Acordo com Mercosul enfraquece poder da União Europeia de barrar alimentos com agrotóxicos

Por pressão do bloco sul-americano, europeus não poderão mais usar cláusula para recusar produtos com pesticidas proibidos ou acima do limite; pacto também pode ampliar uso de agrotóxico no Brasil
Por Mariana Simões – Agência Pública / Repórter Brasil
 19/08/2019

Durante as negociações finais do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, firmado em junho, uma guerra sobre o uso de agrotóxicos era travada a portas fechadas. Por pressão dos países sul-americanos, o novo pacto reduziu as exigências da União Europeia para a entrada em seu território de alimentos com pesticidas vindos dos países do Mercosul, segundo contou à Agência Pública e Repórter Brasil a diplomata Valeria Csukasi, diretora geral para Assuntos de Integração e Mercosul no Uruguai.

Presente na sala da última reunião em Bruxelas, Csukasi disse que as discussões giraram, até o último minuto, em torno de um instrumento jurídico que permitia que a União Europeia recusasse a entrada de produtos com potencial de causar danos à saúde. Exatamente o que poderia acontecer com frutas e verduras com agrotóxicos proibidos no bloco europeu ou com limites acima do permitido. 

Esse instrumento jurídico, chamado princípio da precaução, é muito utilizado pelos europeus em acordos internacionais para poder negar uma mercadoria por precaução mesmo sem ter provas científicas. Isso significa, por exemplo, que se houver notícias confiáveis de que um produto tem excesso de agrotóxicos, ele poderia ser recusado. 

Segundo a diplomata uruguaia Valeria Csukasi, que participou das negociações, acordo permitirá que Mercosul questione na OMC decisões da União Europeia (Foto: UCIM)

Segundo Csukasi, enquanto o Mercosul tentava diluir o princípio, os europeus pressionavam por manter algo contundente e apresentaram resistência até o último minuto. “A visão do Mercosul é a de que a União Europeia tende a usar isso como uma barreira ao comércio e não como uma medida justa perante um temor real.”. 

No final, o princípio da precaução entrou parcialmente – o que o enfraqueceu e, segundo a diplomata, acabou anulando a possibilidade de aplicá-lo em casos envolvendo agrotóxicos. 

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Isso porque em vez de de ser registrada no capítulo  “Medidas Sanitárias e Fitossanitárias”, como queriam os Europeus, a menção ao princípio aparece no acordo no artigo 10 do capítulo “Comércio e Desenvolvimento Sustentável”.

E essa mudança, na prática, significa que o princípio não pode ser invocado para impedir a entrada de alimentos que ameaçam a saúde humana, já que o capítulo de Desenvolvimento Sustentável “não fala nada de saúde humana nem da sanidade vegetal”, de acordo com Csukasi. 

Negociado havia cerca de 20 anos, o acordo pode aumentar o PIB em até US$125 bilhões, segundo o governo brasileiro. Depois de assinado, ele passará por um processo de revisão jurídica, tradução e ainda precisa ser aprovado pelos parlamentos dos países membros. Portanto, a estimativa é a de que ele entre em vigor em dois anos.

Mais resíduos

O princípio da precaução, além de não poder ser acionado para barrar a entrada de produtos, pode abrir precedentes para ampliar o volume de resíduos de pesticidas permitidos em determinados alimentos. 

“A partir do momento em que o acordo entra em vigor, vamos ter um espaço de diálogo privilegiado entre o Mercosul e a União Europeia onde vamos poder colocar esses temas [sobre a regulamentação de agrotóxicos] na mesa,” diz Csukai. “O que estabelecemos [no acordo] é um diálogo específico sobre o que se chama Limite Máximo de Resíduos.”  

Na União Europeia, esse Limite é utilizado como um marcador para determinar se um produto pode ou não ser vendido nos mercados. 

Se um alimento tiver uma quantidade de determinado agrotóxico acima desse limite, ele não poderá entrar no mercado europeu. Porém, segundo o acordo, o Limite Máximo de Resíduo pode ser ajustado caso a caso, se o país exportador solicitar a chamada Tolerância de Importação. 

Uma vez aprovado, o pedido de tolerância ajusta o Limite Máximo de Resíduo para aquele produto e libera a sua circulação no mercado. Csukasi diz que a tendência é ver a quantidade desses ajustes crescer. 

 “A lista de Limites Máximos de Tolerância de Importação era pequena, mas cresce cada vez mais porque para cada produto e para cada substância estamos colocando limites diferentes para a produção e para a importação. Então, naturalmente esta discussão se torna caso a caso,” diz. 

