“Vendo”, diz uma placa em área cercada dentro de uma reserva ambiental em Alter do Chão, no Pará. O som de motosserras e da construção de casas, segundo vizinhos ouvidos pela Repórter Brasil, marca presença onde deveria haver apenas o silêncio da mata. Nos finais de semana, há festas com música alta e tiros para cima. Alvo de invasores e grileiros, esta área de proteção ambiental foi a mais atingida pelo incêndio que destruiu, em setembro, parte de um dos balneários mais famosos da Amazônia.
Controlado em quatro dias, o fogo voltou ao centro das atenções depois que quatro brigadistas foram presos pela Polícia Civil, acusados de terem iniciado as queimadas para angariar recursos de ONGs internacionais. Conhecida como Capadócia, esta área às margens do Lago Verde vem sendo alvo do grileiro Silas Soares da Silva há pelo menos cinco anos, segundo investigações do Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA).
Ex-policial civil aposentado e atualmente foragido da Justiça, Silas é pai de Gildson dos Santos Soares, um policial militar que, segundo o MPF, possui um terreno irregular na Capadócia e é réu em três processos por homicídio, além de ser investigado por outros dois assassinatos. O integrante do Grupo Tático da PM já ameaçou funcionários públicos de Santarém e deu voz de prisão a um advogado que tentava se encontrar com um cliente.
As conclusões do MPF sobre Silas e as denúncias do Ministério Público Estadual do Pará (MPPA) relacionadas a Gildson corroboram a fala do prefeito de Santarém, Nélio Aguiar (DEM), de que a área incendiada em Alter é “de invasores” com “policial por trás”. No áudio enviado ao governador Helder Barbalho em 15 de setembro, durante o incêndio, Aguiar afirmou ainda que havia “gente tocando fogo para depois fazer loteamento, vender terreno”, conforme revelou a Repórter Brasil.
Um dia depois da divulgação do áudio, o prefeito citou Silas e seu filho em entrevista ao Brasil de Fato. “O Silas é pai de um militar. Por isso que as pessoas comentavam que tinha policial envolvido”, justificou o prefeito sobre a gravação. “As pessoas comentavam que o incêndio provavelmente era criminoso e que talvez ele [Silas], de onde ele estivesse foragido, pudesse ter articulado algum tipo de ação para aumentar a venda de lotes”, disse Aguiar.
Segundo o MPF, as investigações sobre as queimadas estão em curso, inclusive com perícias técnicas, e até o momento não há elementos para apontar suspeitos. O órgão diz apenas que o grileiro Silas atua há anos na Capadócia, região que foi a mais atingida pelo fogo, e que há “a suspeita de que um dos focos [de incêndio] tenham sido iniciados em área invadida por ele”.
‘Limpeza dos terrenos’
Em 2015, um morador da região chegou a dizer a fiscais ambientais e procuradores que Silas não apenas desmatava a área para abrir lotes, como “tocava fogo nas margens dos igarapés formadores do Lago Verde”, segundo ação civil pública do MPF. O fogo faz parte do processo para a “limpeza de terrenos” e normalmente é usado após a retirada da madeira nobre.
O grileiro reconheceu ser o “dono” das terras dentro da área ambiental quando foi interrogado pelo MPF há quatro anos. Foi condenado pela Justiça Federal do Pará em setembro de 2018 a seis anos e dez meses de prisão por desmatamento e por instalar loteamento irregular na Capadócia. Foi preso em 2016, mas argumentou problemas cardíacos, ficou em prisão domiciliar e acabou fugindo. Documento obtido pela Repórter Brasil revela que pelo menos desde 2013 Silas sabia que a área é de propriedade da União, segundo consulta que ele fez ao Incra.
O advogado de Silas, Raimundo Nonato Sousa Castro, diz que seu cliente já ocupava a área quando a Área de Proteção Ambiental de Alter do Chão foi criada, em 2003, mas que nunca teve a “propriedade” da terra, somente a “posse”. “Se existe uma coisa que é configurada na Amazônia é a posse; 95% das pessoas aqui detêm a posse, e não propriedade. Mas hoje ele não tem mais a posse porque não pode sequer estar no local por ordem judicial”. Questionado quem então seria o “dono” da área, Castro diz que as terras são públicas e que a resposta precisa ser dada pelo poder público.
