Como Florianópolis se tornou a primeira cidade brasileira a banir uso de agrotóxico

Lei aprovada por unanimidade na Câmara Municipal torna crime aplicar e armazenar pesticidas na capital catarinense
Por Pedro Grigori – Agência Pública / Repórter Brasil
 14/10/2019

Florianópolis será o primeiro município brasileiro a banir o uso de agrotóxicos em seu território. Uma lei aprovada na Câmara Municipal e sancionada pelo prefeito, Gean Loureiro (sem partido), na última quarta-feira (9/10) tornará crime punível com multa armazenar e aplicar qualquer tipo de pesticida na Ilha de Santa Catarina, parte insular da capital catarinense.

O feito é inédito no país. Após mais de um ano de tramitação, o projeto teve aprovação unânime entre os vereadores. A expectativa de parlamentares e especialistas ouvidos pela Agência Pública e Repórter Brasil é a de que o projeto inicie o caminho para a criação de outras zonas livres de agrotóxicos. 

A lei é do vereador Marcos José de Abreu (PSOL), conhecido como Marquito. Segundo parlamentar mais votado para a Câmara Municipal em 2016, ele se elegeu tendo a agroecologia como principal bandeira. Dentro de uma Casa com 22 vereadores, é um dos quatro que se posiciona como oposição ao prefeito Gean Loureiro. Para conseguir a votação unânime, ele diz que conversou com todos os colegas, tanto da base quanto da oposição. 

Marcos José de Abreu (PSOL), conhecido como Marquito, é autor do projeto de lei que baniu agrotóxicos de Florianópolis. (Foto: Assessoria de Imprensa Marquito)

“Durante toda tramitação a gente ia em cada vereador que pegava o projeto para dar o voto de relatoria. Sentava com ele, mostrava dados de análise de resíduos em alimentos e na água, apresentava estudos que correlacionavam o uso de alguns agrotóxicos com aumento de diversos tipos de câncer. Nossa principal base foi acreditar que o diálogo era possível”, explica o vereador. 

Antes de ser votado em plenário, o PL 17538/2018, que institui e define a zona livre, foi aprovado duas vezes pela Comissão de Constituição e Justiça, além de mais cinco comissões.

Para o vereador Jeferson Backer (PSDB), presidente da Comissão de Meio Ambiente, a aprovação da zona livre é o pontapé inicial para as gerações futuras começarem a pensar na qualidade alimentar. “Somos um país que consome 20% do total mundial quando falamos em agrotóxicos e insumos agrícolas – defensivos esses já proibidos em muitos países da Europa. Essa iniciativa tende a colocar um freio nesse consumo extremamente exagerado e sem controle, que é responsável por milhares de mortes anualmente”, conta o parlamentar. 

Sobre a passagem do projeto de lei pela comissão, Backer afirma que o texto é claro em relação aos seus objetivos. “É de extrema importância para a valorização do meio ambiente, da segurança alimentar e da vida. [O projeto] foi amplamente debatido, discutido e apreciado em nossa comissão. Uma grande vitória para sociedade florianopolitana”.

Já o presidente da Câmara dos Vereadores de Florianópolis, o vereador Roberto Katumi (PSD), diz que a lei tem mais importância pela intenção do que pelo impacto. “Florianópolis não tem agricultura como base, o que tem é uma família que tem horta dentro de casa. Então, não acredito que a lei terá um impacto muito grande. São essas pessoas que têm hortas que ficarão proibidas de utilizar agrotóxicos”, diz. Em relação à tramitação do projeto na casa, Katumi diz que serve como uma mensagem passada pelos vereadores ao país. “Mostra que somos a favor do agrotóxico zero, mas essa lei não vem para prejudicar ninguém, pois na Ilha de Florianópolis importamos grande parte dos alimentos”, conta.

A redação final do projeto de lei foi sancionado pelo prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro, eleito pelo MDB mas agora sem partido. Ficou decidido que a verba arrecadada pelas multas será totalmente revertida para as pastas de Saúde e Meio Ambiente. Agora, o prefeito tem 180 dias para definir o valor das penalidades e quais órgãos serão responsáveis pela fiscalização. 

O que muda com a lei? 

Além da medida punitiva, o Poder Executivo terá que criar um Programa de Educação Sanitária Ambiental para falar sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde humana e um Programa de Hortas Agroecológicas. “O objetivo é que se torne um programa pedagógico para ensinar nas escolas o impacto que esses produtos agrotóxicos pode causar na saúde e no meio ambiente”, diz Marquito. 