E é justamente essa prática de se discutir caso a caso que preocupa cientistas na Europa, como Angeliki Lysimachou, coordenadora de Ciência e Políticas Públicas da Bélgica na ONG PAN Europe, que busca diminuir o uso de agrotóxicos nos alimentos do continente. 

“Se começarem a aplicar exceções caso a caso, essas exceções passam a ser mais difíceis de monitorar. Como resultado, um pesticida que antes era banido passa a ter um Limite Máximo de Resíduo considerado aceitável para aquele alimento”, explica Angeliki. “Por exemplo [o país exportador] pode dizer, ‘bom, nós usamos esse agrotóxico que não é autorizado e a gente ainda detecta ele na comida, mas em quantidades muito pequenas. Portanto, queríamos pedir para aceitarem esse pedido de Tolerância de Importação’. Eles então respondem que aceitam, já que fizeram uma análise toxicológica e se descobriu que naquela quantidade o agrotóxico não impõe nenhum risco a saúde humana.”

Um estudo realizado por Angeliki revela que quase 80% das entradas de produtos brasileiros na União Europeia tinham algum resíduo de agrotóxicos e quase 10% tinham resíduos acima do limite permitido. 

Vale lembrar que, segundo um estudo produzido pela pesquisadora e geógrafa da USP Larissa Bombardi, os produtos agrícolas brasileiros mais vendidos para a União Europeia (soja, café e cítricos) usam cerca de 20% a 30% de agrotóxicos que são proibidos na Europa. 

Angeliki acredita que o acordo entre o Mercosul e a União Europeia pode acabar afrouxando a regulamentação sobre os agrotóxicos na Europa. “Com a oportunidade de solicitar uma Tolerância de Importação, isso acaba sendo negociado em nível político. Você tem uma regulamentação, mas ela não é tão rígida porque afinal ela muitas vezes acaba sendo uma decisão política,” diz a pesquisadora. 

Mais agrotóxico em terras brasileiras

Outra consequência apontada por Angeliki é uma ampliação do uso de pesticidas nas lavouras brasileiras: “O que eu vejo é que [esse acordo] pode acabar sendo uma forma de se vender mais agrotóxicos para o Brasil e de vocês [brasileiros] aumentarem a importação para Europa, já que as tarifas serão reduzidas para ambos os lados.”

De fato, o acordo abre espaço para esse cenário. As tarifas comerciais terão uma redução significativa para ambos os blocos. Segundo nota emitida pelo Itamaraty, “após a desgravação prevista no acordo, 92% das importações do Mercosul e 95% das linhas tarifárias entrarão livres de tarifas na União Europeia.” 

A pesquisadora e professora da UNB de Relações Internacionais Ana Flávia Barros-Platiau é uma das que acredita na hipótese de que o acordo pode acabar impulsionando o mercado interno de agrotóxicos. “O meu medo, na verdade, é que a indústria agrícola brasileira, ao invés de adotar padrões rigorosos para atender a exigência europeia, passe a comprar mais pesticida porque isso vai ser facilitado.” Mas ela lembra que, mesmo tendo perdido os seus poderes de aplicação, uma menção ao princípio da precaução ainda consta no documento.  “Ele ficou enfraquecido, sim [no acordo]. Não é mais um revólver. Agora ele é um canivete. Mas não significa que os europeus não vão usar esse canivete contra a gente.”

Para além dos assuntos ligados a agrotóxicos, outro ponto levantado pela diplomata uruguaia Valeria Csukasi é o fato de que o capítulo em que foi colocado o princípio da precaução limita a aplicação da medida. “É um capítulo declarativo, que nem sequer está sujeito à solução de controvérsias. Ou seja, esse acordo não pode ser acionado para o cumprimento de alguma medida. Você não poderia dizer: vou suspender as preferências [comerciais] ao Mercosul – e ao Brasil em particular – porque estão desmatando a Amazônia. Isso não é possível hoje porque não está previsto dentro desse acordo.”

Além disso, o acordo prevê a possibilidade de que o Brasil ou outros membros do Mercosul acionem a Organização Mundial do Comércio (OMC) quando o princípio for invocado, alegando discriminação. Isso porque uma das cláusulas estipula que “as medidas não serão aplicadas de uma forma que possa constituir uma discriminação arbitrária ou injustificável ou uma restrição disfarçada contra o comércio internacional.” 


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