Fazenda que fornece a grupo dono da Segafredo corta cantina e pagamento de deslocamento do trabalhador

Com 2 mil hectares, fazenda NSG de café, no interior de Minas, também foi autuada por descumprir descanso e jornada, e condenada a recuperar área ambiental, depois de obter certificação
Por Pedro Biondi
 02/12/2019
Pioras relatadas nas condições de trabalho no empreendimento, segundo fontes ouvidas pela reportagem, refletem o cenário geral da agricultura nos últimos anos (Foto: Arquivo/Repórter Brasil)

A cena se repete durante toda a época da colheita na Fazenda Nossa Senhora da Guia, em Pimenta (MG): centenas de trabalhadores e trabalhadoras temporárias arrancam os frutos dos pés de café espalhados por uma área que equivale a 1,3 mil campos de futebol – uma das maiores áreas contínuas dedicadas à cafeicultura do mundo.

É de lá que saem sacas e sacas de café ostentando certificações internacionais – parte dos grãos é fornecida ao grupo multinacional Massimo Zanetti, cuja marca Segafredo Zanetti é encontrada nas prateleiras de supermercados brasileiros de alto padrão. E é dessa fazenda também que saem autuações trabalhistas e condenações por crimes ambientais.

Apesar de ser detentora dos selos de sustentabilidade da Rainforest Alliance e da UTZ, a NSG – sigla pela qual o empreendimento rural também é conhecido –, foi condenada em outubro a desocupar e a recuperar a vegetação em área de preservação nas margens do Lago de Furnas. A fazenda, segundo o Ministério Público Federal, avançou seu plantio na área protegida, o que é crime ambiental. Em agosto, recebeu duas autuações trabalhistas do governo federal por desrespeitar o limite de jornada de trabalho e o tempo mínimo de descanso dos funcionários.  

Além disso, a fazenda parou de pagar o tempo de deslocamento dos trabalhadores (a chamada hora in itinere) e reduziu sua cantina, o que obriga os trabalhadores a trazerem comida de casa – sem geladeira para guardar o alimento. A Repórter Brasil obteve ainda a informação de que trabalhadores foram demitidos este ano por reivindicar aumento salarial e melhorias nas condições de trabalho. A NSG nega as acusações.

“As horas in itinere davam uma média de R$ 90 por mês”, conta um trabalhador que deu entrevista sob anonimato. “E existia a opção de pagar por volta de R$ 40 por mês para ter almoço e dois lanches. Sem um lugar para as refeições fica bem pior. A gente tem que trazer marmita e deixar na sombra na lavoura, para não azedar.” 

Outra questão envolvendo a NSG gira em torno da contratação de trabalhadoras rurais. A administração manteve a prática de não oferecer alojamentos para mulheres, constatada pela Repórter Brasil em 2015, em investigação para a produção de um relatório da ONG finlandesa Finnwatch. Ou seja, trabalhadoras femininas só podem ser contratadas se puderem se deslocar diariamente para o local. 

Questionado sobre as autuações deste semestre, o diretor comercial da NSG, Jaubert Ulisses, contesta a ocorrência de abusos ou ilegalidades. “Foram apenas quatro casos pontuais de uma realidade de mais de 600 colaboradores nesse período”, afirmou por e-mail. “Entendemos que não houve nenhum abuso, tampouco infração à legislação vigente.”

Quanto à remuneração pelo tempo em deslocamento para o local de trabalho, Ulisses argumenta que foi extinta pela reforma trabalhista, que entrou em vigor em novembro de 2017.

De fato, a reforma extinguiu a obrigatoriedade desse benefício nos novos contratos, mas o Tribunal Superior do Trabalho ainda não julgou os contratos anteriores à nova regra.

Em relação à cantina, Ulisses afirma que a redução aconteceu por conta da diminuição no número de trabalhadores alojados – de 50 para 14. Sobre a falta de alojamento para mulheres, ele disse que “as próprias mulheres não se dispõem a ficar alojadas e longe de seus familiares”. Em relação à multa ambiental, o diretor ressalta que a empresa cumprirá o que for determinado pela Justiça na decisão definitiva. 

