Disputa judicial acirra conflito por terras entre índios terena e família da ministra Tereza Cristina

Justiça determinou reintegração de posse e pediu despejo da comunidade indígena em março, mas decisão foi derrubada. Família de Tereza Cristina domina política e Justiça no Estado, o que dificulta a resolução do conflito, que já dura 150 anos
Marcelle Souza
 24/04/2019
Segunda maior população indígena do Mato Grosso do Sul, os terena vivem em situação de confinamento, assim como os guarani (Foto: Mídia Ninja)

“Esperança” é o nome da fazenda localizada em uma área disputada por índios terena e uma poderosa família de Mato Grosso do Sul, os Alves Corrêa, que têm como parente a ministra da Agricultura, Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias. Mas esperança é também o que move os índios da região, que lutam há 150 anos pela terra batizada de Taunay-Ipegue, em Aquidauana (a 140 km de Campo Grande).

O último episódio do conflito aconteceu na véspera do Carnaval deste ano, quando o desembargador Wilson Zahuy ordenou a reintegração de posse da fazenda. A decisão foi derrubada dias depois pela presidente do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), a desembargadora Therezinha Cazerta, mas não acalmou os ânimos na região.

“Se essa reintegração fosse mantida, com certeza a polícia ia chegar com truculência, com o objetivo até de matar, porque esse governo é muito animal. Essa era a nossa preocupação, porque a comunidade ia resistir, ia defender o seu direito com a própria vida se fosse preciso”, afirma Lindomar Terena, uma das lideranças da etnia em Mato Grosso do Sul.

Retomado em 2013 pelos indígenas, o território corresponde a 33,9 mil hectares (339 km²) espalhados por 17 propriedades – a maioria dedicado à produção de gado, como a fazenda Esperança. A área foi declarada como terra tradicional indígena e de posse permanente do povo terena em abril de 2016, por decreto do Ministério da Justiça.

Pecuarista, a família da ministra Tereza Cristina ocupa há 150 anos terras que foram tomadas dos indígenas após a Guerra do Paraguai (Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

Dependendo ainda de homologação da Presidência da República, a regularização do território foi interrompida por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), após ação movida pelas irmãs Mirian e Mônica Alves Corrêa, primas da ministra. Como não há data para o julgamento, a disputa judicial não deve terminar tão cedo.

“O título da terra tem mais de 100 anos, então elas [Mirian e Mônica] vêm brigando por todos os meios cabíveis – além da questão jurídica, procuraram autoridades e a mídia para poder auxiliá-las –, mas infelizmente até hoje não conseguiram a reintegração de posse”, diz a advogada Carla Cafure, que representa as primas da ministra nas ações que tramitam na Justiça.

O poder vem de família

Os terena ocuparam a fazenda Esperança em 2013, após a morte do indígena Oziel Gabriel, de 35 anos, assassinado pela Polícia Federal durante a execução de uma ordem de reintegração de posse no Estado. O episódio aconteceu em Sidrolândia e deixou outras 21 pessoas feridas.

Na época, o responsável pela operação era o delegado da PF Marcelo Alexandrino de Oliveira, que em fevereiro de 2019 assumiu cargo como assessor especial na Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, pasta chefiada pelo pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia, publicamente contrário à demarcação de terras indígenas e subordinado à ministra Tereza Cristina.

Em 2016, outra propriedade ligada à família de Tereza Cristina, a fazenda Capão das Araras, foi ocupada pelos terena na mesma área. O terreno é da procuradora federal aposentada Yonne Alves Corrêa Stefanini, que, além de prima da ministra, é casada com o desembargador Luiz Stefanini do TRF-3 – instância em que são julgados os recursos envolvendo as comunidades indígenas de Mato Grosso do Sul.

Stefanini é nome conhecido dos ruralistas. Em 2009, o desembargador decidiu suspender processos de demarcação em 26 municípios de MS envolvendo índios da etnia guarani kaiowá. A medida, no entanto, foi revogada logo depois por instância superior. Ele também votou a favor de uma nova reintegração de posse da área em que Oziel Terena foi morto pela PF em 2013.

Decisão judicial acatou pedido das primas da ministra Tereza Cristina e pediu despejo dos terena em 1º de março, mas desembargadora suspendeu a decisão (Foto: Reprodução / Conselho do Povo Terena)

O conflito se acirrou em 2019 com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Uma de suas primeiras medidas foi transferir a demarcação de terras indígenas da Funai (Fundação Nacional do Índio), até o ano passado submetida ao Ministério da Justiça, para o Ministério da Agricultura, chefiado justamente pela pecuarista Tereza Cristina. Durante a campanha eleitoral, o presidente chegou a dizer que em seu governo não haveria “nem um centímetro para terra indígena”.

“Para elas [Mônica e Mirian], esse governo é uma esperança de se resolver a questão de qualquer forma: ou retomar a terra ou indenizá-las”, diz a advogada Carla Cafure.

