Investigação sobre setor farmacêutico revela rombo de R$ 170 mi, e pacientes com câncer ficam sem tratamento

MPF e TCU investigam compras públicas de medicamento produzido pela suíça Roche e apontam prejuízo a 11 Estados e ao governo federal por possível sobrepreço
Por Diego Junqueira
 15/08/2019

Enfrentando o câncer de mama há seis anos, a enfermeira aposentada Joyce Guimarães não se deixa abalar. Quando iniciou o tratamento com um remédio que consegue de graça no SUS, começou a se sentir mais disposta. Mas a ampola desapareceu das prateleiras entre novembro de 2018 e março deste ano. Foi quando Guimarães descobriu que, se quisesse manter o tratamento, teria que desembolsar R$ 12 mil por frasco. “Por que é tão caro?”, questiona ela, que recebe aposentadoria de R$ 1.300.

Guimarães passou quatro meses sem o herceptin, fabricado pela multinacional suíça Roche, por causa de uma parceria firmada pela fabricante com o Ministério da Saúde e o laboratório público paranaense Tecpar. O desabastecimento é “recorrente” em Belém (PA), diz a paciente. Mas se agravou após o Tribunal de Contas da União (TCU) paralisar o acordo por suspeita de sobrepreço nas vendas ao governo federal. O prejuízo estimado é de R$ 61 milhões.

Em outra ação, a Roche é acusada pelo  Ministério Público Federal do Distrito Federal de causar danos de R$ 107 milhões a 11 estados brasileiros. Também por suspeita de sobrepreço do remédio.

Nos dois casos, as investigações recaem sobre a pouco transparente política de preços da indústria farmacêutica. O caso do herceptin é emblemático pois revela estratégias do setor para alavancar lucros nas negociações com o poder público. O que, dessa vez, contribuiu para deixar pacientes sem tratamento no SUS. 

O governo federal e os estados são os maiores compradores brasileiros do herceptin, cujo princípio ativo é o trastuzumabe, referência contra um dos tipos mais graves de câncer de mama e oferecido de graça no SUS desde 2013. A Roche monopoliza o comércio do medicamento por meio de contratos milionários, faturando R$ 25 bilhões só em 2018. O preço da ampola varia hoje entre R$ 900 e R$ 12 mil no Brasil, o que dificulta saber seu valor real. 

A expectativa era que o medicamento ficasse mais barato em 2017, após chegar uma versão concorrente ao Brasil. Mas não foi o que aconteceu. Com monopólio ameaçado, a Roche fechou uma parceria com o governo federal para produzir o remédio no país junto com o Tecpar e a Axis, um laboratório privado fluminense. Enquanto durasse a transferência de tecnologia, a Roche teria garantido ao menos 40% do mercado SUS. 

O acordo aconteceu no âmbito das PDPs (Parceria para o Desenvolvimento Produtivo), política criada em 2009 que prevê transferência de tecnologia de empresas privadas a laboratórios públicos brasileiros para capacitar a indústria brasileira, aumentar a produção nacional de remédios avançados e diminuir seus preços.

Mas a parceria entre a Roche e o Tecpar, em vez de baratear o medicamento, como costuma acontecer com as PDPs, fez com que o ministério desembolsasse 37% a mais do que pagava anteriormente (R$ 1.293 ante R$ 939 por ampola). A compra levantou suspeitas do TCU, que investiga possível prejuízo de R$ 61 milhões neste contrato de R$ 222 milhões. O órgão fiscalizador interveio e paralisou os pagamentos, exigindo explicações do Tecpar e do ministério sobre o porquê de se pagar mais caro. 

A influência do ministro

As suspeitas do tribunal de contas foram além do sobrepreço. Os bastidores da parceria revelam indícios de influência política e o descumprimento do Marco Legal das PDPs, que prevê análise de cada acordo por duas comissões do ministério, o que não aconteceu.

O projeto do Tecpar com a Roche foi aprovado pelo ex-ministro da Saúde, o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), em tempo recorde: apenas uma semana, enquanto a tramitação média é de seis meses. A ex-gestão previu ainda investimento de R$ 82 milhões para que o Tecpar produzisse a ampola em Maringá (PR), reduto eleitoral do político.

