Na Vaquejada de Serrinha, uma das mais tradicionais da Bahia, enquanto vaqueiros concorriam a prêmios de até R$ 50 mil e Anitta e Luan Santana eram as principais atrações do evento, 17 funcionários responsáveis por cuidar dos animais trabalhavam em situação análoga à escravidão. Alguns dos trabalhadores dormiam em redes no curral, mesmo lugar onde se alimentavam, ao lado das fezes dos animais. Não havia geladeira, mesas ou cadeiras.
A fiscalização feita pelos auditores fiscais do trabalho em parceria com o Ministério Público do Trabalho aconteceu em setembro de 2016 no Parque de Vaquejada Maria do Carmo e responsabilizou a administração do evento por uso de mão de obra análoga à escravidão. O parque é um dos 28 novos empregadores na ‘lista suja’ do trabalho escravo divulgada hoje (3) pelo Ministério da Economia – esses 28 integrantes foram responsáveis por terem submetido 288 trabalhadores à escravidão moderna.
Esta é a segunda ‘lista suja’ publicada no governo do presidente Jair Bolsonaro, que no final de julho deturpou o conceito do crime para defender mudança na legislação e reduzir a abrangência da punição aos escravagistas.
Confira aqui a ‘lista suja’ completa – essa relação foi atualizada em 25 de outubro pelo Ministério da Economia. As listas, depois de publicadas, podem passar por mudanças, já que alguns empregadores conseguem liminares para a retirada de seus nomes.
Entre os novos nomes na ‘lista suja’, há carvoarias, fazendas de plantação de carnaúba, café e banana, o filho de uma deputada estadual do Espírito Santo, além de uma empresa espanhola que atua no setor de gás no Rio de Janeiro. Ao todo, a lista suja tem 190 empregadores autuados pelo crime – e 2.005 trabalhadores que foram resgatados em ações de fiscalização.
Sem água e sem banho
Um dos empregadores que também entrou nesta edição da ‘lista suja’ é Daniel Lessa, filho da deputada estadual Raquel Lessa (PROS-ES), que submeteu 57 trabalhadores à escravidão contemporânea – dois deles menores de idade – em uma fazenda de café em Pinheiros, no Espírito Santo.
Quando os auditores fiscais do trabalho chegaram à Fazenda Córrego do Ouro, os trabalhadores disseram que estavam há dois dias sem água para tomar banho. Não havia chuveiro elétrico, camas ou coleta de lixo. Um deles relatou que havia amassado abacates encontrados no quintal e “misturou com farinha para se alimentar, pois estavam abandonados e desprovidos de alimentação”, segundo o relatório da fiscalização.
A fazenda é do período colonial e teve escravos antes da assinatura da Lei Áurea. Lessa também é proprietário de um hotel chamado “Casarão”.
Grávida de 8 meses
Outra empresa incluída na lista pertence a uma família com bom trânsito no universo político. A fazenda Santa Laura Vicuña, que fica em Nova Santa Helena, norte do Mato Grosso, foi autuada em julho de 2017 por submeter 23 pessoas à escravidão contemporânea. Entre eles, uma grávida de oito meses e um adolescente de 17 anos.
Com uma extensão de 50 mil hectares (o equivalente a 50 mil campos de futebol), a Fazenda Santa Laura Vicuña tem entre suas atividades a criação de gado e a plantação de soja. Os trabalhadores não tinham banheiro e nem água potável, e ficavam expostos a riscos de contaminação por agrotóxicos, já que não usavam equipamentos de proteção e os vasilhames dos pesticidas eram descartados perto do alojamento e do córrego – de onde os trabalhadores bebiam a água.
Um dos sócios da fazenda, o empresário Cyro Pires Xavier, tem também atuação nas áreas de pesca desportiva e agrotóxicos. O seu avô, Bueno Xavier, foi homenageado por Blairo Maggi, em um discurso no senado, em 2016.
Multinacional espanhola
Duas empresas de grande porte também foram incluídas na lista suja do trabalho escravo. Uma delas é a Gasindur do Brasil Ltda, um grupo espanhol do setor de gás que atua no Rio de Janeiro. Em setembro de 2016, auditores fiscais do trabalho encontraram dois trabalhadores da empresa alojados em um casebre no bairro Cachambi, na capital fluminense.
“A sujeira impera em todo o local”, relataram os auditores, com destaque para a falta de higiene, inclusive, na área onde eles cozinhavam. “As instalações elétricas também se encontram em péssimo estado de conservação e são improvisadas com emendas e fios expostos, o que propicia a ocorrência de curtos ou choques elétricos”, aponta o laudo dos auditores-fiscais do trabalho. O telhado de amianto também representava risco aos trabalhadores. Além do excesso de entulhos, não havia ventilação ou chuveiro com água quente.
A outra empresa é a Thenos Florestal e Logística, que segundo o seu site oficial, tem grandes clientes como Votorantim, JSL, Santos Brasil, ZF e Acrilex. Em maio de 2018, fiscalização dos auditores fiscais resgatou 30 trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea na Fazenda Campinho, em Rancho Queimado, Santa Catarina. Eles trabalhavam no corte e no empilhamento de pinus. Os que usavam a motosserra trabalhavam de domingo a domingo sem descanso. Dormiam no chão ou em pequenos colchonetes. Eles haviam sido levados a trabalhar na fazenda por intermédio de uma empresa aliciadora, mas, segundo os auditores, os proprietários da Thenos sabiam da situação dos trabalhadores.
A Repórter Brasil entrou em contato com a Thenos, a Gasindur, a Fazenda Santa Laura Vicunã e com o gabinete deputada estadual Raquel Lessa, mãe de Daniel Lessa – e nenhum deles se pronunciou. Após a publicação da reportagem, a organização da Vaquejada Parque Maria do Carmo enviou nota informando “lamenta que tenha sido associada ao uso de mão-de-obra escrava, já que os fatos já foram esclarecidos na época”, inclusive com a autorização de que os trabalhadores continuassem no evento. A empresa diz ainda “que serão tomadas todas as medidas para obter a imediata exclusão de seu nome da lista suja do Ministério do Trabalho, por entender existirem equívocos que necessitam de esclarecimentos”.
A ‘lista suja’ do trabalho escravo
A ‘lista suja’ do trabalho escravo é uma base de dados criada pelo governo em novembro de 2003. O cadastro expõe casos em que houve resgate de pessoas em condições consideradas análogas à escravidão. Antes de entrar no cadastro, empregadores têm direito de se defenderem em duas instâncias administrativas do extinto Ministério do Trabalho, agora submetido ao Ministério da Economia.
Os empregadores envolvidos nesse crime permanecem por dois anos na lista. Caso façam um acordo com o governo, o nome fica em uma “lista de observação” e pode sair depois de um ano, se os compromissos forem cumpridos.
O cadastro tem sido utilizado para análise de risco por investidores e bancos públicos e privados. Além disso, há empresas brasileiras e internacionais que evitam fechar negócios com esses empregadores.
Quatro elementos podem definir escravidão contemporânea, de acordo com o artigo 149 do Código Penal: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde, a segurança e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde, segurança e vida).
Nota de redação: A reportagem foi atualizada em 7 de outubro às 16h40 para inclusão de resposta do Parque Maria do Carmo.
Nota de redação: A matéria foi alterada em 31 de outubro às 16h00 para a inclusão do novo link do Ministério da Economia com a lista atualizada.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil