Toda empresa que compra gado ou carne na Amazônia, seja um frigorífico ou uma rede de supermercados, acaba adquirindo animais criados em áreas desmatadas. A conclusão é do procurador Daniel Azeredo, do Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA), que apresentou na terça-feira (12) os resultados do monitoramento realizado desde 2009 na cadeia produtiva da carne paraense.
Nos últimos dez anos, 31 matadouros firmaram Termos de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal – conhecido como “TAC da Carne” –, para monitorar a origem dos animais abatidos e, assim, coibir o desmatamento ilegal da floresta.
A pecuária é a maior causa do desmatamento na região, segundo o MPF. De 2000 a 2010, o rebanho bovino passou de 47 milhões para 78 milhões na Amazônia Legal. No mesmo período, a floresta amazônica perdeu 240 mil km² de sua cobertura, o equivalente à área do Estado de São Paulo.
“Nenhuma empresa que compra da Amazônia, nenhum supermercado ou varejo, pode dizer que não tem gado vindo de desmatamento na sua atividade produtiva”, afirma Azeredo. “Há problemas graves que a auditoria sequer alcança.”
As brechas na auditoria
Há três entraves que impedem o controle total da cadeia produtiva da carne no Pará, segundo Azeredo. O primeiro é a dificuldade de rastrear os animais desde o nascimento, já que eles passam por várias fazendas até o abate.
“O gado é vendido de uma fazenda para outra até chegar ao frigorífico, e no meio do caminho passa por áreas com problemas ambientais. Isso não é detectado pelas auditorias, porque não existe o rastreamento da origem do gado. O frigorífico só sabe qual é a fazenda que está vendendo naquele momento”, afirma.
O segundo problema são fraudes no Cadastro Ambiental Rural (CAR), uma declaração de área fornecida pelo próprio produtor rural, mas que é facilmente adulterada. Segundo Azeredo, há produtores que alteram os limites de sua propriedade no CAR para retirar da área um local onde foi registrado desmatamento. “Assim o produtor continua vendendo o gado”, diz.
A última brecha na cadeia produtiva de carne é a “lavagem de gado”: quando animais criados em área embargada por desmatamento são transferidos para uma propriedade “ficha limpa”, que por fim acaba realizando a venda para os matadouros.
Irregularidades como essas foram encontradas em 6,3% dos animais abatidos no Pará em 2017, segundo a auditoria divulgada na terça. Dos 3,3 milhões de bois abatidos no estado naquele ano, 2,2 milhões foram fiscalizados pelo MPF. Desse total, 137 mil tinham irregularidades.
Esta foi a segunda auditoria realizada pelo órgão. Na primeira, com dados de 2016, o índice de irregularidades foi de 22%. “Há dez anos não havia nenhum mecanismo de controle. Avançamos muito”, afirma o procurador Ricardo Negrini, também do MPF-PA. Além do desmatamento ilegal, a auditoria aponta problemas como a falta do CAR ou a licença ambiental rural vencida.
Dos 31 matadouros que firmaram o TAC da Carne, 23 apresentaram os resultados da auditoria, entre elas grandes empresas como JBS, Minerva e Frigol – com índice de irregularidades de 9%, 1% e 19%, respectivamente. Por outro lado, oito empresas não realizaram o monitoramento, entre elas a Marfrig.
Produtividade ‘suspeita’
Uma das formas de avançar no controle da cadeia produtiva da carne é vincular a Guia de Trânsito Animal (GTA) ao Cadastro Ambiental Rural, diz Azeredo.
O procurador afirmou também que, a partir de 2020, irá cobrar dos matadouros o índice de produtividade de seus fornecedores. A ideia é coibir pecuaristas que criam um número de cabeças de gado incompatível com a área da propriedade.
Para barrar o “esquentamento de gado”, o MPF estabeleceu o teto de produtividade de 2,5 animais por hectare. Propriedades que ultrapassarem esse limite deverão ser monitoradas de perto pelos frigoríficos, já que isso pode indicar irregularidades, como fraude no CAR ou criação de gado em áreas ilegais. As empresas deverão comprovar a alta produtividade e estabelecer regras para essas compras. “Quem não cumprir o teto na próxima auditoria ficará irregular”, diz Azeredo.
Sem multas
Assim como aconteceu em 2018, o MPF decidiu não aplicar multas às empresas que descumpriram o TAC da Carne. O procurador Ricardo Negrini afirmou que o papel do TAC não é aplicar medidas punitivas, mas fazer com que o produtor entenda os benefícios de produzir sem devastar a floresta. Segundo ele, os mercados consumidores estão cada vez mais conscientes, assim como os supermercados e as instituições financeiras.
“As instituições financeiras que dão crédito para o setor começam a se preocupar com a sustentabilidade da cadeia produtiva. Quando um desses atores resolve não comprar gado por problemas socioambientais, esse fornecedor vai viver um problema econômico, que o prejudica mais do que qualquer multa”, avalia.
Ele aponta também dificuldades para cobrar as multas aplicadas às empresas, “porque nem sempre há patrimônio para isso”, ou porque “a empresa deixa de existir”, diz. “Existe uma série de entraves no sistema judiciário tradicional, então a gente busca solucionar por meio de ações do próprio mercado.”
No entanto, a alternativa de não aplicar multas gera controvérsias. “A imposição de multas aumentaria a pressão sobre os frigoríficos para se adequarem ao TAC mais rapidamente”, diz Mariana Abreu, investigadora da ONG Global Witness. Para ela, a prioridade é resolver os problemas dos fornecedores indiretos, da falsificação de CARs e da lavagem do gado.
Abreu defende ainda que grandes bancos limitem a concessão de empréstimos para empresas envolvidas com desmatamento. Instituições financeiras, como Black Rock, Deutsche Bank e Bank of America, diz Abreu, financiam grandes frigoríficos, como JBS e Minerva, e deveriam cobrar mais regulação e sustentabilidade. “Isso é fundamental se quisermos interromper a destruição da Amazônia”, disse.