Convênio que fornecia laranja para a Cutrale é denunciado por más condições de trabalho

Trabalhadores relataram que colhiam sem equipamentos de segurança, água potável, registro de ponto e produtividade, ganhavam menos do que um salário mínimo e eram transportados de maneira precária
Por Daniela Penha
 29/03/2019

Trabalhadores, inclusive um adolescente, colhendo em pomar com mato alto, sem equipamento de segurança, banheiro e água potável; transporte inadequado; colhedores sem registro de ponto, controle de produção e recebendo menos do que um salário mínimo por mês. Essas são algumas das denúncias protocoladas pela Feraesp (Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo) no Ministério do Trabalho (atual Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia) relativas à fazenda que fornecia laranja para a Sucocítrico Cutrale, gigante do setor.

Após receber denúncia do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Duartina e do Sindicato dos Trabalhadores e Empregados Rurais de Piratininga, a Feraesp visitou um alojamento onde viviam trabalhadores que atuavam na fazenda Emília, localizada em Ubirajara. Eles relataram que estavam sendo submetidos a más condições de trabalho, o que levou a entidade a protocolar em dezembro pedido de “fiscalização urgente” e “intervenção imediata” no local.

A colheita, porém, terminou antes que os auditores do trabalho realizassem qualquer ação. No primeiro dia de governo, o presidente Jair Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho pela Medida Provisória 870. A maioria das atividades da pasta foi repassada ao Ministério da Economia. Um representante da fiscalização na região da fazenda informou que irá fiscalizar a fazenda e o consórcio quando a colheita da laranja recomeçar, em meados de junho.

Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo denunciaram ao Ministério Público más condições de trabalho na fazenda Emília, em Ubirajara, que fornece laranja para a Cutrale. (Foto: Divulgação Procuradoria Regional do Trabalho)

Trabalhadores que denunciaram a situação relataram à Repórter Brasil que foram demitidos em 19 de dezembro, um dia após a visita da Feraesp ao alojamento. Eles atuavam para o consórcio Joaquim Augusto Guesse e Outros, que, por intermédio de um produtor, fornecia laranjas para a Cutrale.

Questionado, um representante do consórcio afirmou desconhecer as denúncias apresentadas pelos trabalhadores. Através de assessoria de imprensa, a Cutrale informou que não iria se manifestar sobre o caso.

Em maio de 2018, a Repórter Brasil revelou que, mesmo integrando a lista suja do trabalho escravo desde 2017 por autuação feita em 2013, a Cutrale possui certificação de qualidade para vender seus produtos fora do país. De acordo com informações que constam no próprio site da empresa, 98% da sua produção é destinada para exportação.

“Os problemas no setor da laranja ainda estão longe de serem resolvidos. As práticas empresariais continuam ruins. E, com a informalidade cada vez mais presente, só irão piorar”, afirma Abel Barreto, presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Duartina.

‘Tudo errado’

“Para lá eu não volto mais”, afirmou um dos trabalhadores que atuavam na fazenda Emília, em entrevista à Repórter Brasil. João (nome fictício), 25 anos, relatou que trabalhou por quatro meses na propriedade, sem controle de produção e sem receber de maneira adequada.

A Repórter Brasil colheu relatos de cinco trabalhadores e trabalhadoras. Eles afirmaram que não recebiam uniformes e nem mesmo equipamentos de segurança adequados, que o mato alto dificultava a colheita e facilitava acidentes, que o “pirulito”, como é chamado o controle da produtividade e dos turnos, era entregue para assinarem em branco.

Maria (nome fictício), 29 anos, contou que recebia, em média, R$ 750 por mês de trabalho, colhendo entre 80 e 90 caixas de laranja por dia. Cada caixa tem, aproximadamente, 27 quilos da fruta. Ela ainda disse que só teve acesso ao seu contrato de trabalho no momento da rescisão. “Eles não explicavam nada. Se a gente colhesse 20 bags, eles falavam que eram 15”.

Os trabalhadores informaram ainda que o ônibus para chegarem até o pomar estava em más condições e que duas turmas, cerca de 49 funcionários, chegaram a ser transportadas juntas. “Eu já fui sentada no corredor, na caixa d´água, junto com ganchos e bags”, contou uma colhedora.

Um adolescente de 16 anos que, de acordo com os trabalhadores, seria filho de um casal que trabalhava no pomar, também colhia laranjas. Os colhedores relataram que a ordem do supervisor era de que o garoto permanecesse no ônibus durante a chamada, para “esconder” a situação irregular.

“Ali estava tudo errado!”, afirmou um dos trabalhadores, 34 anos, contando ainda que precisava levar água de casa, já que no pomar não havia qualquer estrutura, sequer banheiro. “A gente comida debaixo do pé de laranja mesmo”. Ele deixou o Pernambuco em 2007 para trabalhar na colheita da laranja e afirmou. “Em 12 anos, nunca trabalhei em um lugar tão errado como esse”. Os trabalhadores informaram que irão processar o empregador.

Precarização do trabalho

Wilson Rodrigues da Silva, secretário geral da Feraesp, afirma que situações que já haviam sido sanadas voltaram a ocorrer com regularidade. “Estamos vendo de novo problemas que a gente via 20 anos atrás. Trabalhador sem registro, contratação de mão de obra por gatos, alojamentos ruins”. Para ele, a flexibilização das leis, como a Reforma Trabalhista, tem causado o retrocesso.

Jotalune Dias dos Santos, presidente da Feraesp, complementa o discurso. “O trabalho análogo ao escravo e todo tipo de precariedade vão se tornar rotineiros para o trabalhador, porque a estrutura de governo, que se tratava do Ministério do Trabalho como fiscalizador, não existe mais no Brasil. A precarização do trabalho está escancarada”.

O desmantelamento dos órgãos fiscalizadores, na opinião dos sindicalistas, está tornando ainda mais precária a relação de trabalho no campo. “Nós levamos uma denúncia ao Ministério do Trabalho e já saímos com a resposta de que não há estrutura para a fiscalização”, critica Jotulane.

Outra denúncia

Em 13 de fevereiro de 2019, a Feraesp formalizou junto ao Ministério do Trabalho outra denúncia na cidade de Ubirajara, desta vez na fazenda Santana, do empregador João Paulo Branco Peres e Outros.

A entidade ouviu 16 funcionários, que relataram receberem menos de um salário mínimo por mês, colherem na chuva, além de não terem seus valores de rescisões respeitados. Os trabalhadores informaram à Repórter Brasil que foram demitidos no mesmo dia em que fizeram a denúncia. “Na cabeça do fazendeiro, o trabalhador não tem direito de reivindicar.  Os que tem coragem, são demitidos”, critica o sindicalista Abel.

A Repórter Brasil conversou com três trabalhadores da fazenda Santana. Eles afirmaram que havia discrepância entre o que colhiam e o que era registrado e, por isso, procuravam colher o máximo que o corpo aguentasse.

Marcos (nome fictício), 30 anos, relatou que chegava a colher até 150 caixas ao dia. “O corpo não ficava muito bom. Doía as costas, as mãos, as pernas”. Há dois anos, ele deixou o trabalho de metalúrgico na Paraíba para o trabalho no campo em São Paulo.

A Branco Peres, que também é exportadora de suco de laranja, informou que não iria se manifestar sobre a denúncia.   


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