Enquanto no Congresso Nacional avançam projetos de lei que buscam flexibilizar e impulsionar o uso de agrotóxicos no país, diversas cidades brasileiras já possuem leis que proíbem a sua pulverização aérea. Além do estado do Ceará, o primeiro a proibir a prática em todo o território, um levantamento inédito da Agência Pública e Repórter Brasil revela que 8 cidades proibiram a prática para proteger a saúde da população. Além delas, três municípios também vetaram o uso em Áreas de Proteção Ambiental (APAs). E outros três impuseram restrições, como um perímetro de segurança nas áreas urbanas. Outras quatro cidades estão com projetos de lei tramitando nas Câmaras Municipais.
Todos esses municípios estão localizados nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país. Essas regiões são responsáveis por 90% das aeronaves agrícolas do Brasil, um total de 1.903 das 2.115 registradas pelo Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) até 2017.
Os projetos aprovados seguem o modelo adotado pela União Européia, que em 2009, por meio do Parlamento Europeu proibiu esse tipo de técnica, pois entenderam que a mesma pode prejudicar significativamente a saúde humana e o ambiente, devido ao alastramento da pulverização. Diferente da Europa, a vizinha Colômbia não proibiu, mas suspendeu a pulverização aérea com glifosato. A medida veio em 2015, após o resultado de investigações da Organização Mundial de Saúde (OMS) que constatou os efeitos adversos da substância à saúde.
No Brasil, há ainda projetos de lei que estão tramitando e buscam vetar por completo a fumigação aérea nos municípios de Cacequi (RS), São Manoel (SP), São Mateus (ES) e Sandovalia (SP).
As cidades de Abelardo Luz (SC), Cascavel (PR) e Jataí (GO) aprovaram restrições ao uso da pulverização aérea, tais como a proibição do manejo a 3 km do perímetro urbano, nas proximidades de escolas, nos núcleos residenciais e unidades de saúde, entre outras especificações.
Segundo o Sindag, não é possível estimar o total de municípios e estados que fazem uso deste recurso. Entretanto, o Sindicato das empresas de aviação aponta que praticamente 90% do arroz irrigado utiliza essa técnica – o Brasil é o maior produtor deste grão fora da Ásia. A aplicação de agrotóxicos por avião também é usada em quase todas as culturas de cana-de-açúcar, a soja, banana, milho e algumas áreas do café – além de outras culturas.
Por outro lado, o levantamento mostra que 15 Projetos de Leis (PLs), a maior parte submetidos por municípios ou estados das regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, foram arquivados ou rejeitados pelas câmaras municipais e assembleias legislativas no País.
No Ceará empresários pretendem combater a lei
No último dia 9 de janeiro, o Ceará se tornou o primeiro estado brasileiro a proibir a pulverização aérea de agrotóxicos. A multa para os produtores que descumprirem a lei é de até R$ 63,9 mil. A lei Zé Maria do Tomé leva o apelido de José Maria Filho, ambientalista assassinado em 2010 ao denunciar a pulverização na Chapada do Apodi, município de Limoeiro do Norte. O crime ocorreu semanas depois de aprovação de lei municipal proibindo a prática, mudança pela qual o líder comunitário pressionava. Cerca de um mês depois da morte, a lei municipal foi revertida e a pulverização voltou a ser permitida. Como mandante, o Ministério Público Estadual denunciou João Teixeira, dono da empresa Frutacor, que tem fazendas na região.
A proibição, agora para todo o estado, foi elogiada pelo Ministério Público Estadual, pesquisadores da área da saúde e grupos de defesa do meio ambiente, e foi recebida uma grande derrota para os empresários do agronegócio. Antes da chancela do governador, a Assembleia Legislativa do Ceará aprovou o projeto de lei 18/2015 sem nenhum voto contrário. Agora, o setor empresarial começa a se articular para derrubar a lei.
Em entrevista à Agência Pública e Repórter Brasil, o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Ceará (Faec), Flávio Saboya, afirmou que o setor ainda está estudando qual será a melhor via: uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) ou uma negociação no legislativo estadual. “Nós ainda temos que sentar e formalizar esse assunto, mas eu acredito que a legislativa seja melhor e mais rápida alternativa. Se entrarmos com uma Adin, o processo será mais longo, pois presumo que tenha que ir para o Supremo Tribunal Federal (STF)”, avaliou Saboya.