Juntos na Guerra

Apesar de a família alegar que possui a posse da terra há 100 anos, os índios terena reivindicam esse território há cerca de 150 anos, época em que seus antepassados eram aliados dos Alves Corrêa, com quem chegaram a lutar lado a lado na Guerra do Paraguai.

O coronel Estevão Alves Corrêa, patriarca da família no século 19, comandou tropas brasileiras onde atualmente fica o Estado de Mato Grosso do Sul. Na região, os indígenas não só combateram, como formaram pontos de resistência ao avanço paraguaio.

“Os terena serviram o Exército brasileiro lutando e também fornecendo alimentos, já que tinham domínio da agricultura, além de servirem como guias. Eles podiam ter lutado com os paraguaios, mas fizeram a opção política de atuar do lado brasileiro”, afirma Eloy Terena, advogado da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).

Na guerra, aldeias da etnia foram destruídas por conta dos combates, obrigando a dispersão dos terena pela região. Os mais velhos contam que uma das comunidades ficava onde atualmente está localizada a fazenda Esperança. “Esse fato é lembrado até hoje em uma dança tradicional e, por isso, aquela terra tem um valor muito forte para os terena”, diz o advogado da Apib.

Terra Indígena Taunay/Ipegue foi ampliada em 2016 para os atuais 33,9 mil hectares. Área ainda depende de homologação pela Presidência (Foto: Mídia Ninja)

O fim da guerra marcou um tratamento desigual aos dois grupos: enquanto os militares receberam a posse das terras, os índios perderam áreas tradicionalmente ocupadas por seus antepassados.

“Um cacique que entrevistei em 2003 resumiu muito bem essa história. Ele disse: ‘os terena receberam do governo três botinas por defenderem o território brasileiro, duas nos pés e uma na bunda’. Isso porque, ao invés de reconhecer a sua participação na guerra, tomaram as terras deles”, diz Jorge Eremites de Oliveira, que é antropólogo, arqueólogo e historiador.

Entre as famílias beneficiadas, estava justamente a dos Alves Corrêa, que fundaram no início do século 20 a cidade de Aquidauana, e desde então se estabeleceram como uma das mais poderosas do Estado. Os títulos de posse doados naquela época foram herdados pelas gerações seguintes, até chegar hoje a Mirian, Mônica, Yonne e à ministra Tereza Cristina.

Do lado indígena, no início do século 20 o marechal Cândido Rondon criou a reserva Taunay-Ipegue, com 6.400 hectares na zona rural do município. A título de comparação, só a fazenda Esperança tem mais de 8.000 hectares. “Ele achava que essa terra ia ser suficiente, porque no futuro não ia mais existir indígena. Só que deu errado”, diz Lindomar Terena. Até hoje, mais de 6.000 índios reclamam a ampliação da reserva.

A luta continua

Insatisfeitos com a área criada por Rondon, um grupo de indígenas viaja na década de 1930 até o Rio de Janeiro para tentar negociar a ampliação das terras demarcadas. Apesar do sacrifício da viagem, os terena não chegaram a ser recebidos pelo presidente Getúlio Vargas.

O tema só foi retomado pelo Executivo em 1985, e mais dez anos depois instituiu-se o grupo de trabalho para analisar a ampliação da reserva Taunay-Ipegue. O estudo, questionado hoje pelos ruralistas, aponta que a área, que inclui as terras das três primas da ministra, é tradicionalmente indígena.

“Esse foi um processo cheio de vícios. Na ação, a gente discute mais de 24 nulidades, como desrespeito à publicidade, ao contraditório, à ampla defesa, além de que o processo administrativo correu por conta da própria Funai, que não era imparcial”, diz a advogada Carla Cafure. Na Justiça, a Fundação defende os trâmites do processo.

Os terena dizem que a resistência é único recurso que os indígenas têm para garantir um futuro para as próximas gerações Foto: Mídia Ninja)

Um dos principais argumentos dos pecuaristas para tentar derrubar as demarcações de terras indígenas em curso é que deve ser aplicado como parâmetro o marco temporal – que restringiria a homologação apenas às áreas ocupadas em 1988. O tema estava na pauta de julgamento desta semana do STF, mas foi adiado para 27 de junho.

“A gente está na expectativa, espera que o STF confirme os direitos dos povos originários e enterre de vez o marco temporal”, diz Lindomar. “A resistência é a nossa única arma, o último recurso que os indígenas têm para garantir um futuro para as próximas gerações”, afirma.

Nesta semana, representantes de etnias de todo o país realizam o Acampamento Terra Livre em Brasília, para trocar experiências e pressionar os poderes pela solução de conflitos, como o que envolve os terena em MS. Os índios, no entanto, não esperam ser bem recebidos. Por conta do evento, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, publicou uma portaria em que autoriza, por um mês, o uso da Força Nacional de Segurança na Esplanada dos Ministérios e na Praça dos Três Poderes.

Procurados por e-mail e telefone na semana passada, nem a ministra Tereza Cristina, por meio do Ministério da Agricultura, nem os advogados de Yonne Stefanini responderam aos questionamentos feitos pela reportagem.

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