A corrida do ouro em curso no Brasil é uma prova de rua perto da maratona profissional que pode ter início se o governo do presidente Jair Bolsonaro conseguir colocar em prática seu projeto de liberar o garimpo em terras indígenas. Cada vez mais próxima de entrar em vigor, a política de legalização dessa atividade abre espaço para a aprovação, apenas em terras indígenas, de 4.332 pedidos de pesquisa mineral — o primeiro estágio para a autorização da exploração.
Caso aprovadas, essas pesquisas de subsolo têm potencial de gerar danos ambientais em pelo menos 215 terras indígenas (TIs) em todo o país (30% do total) em áreas que somam o equivalente a 28 milhões de campos de futebol somente na Amazônia Legal. Afetariam também 160 etnias, sendo 12 delas de povos isolados.
Os dados foram compilados pelo Instituto Socioambiental (ISA) com base em requerimentos feitos ao extinto Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), hoje Agência Nacional da Mineração. Os pedidos mostram que as empresas estão de olho em 55 substâncias, sendo a mais cobiçada o ouro, seguido de cobre, estanho, chumbo, manganês, titânio e nióbio.
No ranking das dez empresas com mais pedidos para pesquisa de minérios nas áreas indígenas, sete apostam todas as fichas em uma possível legalização, já que, somando todos os pedidos feitos por elas, mais de 80% incide sobre territórios indígenas.
A terra indígena mais cobiçada, em número de processos, é a dos Yanomami, entre os estados de Roraima e Amazonas, onde a corrida do ouro ilegal já deixou a região marcada pela invasão de garimpeiros e a contaminação por mercúrio. Se os 536 requerimentos para essa área, solicitados por 58 empresas, avançarem até sua fase final, a mineração poderá impactar 42% da terra dos Yanomami, com um potencial de destruição de 4 milhões de hectares de floresta (ou 4 milhões de campos de futebol). Porém, se analisarmos pela porcentagem do terreno na mira das solicitações, há casos em que elas incidem sobre 100% do território, como o da terra indígena Baú e o da Rio Paru d’Este, ambas no Pará.
“Os números de terras indígenas afetadas e de potencial de desmatamento mostram que se trata de um processo de espoliação desses terrenos, de uma exploração a qualquer custo”, afirma Tiago Moreira, antropólogo e analista de pesquisa socioambiental do ISA. Ele afirma ainda que qualquer que seja a participação dos indígenas nos lucros da atividade minerária, ela jamais será suficiente para cobrir os prejuízos ao ambiente e ao modo de vida das comunidades, já que as empresas um dia iriam embora deixando o ‘patrimônio’ dos indígenas contaminado.“Abrir as terras indígenas para a mineração é abrir mais buracos nesse controle, que já é frágil.”
Não é possível avaliar os impactos das minerações em terras indígenas somente pela perspectiva ambiental, de acordo com o geólogo Edson Farias Mello, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). “É preciso ter em mente que haverá a ruptura de um equilíbrio social e cultural, em um cenário extremamente temerário, pois a mineração e o garimpo vão além da degradação ambiental. Quando você permite atividade econômica dentro da terra indígena, você já começa a perder o controle.”
Governo tem pressa
A legalização da mineração em territórios indígenas depende da aprovação de uma nova lei pelo Congresso Nacional, como prevê a Constituição. Para o governo, no entanto, isso é uma questão de tempo. Pouco tempo.
O secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia (MME), Alexandre Vidigal de Oliveira, disse à Repórter Brasil que o governo tem pressa para aprovar projeto que regulamenta a mineração em terras indígenas. “A ideia é que tramite o mais cedo possível e pode ser que seja ainda neste mês de outubro, em razão da exigência que nos foi colocada de adiantar esses encaminhamentos.”
A atividade minerária no subsolo das aldeias é regida pela Constituição, em seu artigo 231, que garante aos indígenas a decisão sobre a exploração de suas terras ao dizer que o aproveitamento das “riquezas minerais só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”. O País também segue, no que diz respeito a esse tipo de exploração, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que estabelece que os povos indígenas devem ser consultados em todas as etapas sobre eventual projeto de mineração.
No entanto, Oliveira disse que os povos indígenas, mesmo que sejam ouvidos, não terão poder de veto e que a palavra do governo é soberana sobre o projeto que deve ser enviado para o Congresso. “É bom deixar claro que a Constituição é quem diz que não tem direito a veto. Fala-se muito que os índios não querem esse aproveitamento, mas não é bem verdade. Temos muitas comunidades indígenas que nos procuram e querem que essa riqueza mineral em seus territórios seja convertido em riqueza.” Questionado sobre quais comunidades ou lideranças indígenas ele se referia, o secretário afirmou: “Por nomes, eu não saberia dizer.”
A pressa do governo reforça a proposta de campanha de Bolsonaro de liberar mineração e garimpo em TIs, apostando em um crescimento e desenvolvimento econômico a partir da exploração do subsolo amazônico.
Os indígenas, porém, vem se manifestando de forma contrária à proposta do governo, exigindo especialmente que sejam ouvidos. “Queremos a garantia da execução da consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas. Também repudiamos qualquer ato de legalização de mineração nas terras indígenas”, afirma Maria Leonice Tupari, coordenadora da Agir (Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia), que reúne 25 etnias.
Em setembro, o movimento Munduruku Ipereg Ayu realizou um protesto em Itaituba (Pará) contra a legalização do garimpo, deixando claro que o governo não os representa e que não haverá diálogo para questões que envolvam a destruição da Amazônia. Davi Kopenawa, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de proteção à floresta, também declarou resistência do povo Yanomami – território onde a contaminação por mercúrio contaminou todos os 239 indígenas adultos examinados, segundo estudo da Fiocruz.
De empresas nanicas à Vale
O perfil das empresas que solicitam requerimentos também varia em termos de local e, principalmente, porte – indo de grupos pequenos a gigantes como a Vale.
Quem lidera a ranking das dez empresas com mais pedidos é a Mineração Silvana Indústria e Comércio – controlada pela Mineração Santa Elina -, com 735 requerimentos em territórios indígenas. Fora dessas áreas, ela possui apenas 125 solicitações, o que mostra a aposta da empresa em uma futura regulamentação. A Repórter Brasil entrou em contato com Santa Elina, mas a empresa não quis se posicionar.
A Vale aparece na segunda colocação com 216 pedidos que, se aprovados, irão afetar 1,8 milhão de hectare dentro dos territórios indígenas. A Vale informou à Repórter Brasil que “por ser uma empresa de grande porte e com ampla inserção territorial, considera o relacionamento com comunidades como um dos aspectos relevantes de sua atividade e a relação é pautada pelo respeito à cultura local e pela valorização da diversidade”.
Apesar de a cobiça empresarial às riquezas do subsolo serem grandes, ainda não se sabe o que pode acontecer com esses pedidos de pesquisa. Isso porque, pela legislação atual sobre mineração em geral, tem prioridade de exploração a empresa que fez o pedido primeiro. No entanto, o secretário Oliveira avalia alterar o critério para que a exploração seja dada por meio de consulta pública, uma espécie de licitação entre as empresas, priorizando aqueles que têm capacidade técnica de explorar a área e o minério.