Apesar de ventilarem essas duas possíveis estratégias, o setor ainda não tem uma ação definida. Se por um lado Saboya acredita que uma nova lei poderia ser proposta para regulamentar a aviação agrícola no Estado, um dos maiores exportadores de banana do país pensa o contrário. “Nós não sabemos exatamente para onde nós vamos porque, politicamente, infelizmente, estamos desprestigiados”, afirmou Edson Brok, dono da Tropical Nordeste, que produz banana na Chapada do Apodi. Sobre o que ele chama de “desprestígio”, Brok referiu-se a aprovação da Lei Zé Maria do Tomé, e o fracasso das investidas do setor junto ao governo do estado em busca do arquivamento do projeto de Lei.
Por essa razão , ele acredita que uma Adin seria a melhor via. “O Estado criou uma Lei que é inconstitucional, isso é regido pelo Governo Federal”, completou o produtor.
Parado o setor realmente não está, pois no âmbito legislativo, os 46 deputados estaduais eleitos em 2018 no Ceará já estão sendo sondados pelo agronegócio, que busca apoio para o desenho de uma nova lei que regulamente a aviação agrícola no Estado assim como a pulverização aérea, segundo o o presidente da Associação Brasileira dos ProdutoresExportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas), Luiz Roberto Barcelos.
“Agora que começou esta movimentação, não tem um mês que os deputados tomaram posse, mas já começamos a mapear quem são os parlamentares que podem trabalhar em cima dessa proposta para levá-la adiante”, afirmou
Questionado sobre quais deputados já teriam sido sondados, ele não soube citar nomes , pois disse que não é a Abrafrutas que está a frente dessa articulação, mas sim os produtores locais. Barcelos adiantou que o setor também tem estudado uma forma jurídica para anular a atual norma. “A movimentação agora é encontrar uma forma jurídica de questionar a legalidade dessa proibição”, explicou Barcelos.
Em resposta, o autor do projeto de lei Renato Roseno (PSOL) defende a medida. “Nós temos elementos suficientes que justificam, tais como pesquisas e estudos, ou seja, fatos concretos”. Ele diz que o Ceará “foi um exemplo para o país”.
As Estatísticas de Comércio Exterior do Agronegócio Brasileiro apontam que o Ceará é o segundo maior exportador de bananas do país, perdendo apenas para Santa Catarina. Em 2018, o estado exportou 7 toneladas a um valor de mais de US$ 3 milhões. O principal argumento dos empresário é que a medida vai gerar prejuízos para o setor. “É muito complexo, por conta da altura, fazer pulverização da bananeiras com pulverizador costal ou mesmo utilizando trator, isso é incompatível tecnicamente”, explica o presidente da Faec. “Teríamos que ter estradas mais largas entre as plantações e com medidas específicas. Tudo isso encarece a cultura”.
Já o empresário Edson Brok, que cultiva banana na Chapada do Apodi há 21 anos , explica que para a pulverização intercostal são necessárias mais de 25 pessoas. “Enquanto que o avião faz essa aplicação em 4 horas, sem expor absolutamente ninguém e utilizando menos fungicida. Ou seja, vamos ter que aumentar o custo para manter a produtividade”, diz.
Antes da Lei Zé Maria do Tomé ser sancionada, conta Flávio Saboya, o setor agrícola tentou articulação com áreas do governo de Camilo Santana (PT) para que o governador não assinasse a norma, porém não tiveram sucesso. Para Saboya, o Projeto de Lei foi votado “a toque de caixa” por ter sido colocado para aprovação antes do recesso parlamentar. “A articulação política, isso tudo foi feito ao apagar das luzes. Existem certos deputados que não assinariam um negócios desses”, avalia Saboya.
