Perto da validade, iogurtes da Danone e Nestlé são vendidos com trabalho escravo

Investigação do então Ministério do Trabalho e da Polícia Federal corresponsabiliza as duas multinacionais em ação que resgatou 28 ambulantes de condições análogas às de escravo no interior de São Paulo
Por Thais Lazzeri
 27/01/2019

Quando ouviu que era a “galinha dos ovos de ouro”, Murilo entendeu como um elogio. Não viu malícia no comentário do então chefe, Francisco Neivan Alves da Silva, por ser o melhor vendedor porta-a-porta de iogurtes e outros lácteos da equipe de Salto, no interior de São Paulo. Ficou feliz por ter deixado para trás o emprego informal de servente de obras no interior do Ceará, mas não imaginou que seria vítima de uma rede de tráfico de pessoas que o levaria a condições de trabalho análogas às de escravo, com jornadas de 14 horas diárias, descontos salariais e alojamento precário.

No primeiro mês no novo emprego, ele já não receberia o pagamento de R$ 2.200 prometido por Silva. Teve R$ 500 descontados “porque a situação piorou com a crise econômica”, na versão do patrão. E aquele foi só o começo de uma série de violações trabalhistas que terminou com o resgate de 28 trabalhadores envolvendo duas gigantes do setor alimentício: a Nestlé e a Danone.

A história de Murilo, que pediu anonimato, foi descoberta por auditores-fiscais do Ministério do Trabalho em fiscalizações que aconteceram entre março e julho de 2018 no interior de São Paulo. Silva, que trazia cearenses do interior com falsas promessas para trabalhar como vendedores de iogurtes, foi preso em abril pela Polícia Federal de Sorocaba, acusado de “tráfico de pessoas para fins de trabalho em condição análoga à de escravo”.

Murilo (nome fictício) vendia mais de 70 kits por dia, o equivalente a R$ 50 mil por mês. (Foto: Fernando Martinho)

Danone e Nestlé foram corresponsabilizadas pela prática de trabalho escravo por não monitorarem suas cadeias de distribuidores e tiveram que pagar parte das verbas rescisórias dos resgatados: foram R$ 185.980,24 pagos pela Danone e R$ 139.485,18 pela Nestlé, segundo relatório dos auditores, que foi finalizado no final do ano passado. “Foi uma cegueira deliberada. As empresas lucraram com o esquema fraudulento e foram cúmplices”, diz o auditor-fiscal do Renato Bignami, que participou das fiscalizações.

O esquema econômico que sugou Murilo e que atrai tantos outros ambulantes movimenta milhares de reais e toneladas de produtos perto da validade, com preços acessíveis para as classes D e E. É chamado de “crediário”, pois funciona com vendas a crédito para o comprador final, e conta com uma complexa rede de distribuidores e subdistribuidores nas periferias das grandes cidades e em cidades do interior. A investigação do Ministério do Trabalho, que aconteceu em parceria com a Polícia Federal, apurou que, para a Danone e a Nestlé, o escoamento desses produtos quase vencidos representa cerca de 2% do lucro das empresas no Brasil.

A Dairy Partners Americas Brasil, que responde pela Nestlé, informou, em nota, que encerrou o relacionamento comercial com o microdistribuidor autuado pelos auditores-fiscais em julho de 2018, quando soube das irregularidades. A empresa afirmou ainda que não tolera “violações aos direitos humanos e trabalhistas”.

Um motorista levava os trabalhadores em uma combi até o local de venda. (Foto: Programa Estadual de Combate ao Trabalho Escravo)

Já a Danone Brasil informou que “repudia qualquer forma de trabalho que contraria os direitos trabalhistas” e não tem relação comercial  com o microempresário autuado, já que ele “adquire os produtos por meio de seus clientes ocasionais”. A Danone reitera seu compromisso com a legislação vigente e reforça seu comprometimento na prevenção e combate ao trabalho escravo em sua extensa cadeia produtiva”, disse a empresa.

‘Vendi R$ 500 mil e ganhei um danone’

De porta em porta, os ambulantes ofereciam kits de iogurtes com 33 unidades por R$ 40 – ou R$ 1,21 por embalagem. Em grandes mercados, a unidade pode custar R$ 2. A jornada de trabalho mínima era de 14 horas diárias, mais as duas gastas no deslocamento. Começava às sete da manhã. Sob sol forte ou tempestade, eles empurravam os iogurtes em ruas montanhosas nas periferias e muitas vezes arriscavam a vida ao passar diante de traficantes armados. Murilo vendia mais de 70 kits por dia, o equivalente a R$ 50 mil por mês.

