Após união com a UTZ no ano passado, a Rainforest Alliance, uma das maiores certificações socioambientais do mundo, abriu consulta pública para a elaboração de uma nova Norma de Agricultura Sustentável, que tem o objetivo de garantir boas práticas na produção agrícola. O selo é exigência de setores do mercado internacional para a compra de produtos brasileiros, como tradings, supermercados e indústrias.
A consulta será uma oportunidade, segundo especialistas, para corrigir falhas na certificação. Temas que hoje geram críticas, como as formas de execução da norma e as condutas para sua fiscalização, serão abordadas no processo, conforme informa a instituição americana.
Empresas certificadas pela UTZ e Rainforest já foram inseridas na lista “suja” do trabalho escravo ou flagradas com a prática, como ocorreu com Cutrale e a Fazenda Córrego das Almas ou Fartura, em Piumhi, conforme mostraram reportagens da Repórter Brasil.
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“Queremos propor estratégias para avaliar riscos, abordar o produtor, criar consciência para questões como trabalho forçado, trabalho infantil, gênero. Não só em termos de compliance, mas de forma a educá-lo sobre essas questões”, afirma Cassio Souza, representante da Rainforest no Brasil. Ele diz, ainda, que o órgão entende que é “preciso discutir e apresentar estratégias relacionadas ao sistema de garantia”, reconhecendo “que o modelo de auditoria isolada funciona, mas precisa ser complementado”.
Especialistas enfatizam, porém, que questões relacionadas à aplicação da norma ainda não estão totalmente claras no rascunho publicado pela Rainforest. “O que uma fazenda ou produtor tem que fazer para se certificar? Quanto dessa norma o produtor tem que cumprir? Quais serão os critérios críticos, obrigatórios, e quais o produtor pode melhorar ao longo do tempo? Quem pode fazer as auditorias? Elas serão surpresa ou avisadas? São regras muito importantes para a realidade brasileira, que devem ser questionadas”, ressalta Luís Fernando Guedes Pintos, gerente de certificação agrícola do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), certificadora brasileira que atua com a Rainforest e a UTZ.
Além do Brasil, a consulta ocorre em outros países do mundo todo. Produtores, sindicatos, organizações, trabalhadores, consumidores e qualquer integrante da sociedade civil que tenha interesse podem participar do processo até o dia 28 de fevereiro, por meio de um formulário na internet, avaliando o rascunho da norma e opinando sobre o que deve ser reformulado.
Workshops presenciais também serão realizados em Campinas, Brasília e Belo Horizonte, com participação garantida mediante inscrição on-line, nas temáticas café, cacau e frutas, principais setores de atuação da certificação no Brasil.
O selo Rainforest Alliance, que agora engloba a UTZ, é um dos mais importantes em nível mundial, sendo exigência para a comercialização de produtos brasileiros no mercado europeu, dos EUA, Japão entre outros países.
Cassio explica que a consulta é uma exigência da Iseal Alliance, da qual a organização é membro, e ocorre também para fundir Rainforest e UTZ sob as mesmas práticas, já que, até então, cada organização empregava diretrizes próprias. A fusão das duas certificações ocorreu em janeiro de 2018.
As diferenças entre as duas instituições, tanto em relação ao conteúdo quanto à execução da norma, aliás, é uma questão que gera preocupação. “É um novo modelo e queremos saber o que ele vai herdar de cada órgão, que tem atuações distintas. Cada um enfatiza questões diferentes”, ressalta Luís Fernando.
Transparência na pauta?
A falta de transparência também é uma questão que, na visão dos especialistas, deveria ser levantada e normatizada pelos órgãos. Gustavo Ferroni, assessor sênior de políticas e incidência da Oxfam Brasil, organização que trabalha com o objetivo de combater a pobreza, as desigualdades e as injustiças no mundo, ressalta que não há informações, por exemplo, sobre quais são as fazendas certificadas e os mecanismos para denunciar possíveis infrações cometidas por eles: “Isso não está em pauta, infelizmente”.
Ele também defende que as certificadoras estejam abertas a avaliar temas que não estejam no escopo original da norma como, por exemplo, questões relacionadas aos direitos humanos, para barrar situações de fazendas que conseguem a certificação, mesmo estando envolvidas em violações. “A realidade do campo é permeada por conflitos sociais, há violações graves, que podem estar ativas, e nós precisamos ter ferramentas para denunciá-las para que, ao final, a norma não seja usada para beneficiar atores que estejam com comportamento irresponsável”, ele enfatiza.
Luís Fernando e Gustavo alertam, ainda, para o atual contexto político brasileiro de enfraquecimento dos direitos sociais e ambientais. A questão da informalidade do trabalho, por exemplo, é vista com muita preocupação. “Antes, essas questões estavam contempladas pela legislação brasileira. Agora, é preciso garantirmos que estejam explícitas na norma”, afirma Luís Fernando. “No Brasil, a informalidade é a porta de entrada para todas as infrações, inclusive o trabalho escravo”, Gustavo complementa.
Cassio explica, aliás, que questões específicas ao contexto de cada país deverão ser formalizadas em “critérios de melhoria com aplicação padronizada a cada contexto”, mas que ainda serão definidos ao longo do processo de elaboração da nova norma. “Tudo o que propusermos precisa estar referenciado em algum lugar. Vão haver documentos, ferramentas de referência para esses temas”, garante.
Mais consultas
A norma passará por mais uma fase de consulta pública, antes da sua implementação, conforme explica Cassio Souza. As considerações colhidas na primeira consulta serão levadas a uma equipe de desenvolvimento da norma, que irá formular um novo documento e enviá-lo para avaliação do conselho do órgão, formado por membros exteriores, representantes de ONGs, universidades, entidades, entre outros.
Após a avaliação desse órgão, será elaborado um segundo rascunho, que deverá ser publicado para consulta pública em meados de julho de 2019. Nessa fase, não haverá encontros presenciais, mas toda a sociedade poderá opinar novamente, pela internet.
Após o período de consulta, o conselho fará uma nova proposta, que deverá ser publicada no final de 2019 para avaliação em alguns países. A previsão da Rainforest é de que a nova norma seja implementada entre 2020 e 2021. Cassio explica, porém, que as regras de transição para o novo modelo de certificação ainda não estão definidas.