Os produtores mais afetados com a medida serão, segundo ele, os que cultivam bananas e cana de açúcar. Mas ele diz que os 5 mega-empresários não solicitaram formalmente ajuda à Faec, uma formalidade necessária para que possam buscar apoio em instituições como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
A pesquisa Tecnologia de Aplicação de Agrotóxicos: Fatores que afetam a eficiência e o impacto ambiental, produzida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e publicada em 2004, aponta que 19% do agrotóxico manejado através do método de pulverização aérea é dispersado para áreas fora da região de aplicação. Esse foi um dos estudos utilizados pelo deputado cearense Renato Roseno como justificativa para a lei. A mesma pesquisa aponta que 49% do agrotóxico manejado por via aérea é retido pelo solo, podendo afetar a saúde da população e contaminar o lençol freático.
Em 2009, a Companhia de gestão dos recursos hídricos do Estado do Ceará realizou um estudo que mostrava a contaminação das águas do aquífero Jandaíra pelos agrotóxicos, inclusive os ingredientes ativos utilizados na pulverização aérea – os fungicidas.
Outra pesquisa, da Universidade Federal do Ceará, evidenciou a contaminação das águas do aquífero, bem como, das águas destinadas a comunidades. A pesquisa “Más-formações Congênitas, Puberdade Precoce e Agrotóxicos: Uma Herança Maldita do Agronegócio para a Chapada do Apodi”, publicada em 2017 pela mestre em Saúde Pública, Ada Cristina Pontes Aguiar comprovou que existe uma exposição ambiental intensa das crianças e suas famílias a agrotóxicos através da água. A pesquisa detectou agrotóxicos nas amostras de água coletadas nas casas das famílias, além de no sangue e na sua urina.
Em entrevista à Agência Pública e Repórter Brasil, o produtor Edson Brok rechaça qualquer possibilidade de contaminação do solo e populações. “Na verdade a gente não entendeu como é que o governo quer proteger a saúde do trabalhador rural e comete uma gafe dessas. Gastaram anos dentro da Assembleia para tirar uma coisa que era benéfica [a pulverização aérea] e colocaram em prática algo que vai ser muito pior para o meio ambiente, o manejo via máquinas intercostais, por exemplo. Ou seja, uma decisão estúpida”, avaliou Brok.
Por meio de nota, o Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) argumenta que, com a proibição de pulverizações aéreas e maior uso de tratores e pulverizadores costais, haverá perda de agilidade, já que os aviões ofereceriam mais garantia de terminar a aplicação antes que se alterem condições climáticas necessárias à segurança da operação, como vento, temperatura e umidade do ar.
O lobby, no entanto, terá que enfrentar a disposição do legislativo, onde a aprovação por unanimidade demonstrou que a medida tem respaldo. “Devemos aguardar e a sociedade deve-se manter vigilante. Temos que nos preocupar em produzir alimentos saudáveis, pois o setor não está preocupado com isso, ele tá preocupado em produzir lucro”, diz Renato Roseno (PSOL).
A medida também foi elogiada pelo Ministério Público do Ceará. Por meio de nota, o MP afirmou que a norma garante saúde e qualidade de vida. “A prática da pulverização aérea representa afronta e violação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo este um direito fundamental reconhecido e indiscriminadamente assegurado a todos”.
Também na Chapada do Apodi, terra de Zé Maria do Tomé, a medida foi celebrada. Reginaldo Araújo é morador de Limoeiro do Norte e faz parte do Movimento 21, um grupo de organizações e movimentos sociais que lutam contra o uso indiscriminado de agrotóxicos no Ceará, formado a partir do assassinato do líder que deu nome à lei. “Quem mora abaixo da Chapada comia veneno, pois os ventos traziam todo o agrotóxico aqui pra baixo. A gente era contaminado de todo jeito, tanto pelo ar quanto por terra, pela água, etc. Nós estávamos sendo envenenados, isso pode ser visto nas altas ocorrência de câncer aqui. Esperamos que essa lei sirva de exemplo para o restante do país e para América Latina . E que as pessoas entendam que ninguém controla a deriva do vento, ninguém controla a natureza”, diz.
Nota da Redação: A matéria foi atualizada em 19 de fevereiro para fazer uma correção: Reginaldo Araújo é morador da cidade de Limoeiro do Norte e não da Chapada do Apodi, como anteriormente informado.
Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de agrotóxicos. A cobertura completa está no site do projeto.