Se os vendedores de Silva precisassem de dinheiro em uma emergência – como quando o filho de Murilo teve uma estomatite grave –, o patrão emprestava, mas cobrava o dobro. Se faltassem no serviço por doença, tinham R$ 100 descontados do salário. Com tantos descontos, teve mês que Murilo nem recebeu. Precisou se endividar com o chefe para  comprar comida para a família. “Cheguei a vender mais de R$ 500 mil em um ano, fui a ‘galinha dos ovos de ouro’. E sabe o que eu ganhei? Um pacote de danone para o meu filho”, lamenta.

‘ Cheguei a vender mais de  R$ 500 mil em um ano. E sabe o que eu ganhei? Um pacote de danone para o meu filho’

No alojamento que Silva alugou para os trabalhadores, houve infestação por carrapato. Os trabalhadores se amontoavam em uma casa de dois cômodos abafada, sem roupa de cama, toalha ou comida. As condições degradantes de trabalho em Salto e as jornadas exaustivas, ambas colocando em risco a segurança, a saúde e vida dos trabalhadores, caracterizaram trabalho análogo ao de escravo, conforme o artigo 149 do Código Penal. 

Dos produtos vendidos pelos ambulantes de Silva, 40% eram da Danone e 30% da Nestlé. Os caminhões das empresas descarregavam toneladas de iogurtes diretamente no galpões dos microdistribuidores. Joseilton Ferreira, um desses microdistribuidores, comprava da Danone e repassava para crediários, como o de Silva. Entre outubro de 2017 e novembro de 2018, Ferreira comercializou R$ 1,8 milhão em iogurtes próximos à data de vencimento da marca. Já os iogurtes da Nestlé chegavam por meio da empresa Baturitense Comércio de Alimentos. De outubro a março, a joint venture Dairy Partners America, ligada à Nestlé, faturou R$ 145 mil em produtos para a Baturitense – o equivalente a 26 toneladas de iogurtes.  

A venda dos produtos, com forte apelo para crianças, era fiado. Por isso o vendedor tinha uma ficha de papel para cada cliente, onde anotava as compras e os pagamentos a vencer. Vendas acima de R$ 50 não eram proibidas, mas se o cliente não pagasse, o vendedor era obrigado a assumir o ônus, depois descontado do salário. E eram muitos os clientes que davam calote e faziam ameaças, segundo os trabalhadores ouvidos pela reportagem.

Cadeia de distribuição sem monitoramento

Os microdistribuidores que recebiam toneladas de iogurtes diretamente das empresas e que abasteciam crediários como o de Silva constavam no departamento de vendas das empresas, ao lado dos grandes distribuidores. Tanto a Danone quanto a Nestlé criaram uma nomenclatura nova para esse grupo. Na Danone, “cliente-consumidor” ou “spot”. Na Nestlé, clientes BOP, corruptela de “base da pirâmide”.

Na prática, afirmam os fiscais, as multinacionais deixaram de monitorar os microdistribuidores e, assim, de adotar mecanismos de prevenção de direitos fundamentais. A conduta e omissão das empresas, ainda que involuntária, agravou o risco de exploração da força de trabalho. “Essas falhas contribuiram seguramente para que as violações ocorressem”, afirmou Bignami.

Murilo trabalhava 14 horas por dia vendendo iogurtes perto da data de validade em condições consideradas pelo Ministério do Trabalho como análogas à escravidão. (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Não é possível datar quando essa caracterização corporativa aconteceu, mas a investigação dos auditores mostra que os crediários com venda porta-a-porta de produtos quase vencidos existem há quase duas décadas. A auditoria segue investigando outros crediários.  

Além de descumprir acordos internacionais em direitos humanos e do trabalhador que o Brasil é signatário, tanto Danone quanto Nestlé também infringiram acordos globais assumidos por suas respectivas matrizes na Europa – França e Suíça, respectivamente. “No exterior, haverá um impacto de reputação muito grande, que pode afetar as operações das empresas. A partir desse impacto de reputação, espera-se que medidas públicas sejam tomadas”, afirma Tamara Hojaij, pesquisadora do Centro de Direitos Humanos e Empresas da Fundação Getúlio Vargas.  

Com o fechamento do crediário, Murilo vive de bicos. Sem o segundo grau completo, diz, ninguém quer empregá-lo. “Em dia que não trabalho, fico pensando: e se meu filho pedir um pão para comer, o que eu falo para ele? Eu passei muita fome do Ceará. Não queria que meus filhos sofressem o mesmo.”

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