Evolução ou falta de vigilância 

A fazenda recebeu o selo de qualidade da Rainforest Alliance em março de 2017 por meio da certificação do instituto Imaflora – hoje quem faz a intermediação é o IBD. As certificações costumam fazer auditorias para garantir que as fazendas cumprem a legislação trabalhista e ambiental.

O empreendimento passou quase cinco anos sem autuações trabalhistas. Entretanto, a Repórter Brasil apurou que não houve fiscalizações dos auditores do extinto Ministério do Trabalho no período. De 2005 a 2014, a propriedade havia incorrido em 28 infrações – a maioria ligada à segurança e higiene no ambiente de trabalho.

Em 2017 – durante o “intervalo” do controle oficial, portanto –, o Imaflora verificou em auditoria na fazenda que os horários de trabalho e os períodos de descanso “não cumprem completamente com os requisitos desta norma de certificação”. 

Trata-se de irregularidades que não inviabilizam a obtenção ou a manutenção dessas “medalhas” por bom comportamento. Procurado pela reportagem, o IBD não se manifestou sobre as irregularidades constatadas. 

A procura por selos aceitos em âmbito global segue em crescimento. Mas reportagem do Washington Post de outubro denunciou que a UTZ, líder no estabelecimento de padrões para a indústria do cacau, certificou fazendas da África Ocidental que usam trabalho infantil ou contribuem para a devastação florestal. A Rainforest Alliance, que está em processo de fusão com a UTZ, respondeu que a existência desses desafios é a razão de sua atuação na região. Informou  ter cancelado certificações e adotado novos cuidados e parâmetros na Costa do Marfim e em Gana.

O cangote do patrão ou o lombo do trabalhador

Segundo fontes ouvidas pela reportagem, as pioras relatadas nas condições de trabalho no empreendimento refletem o cenário geral da agricultura nos últimos anos, com a reforma trabalhista e outras mudanças, além de expor as limitações dos selos de sustentabilidade internacionais. 

O coordenador da Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere-MG), Jorge Ferreira dos Santos, ressalta que a reforma aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente Michel Temer (MDB) tornou ainda mais árido o dia a dia na lavoura, e o café mineiro não foge à regra: “Alguns direitos têm sido cortados e, em relação a irregularidades, com a extinção do Ministério do Trabalho e Emprego [no governo Jair Bolsonaro], os proprietários têm a certeza de que não vão ser fiscalizados.”

Um auditor fiscal do trabalho ouvido pela reportagem reforçou os impactos, na ponta, do esvaziamento da CLT e da promessa reiterada de Bolsonaro de tirar o Estado do cangote do produtor. “Muitas vezes a gente chega numa fazenda e o dono ou administrador pergunta, intrigado: ‘Ué, mas esse tipo de fiscalização não acabou?!’”

Santos, da Adere, diz que a inversão de lógica na Justiça do Trabalho derrubou as demandas judiciais em 60 a 70%. “Se o trabalhador não consegue comprovar a irregularidade, tem que pagar os custos judiciais mais os honorários do advogado do patrão”, justifica. Em 2018, dados sugerem que a qualidade de vida nos cafezais atingiu o pior patamar dos últimos anos

O sindicalista conta que o uso de tratores de cabine fechada para pulverização com agrotóxicos é um pedido que os sindicatos rurais têm levado às discussões com o patronato. Muitos relatam que, mesmo com o equipamento de proteção individual (EPI), é comum o contato do líquido com a pele. Jaubert Ulisses, da fazenda Nossa Senhora da Guia, descarta a adesão ao procedimento.

“A empresa conta com o SESTR (Serviço Especializado em Segurança e Saúde no Trabalho Rural), que cuida para que a legislação em vigor referente à segurança e saúde dos trabalhadores seja cumprida”, afirma, garantindo que a empresa fornece todos os equipamentos necessários para “neutralizar eficazmente os agrotóxicos” e possui um médico do trabalho para acompanhar os colaboradores.


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