela critica, entendem que a atividade econômica é benéfica, necessária e, então, priorizam a atuação da empresa, seguindo princípios corporativos em detrimento dos humanos.