Barros nega que tenha favorecido o Tecpar. “Não houve nenhum privilégio que não tenha sido dado a outros laboratórios públicos”, disse o ex-ministro à Repórter Brasil. “A política das PDPs sofre muita influência política”, completa. Ele afirma que o projeto do Tecpar não passou pelas duas comissões porque era uma parceria já em andamento. No entanto, até 2017, Tecpar e Roche não faziam parte das PDPs então vigentes para o produto.

O Tecpar alega que cobrou mais caro do Ministério da Saúde para investir o ganho extra (R$ 61 milhões) nas três empresas parceiras e nas atividades de “transferência de tecnologia”. A Advocacia-Geral da União (AGU) apontou suspeitas de ilegalidade e recomendou a suspensão do acordo, acatada de forma provisória pelo TCU. O caso segue sem decisão definitiva.

Ricardo Barros (e) assina acordo entre Ministério da Saúde, Tecpar e Roche (07.08.2017 – Reprodução/Tecpar)

Pacientes sem tratamento

Após a suspensão da parceria e uma compra emergencial no fim de 2018, o Ministério da Saúde abriu licitação para comprar 435 mil ampolas e abastecer o SUS até janeiro de 2020,  contrato de quase R$ 400 milhões. Axis e Roche, contudo, tentaram bloquear a licitação. O objetivo era impedir que a fabricante da versão genérica, a Libbs, entrasse na disputa pública. Mas o pedido não foi aceito pelo ministério: adiado em duas semanas, o pregão foi concluído com um valor mais barato pela ampola, R$ 894 (queda de 4,7% sobre R$ 939). 

As suspeitas envolvendo a PDP e as contestações ao pregão afetaram o fornecimento da ampola entre o final do ano passado e o início deste ano. Durante o julgamento no TCU, o Ministério da Saúde reconheceu que o estoque de trastuzumabe se resumia a 15 frascos em setembro de 2018, e que alguns estados já estavam totalmente desabastecidos. 

“Fiquei quatro meses sem a medicação”, conta Guimarães, que usa o herceptin há dois anos, após descobrir que o câncer avançara para pulmão e ossos. Exames revelaram que seu quadro de saúde piorou no período sem o remédio. “É frustrante”, lamenta.

Além do Pará, o desabastecimento foi verificado no Ceará, Santa Catarina, Espírito Santo, Alagoas, Rio de Janeiro e Paraná, segundo levantamento da Femama (Federação de Apoio à Saúde da Mama). Também há relatos no Maranhão e Rio Grande do Norte

Mais de 9 mil brasileiras fazem uso do trastuzumabe no SUS, segundo o Ministério da Saúde. A pasta informou à Repórter Brasil que “possui outras fontes de aquisições de produtos além daquelas realizadas no âmbito das PDP vigentes e em fase de fornecimento”. O Tecpar não comentou o desabastecimento, que atualmente está normalizado (leia na íntegra os posicionamentos do Ministério da Saúde e do Tecpar).

Após a publicação da reportagem, a Roche informou à Repórter Brasil que não pratica sobrepreço com o herceptin, que manteve o valor do produto ao fornecê-lo ao Tecpar e que não é responsável pelo desabastecimento no SUS (leia na íntegra a nota da Roche).

(Ilustrações: Angelo Abu)

A batalha contra os genéricos

Contestar licitações, como fez a Roche com o trastuzumabe, ou iniciar batalhas na Justiça para dificultar o surgimento de versões genéricas, como faz a Gilead no caso do antiviral sofosbuvir, são estratégias da indústria farmacêutica para ampliar o monopólio sobre um princípio ativo. É uma tentativa de ganhar tempo e afastar a concorrência, diz o advogado Vitor Ido, pesquisador do South Centre e especialista em negociações internacionais

Outra estratégia das farmacêuticas para manter o controle de mercado é apresentar vários pedidos de patente para o mesmo princípio ativo. No caso do trastuzumabe, a Roche entrou com 12 pedidos só no Brasil, segundo estudo da Fiocruz.