‘Fama de violento’
O filho de Silas também enfrenta problemas na Justiça. Descrito como um policial com “fama de violento” pelo MPF, Gildson é réu em três processos por homicídio qualificado (com intenção de matar) – dois tramitam no Tribunal de Justiça do Pará e um na Justiça Militar. Ele também é investigado por outros dois assassinatos.
Em um dos episódios, no ano passado, o policial militar teria disparado 12 tiros na traseira de um carro, matando a doméstica Sônia da Silva Viana, de 40 anos, e ferindo outras três pessoas. Após confessar os disparos, foi preso, mas conseguiu um habeas corpus e responde à acusação em liberdade.
Em outra acusação, de formação de quadrilha e venda de armas, ele foi absolvido por falta de provas pelo juiz Alexandre Rizzi – o mesmo que mandou prender (e depois soltar dois dias depois) os quatro brigadistas. No passado, Rizzi atuou como advogado de uma madeireira da sua família e, em 1994, chegou a criticar ação do Greenpeace na região.
Procurado, o advogado de Gildson, Rogério Correa Borges, afirmou que “está certo da inocência de seu cliente” e que ele “muito fez pela população local”. Borges destacou ainda que os processos estão em tramitação, exceto um deles em que o policial foi absolvido por ausência de provas.
Um lote no paraíso por R$ 10 mil
Silas loteou uma área de pelo menos 410 hectares (o equivalente a 410 campos de futebol), superior ao tamanho da vila de Alter do Chão, e a batizou de “Sítio Bom Futuro”, segundo informações do Cadastro Ambiental Rural (CAR) citado na investigação. Era inclusive por meio do CAR que o grileiro “provava” o direito à posse da terra para os compradores interessados, embora este documento não tenha validade legal por se tratar de uma autodeclaração.
Entre os compradores desses lotes irregulares, há um sargento da PM, uma servidora da Prefeitura de Santarém e pelo menos outras nove pessoas, segundo o MPF. Silas já teria demarcado pelo menos 40 lotes na região, informa ação civil pública de março de 2018.
Moradores de bairros vizinhos, porém, afirmam que o loteamento e a venda de terrenos nunca parou mesmo após as investigações federais e a condenação do grileiro. Hoje existiriam cerca de 300 lotes na área grilada, segundo moradores da região, que pediram anonimato, dos quais todos às margens do lago já estariam vendidos.
Recibo obtido pela Repórter Brasil confirma a venda de um lote por R$ 100 mil na região, ainda em 2015.
As perícias da Polícia Federal comprovam os relatos dos moradores. Em fiscalizações na Capadócia, realizadas em 2015 e 2016 juntamente com o MPF, os policiais federais identificaram casas de madeira e alvenaria com quiosques, banheiros externos, churrasqueira, bar, caixa d’água, fossas e galpões de estrutura metálica.
Foi em uma dessas fiscalizações realizadas na casa de Silas, em 13 de janeiro 2016, que o grileiro ameaçou os moradores de Alter e de Caranazal, dizendo que “iria dar uma pisa nos mesmos, ia espocar e explodir os comunitários denunciantes”. Na mesma ocasião, Gildson, filho de Silas, tirou fotos dos servidores que faziam a entrega do auto de infração. Ainda segunda a ação, no dia seguinte, policiais do Grupo Tático foram fardados até a sede da Secretaria de Meio Ambiente de Santarém para intimidar servidores.
Segundo ação do MPF, para fazer o loteamento, Silas submetia trabalhadores a condições análogas à de escravidão – já que não recebiam pagamento e ficavam alojados em condições degradantes.
Mesmo com Silas condenado, a grilagem continua na Capadócia, já que a prefeitura de Santarém conta com apenas sete fiscais para atuar em uma área 12 vezes o maior que a cidade de São Paulo.
Após o incêndio de setembro, cercas novas voltaram a aparecer nas áreas queimadas, conforme revelou o Fantástico. “As construções [de casas] não param dia e noite”, disse à Repórter Brasil um vizinho da Capadócia. Com valores entre R$ 10 mil e R$ 100 mil, parte dos compradores sabe que se trata de uma área irregular – pertencente à União – e adquire o terreno mesmo assim, na esperança de lucrar sobre uma das áreas mais cobiçadas do balneário de Alter.
*Colaborou Diego Junqueira, de São Paulo