Devido à Lei Orgânica de Florianópolis, que não permite o Poder Legislativo legislar sobre comercialização não será proibido a venda de agrotóxicos dentro da ilha. Porém, o agricultor que comprar o produto estará proibido de utilizá-lo no município. 

“Ficamos quase um ano estudando como fazer essa legislação. Observamos a Constituição Federal, a Lei Orgânica do Estado e do Município, e encontramos na Lei Orgânica municipal que podemos legislar sobre a aplicação e armazenamento de agrotóxico, o que nos deu a brecha para construir a lei”, conta Marquito. 

O projeto da Zona Livre só foi apresentado 18 meses após o começo do mandato, para dar tempo de criar um caminho propositivo e informar os vereadores sobre os verdadeiros perigos dos agrotóxicos antes de apresentar um projeto de lei punitivo. “Aprovamos a Política Municipal de Agroecologia e Produção Orgânica, aprovamos uma diretriz orçamentária para o programa de agroecologia e segurança alimentar. Auxiliamos o município a assinar o decreto do Programa Municipal de agricultura urbana, além de todo um trabalho dentro da Câmara trazendo nomes estaduais e nacionais que explicassem a importância da agroecologia”, explica. 

Em contrapartida, criou-se na Câmara um espaço de denúncia dos males do agrotóxico, como uma moção de repúdio contra o PL 6299/2002, conhecido como Pacote do Veneno, projeto de lei debatido no Congresso Nacional que flexibiliza a aprovação de novos agrotóxicos. “Fizemos um evento no Dia Mundial do Meio Ambiente em 2018 com o tema dos impactos dos agrotóxicos na saúde humana e Meio Ambiente, e em 6 de dezembro um debate no Dia Mundial Contra os agrotóxicos. O objetivo disso tudo era ganhar a confiança dos vereadores enquanto eles assimilavam as informações”, diz Marquito. 

Não chamar a atenção 

No entanto, uma das principais estratégias do gabinete de Marquito era não chamar muita atenção para o PL, já que Prefeitura e a Câmara são comandadas em sua maioria por parlamentar de 15 partidos de direita. “Nós sabíamos que se o agronegócio estadual e federal olhasse para cá e visse o projeto, eles fariam pressão nos vereadores para impedir a aprovação. Os vereadores votaram positivamente porque conseguimos argumentar”, explica. 

“Agora eles estão recebendo pressão de fora, de deputados e senadores de seus partidos, porque esse projeto abre um precedente para todo país”. 

Uma das maiores justificativas do PL 17538/2018 foi o monitoramento da presença de resíduos de agrotóxicos em alimentos, realizado pelo Centro de Apoio Operacional do Consumidor (CCO) do Ministério Público de Santa Catarina, por meio do Programa Alimento Sem Risco. A cada ano, são realizados cerca de 1200 análises. Dessas, 670 são feitas em vegetais, frutas e verduras de 30 tipos, onde são analisados 430 tipos de ingredientes ativos. 

As análises tiveram início em 2010, e os primeiros dados mostraram que 34,5% dos alimentos analisados apresentavam presença de agrotóxico acima do permitido pela legislação, com produto não permitido para determinada cultura ou até mesmo com produtos banidos no país. 31% dos produtos tinham agrotóxico, mas dentro do permitido pela lei, e em apenas 34,5% dos casos não foi identificado nenhum resíduo de agrotóxico no produto. 

O Promotor de Justiça e coordenador do CCO, Eduardo Paladino, afirma que o programa está sendo eficiente. “Houve uma melhora significativa desses números. Os produtos fora dos parâmetros permitidos  caíram para 19,96%. Porém, os alimentos onde foram encontrados algum tipo de resíduo subiram para 40,44%. Isso significa que foi encontrado resíduos, mas dentro da conformidade. Lembrando que a nossa legislação em relação a isso é bastante permissiva, principalmente quando comparamos com os índices aceitos na União Europeia”, explica o promotor.  

Os números totais do projeto, que consolidam todas as análises feitas entre 2010 e setembro de 2019, mostram que em apenas 34,16% dos casos não foram registrados resíduos de agrotóxicos nas análises. Em 44,53% foram encontrados resíduos dentro do permitido, e em 21,31% acima do permitido. 

Sobre a nova lei, o promotor diz eu ela “tem uma simbologia muito importante”, explica o promotor. “É um projeto que foi aprovado por unanimidade, algo muito significativo em uma Casa Legislativa. Torcemos agora que esse exemplo que aconteceu em Florianópolis seja seguido por muitos outros municípios”, diz. 

O Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Santa Catarina também faz uma avaliação positiva da aprovação da Zona Livre. Seu coordenador, Pablo Moritz, explica que o centro faz análise da literatura científica publicada sobre os impactos dos agrotóxicos. 

“Estudos que vêm sendo publicados nos últimos anos mostram que mesmo em baixa dose, a exposição crônica via água, alimentação e inalação podem trazer diversos problemas para a saúde, como câncer e problemas hormonais”, explica. “O contato com substâncias químicas nesses produtos interfere nos nossos hormônios, o que gera problemas como obesidade, infertilidade, câncer de mama e disfunção sexual”. 

Outro grupo que participou da construção do projeto é a Rede Ecovida, um projeto formado na década de 1980 para o enfrentamento do modelo de agronegócio. Lido Borsuk, coordenador do grupo de agroecologia de Florianópolis do Ecovida, conta que a associação participou da construção do projeto da Zona Livre e diz que o mesmo tem que acontecer em outros municípios. “O prefeito ou um vereador terão muitas dificuldades de criar uma zona livre sem participação da sociedade civil. Se o município não tiver associações, ongs, sindicatos, creches, igrejas ou qualquer grupo que se organize para lutar pelo direito a uma alimentação saudável, os parlamentares não conseguirão aprovar leis como essa”, diz. 

Sobre o impacto da lei na população de Florianópolis, Lido conta que mesmo sem a grande participação da agricultura na economia do município, toda a população sentirá efeitos positivos no banimento dos agrotóxicos. “Agora, o consumidor e o comerciante terão garantia de que tem produtos de qualidade. Até mesmo o alimento orgânico pode ser contaminado com agrotóxicos vindo de propriedades vizinhas devido à chuva ou ao vento, e a lei torna isso menos provável. Todos saem ganhando”, conta. 

Porto Alegre baniu agrotóxicos na área rural e outras cidades devem seguir

Em 2017, a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou um projeto que torna a área rural de Porto Alegre uma zona livre de agrotóxicos. Porém, os agricultores terão um prazo longo para se adaptar: 15 anos. 

Desde então, outras regiões seguiram o exemplo. Em junho deste ano, o deputado estadual do Paraná Goura (PDT) protocolou o projeto de lei  Nº 438/2019 para criar uma Zona Livre de Agrotóxico na Região Metropolitana de Curitiba. O texto prevê que o comércio, o consumo e o armazenamento de agrotóxicos serão restringidos em 50% até 2025 e em 100% até 2030. O texto está em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e segundo o deputado, o debate deve ser iniciado apenas daqui um ano. “Eu já conversei com o presidente da CCJ, o Francischini (PSL), e meu pedido foi que ele não pautasse o projeto agora, porque antes queremos fazer uma mobilização popular. Conversar com todos membros da casa, sensibilizá-los antes de começar uma discussão”, explica. 

Diferente de Florianópolis, Curitiba e o estado do Paraná têm uma grande participação agrícola. “Temos na Assembleia Legislativa 54 deputados, e a maioria não é de Curitiba, vem do interior, são ligados ao agronegócio e a monocultura. Então há um receio de que a aprovação de um projeto como essa na capital abra precedentes para o resto do estado”, diz. 

Na Região Metropolitana de Curitiba, a agricultura é formada principalmente por agricultura familiar e uma agricultura de alimentos, conta o deputado estadual. “A importância do projeto é que estamos na área mais populosa do estado, mais urbanizada e uma área de mananciais, como Rio Iguaçu, que servem de abastecimento de água. A criação da zona livre de agrotóxicos resultaria em menos impactos no meio ambiente e na saúde de todo o estado”. 

Após a aprovação da Zona Livre em Florianópolis, Goura acredita que é o momento ideal para se investir em mais projetos da criação de áreas onde é proibido aplicar qualquer tipo de agrotóxico. “Vemos que agora é o momento de mobilização política e social para termos alimentos saudáveis”. O parlamentar acrescenta que com a lei, a expectativa é que o preço dos alimentos orgânicos diminua.

Outras cidades brasileiros devem ter projetos semelhantes nos próximos meses. O vereador Marquito, de Florianópolis, conta que após a aprovação da lei recebeu contato de diversos locais do Brasil querendo ajuda para a criação de novas zonas livres de agrotóxicos. “Trocamos informações e estamos conversando com ongs e parlamentares de municípios do Rio Grande do Sul, Bahia, Maranhão e São Paulo. Vamos fazer um tutorial de como foi feita a legislação para disseminar e trocar experiências”, conta. 


Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de agrotóxicos. Clique para ler a cobertura completa no site do projeto.


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