A confusão gerada pelos excessivos pedidos é tão grande que nem o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) soube informar qual patente vigorou sobre o herceptin, após questionamento da Repórter Brasil. O órgão reconhece que a maioria dos medicamentos são protegidos por mais de uma patente, mas destaca que não cruza informações sobre marcas e pedidos concedidos. A Roche não comentou.

Abuso de preço

A dúvida que aflige Guimarães sobre o preço do remédio também atinge acadêmicos, gestores e até a Organização Mundial de Saúde (OMS). “As empresas dizem que são altíssimos os custos de pesquisa e desenvolvimento, mas não se conhecem esses custos. Os governos sequer sabem quanto os países vizinhos pagam por um mesmo medicamento”, afirma Ido.

Por conta do mistério dos preços, a OMS aprovou resolução em maio deste ano cobrando maior transparência às fabricantes. O texto não é de adoção obrigatória pelos países, o que torna seus resultados incertos.

Com o monopólio de mercado, abre-se caminho para o abuso de preço. É o que acontece com o herceptin. A Roche é acusada pelo MPF-DF de causar prejuízos de R$ 107 milhões para 11 estados ao cobrar pela droga, entre 2012 e 2015, até o triplo do que cobrava do Ministério da Saúde. O levantamento do MPF foi feito pelo grupo Direito e Pobreza, da Faculdade de Direito da USP.

Os preços são diferentes porque, enquanto o ministério negocia uma compra de larga escala com a Roche, as secretarias estaduais compravam o medicamento após ordem judicial. “Aí surge a oportunidade de abuso de preço, porque o gestor não tem capacidade de negociação”, diz Carlos Portugal Gouvêa, professor de direito comercial da USP e membro do Direito e Pobreza. Ele diz que é prática comum do mercado farmacêutico “cobrar mais caro quando existe uma ordem judicial”. Só no estado de São Paulo há 15 mil ações envolvendo o trastuzumabe, segundo o grupo de estudo.

A ação do MPF contra a Roche é inédita no Brasil e pode mudar a regulação do mercado. Na apelação apresentada à Justiça Federal, após decisão favorável à Roche na 1ª instância, a procuradora Anna Carolina Garcia afirmou que a multinacional prejudica diretamente o SUS e os cofres públicos “ao estabelecer uma deliberada diferenciação de preços, sem justificativas razoáveis”. 

Investigação da Repórter Brasil confirma que a Roche continua diferenciando os preços em 2019: a Marinha do Brasil paga o triplo do que o Ministério da Saúde, considerando o valor por miligrama. Procurada, a Marinha diz que o contrato gerou “economia aos cofres públicos”, já que a legislação a permitia pagar ainda mais. (Leia a nota completa da Marinha).

A Roche não reconhece o abuso de preço em nenhum dos casos citados pela reportagem. A multinacional suíça afirma que a precificação no Brasil “é pública e definida” pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), vinculada ao Ministério da Saúde. 

O preço máximo adotado pelo órgão, no entanto, é questionado por especialistas por se basear em valores cobrados em países de alta renda. O ministro Aroldo Cedraz, do TCU, afirma que os preços da CMED “não são o parâmetro mais adequado” para compras públicas. O agravante é que a lei não autoriza a CMED reduzir o preço máximo dos remédios, nem mesmo quando seu valor de mercado está em queda, como no caso do trastuzumabe. 

É também por causa do preço que não chegou ao SUS a nova geração do herceptin, o perjeta, também da Roche. Com efeitos mais promissores no combate ao câncer de mama, estava previsto na rede pública para  junho de 2018, quando poderia ser utilizado por pacientes como Guimarães. Mas em razão do monopólio de mercado, Roche e Ministério da Saúde ainda não chegaram a um acordo sobre o preço.

Enquanto espera pela nova droga contra o câncer, a paciente se sentiria mais aliviada se o trastuzumabe não faltasse na rede pública. “São várias desculpas que ouvimos, mas quem sofre mesmo é o paciente”, diz Guimarães

(Nota da redação: a reportagem foi alterada às 16h45 de 16 de agosto de 2019 para incluir o posicionamento da Roche, enviado à Repórter Brasil após a publicação da matéria)

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