O cotidiano de Leonaldo Lopes de Sousa segue o ritmo da floresta. Sai da cama junto com o sol, alimenta as galinhas e os porcos, cuida da roça onde planta mandioca, milho, arroz e feijão e dorme cedo, com o sono precipitado pelo cansaço. Seu principal sustento vem da farinha de macaxeira, planta nativa da Amazônia e vendida “na cidade” depois de uma viagem que pode levar mais de 3h de barco. Com pais, avós e bisavós nascidos ali, às margens do rio Tapajós, no Pará, Leonaldo sabe da importância de sobreviver da floresta mantendo-a de pé. A floresta é sua casa, seu sustento, seu mercado, sua farmácia.
Leonaldo e outras 13 mil pessoas da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns vivem do extrativismo sustentável em uma das áreas mais preservadas do Pará – estado campeão de desmatamento na Amazônia. Enquanto as áreas vizinhas são alvo da destruição provocada pela ação de madeireiros, garimpeiros e invasores de terras, a reserva se mantém protegida. Mas não só: a área ganhou vegetação nova entre 2011 e 2015, segundo mapas da Global Forest Watch – em parte com a ajuda de um programa do governo que foi extinto em dezembro de 2017 pelo então presidente Michel Temer.
Em todo o Brasil, o Bolsa Verde ajudou a regenerar 62 mil hectares de áreas de floresta, quase duas vezes o tamanho de Belo Horizonte (Minas Gerais), segundo relatório do governo. Entre a área preservada em unidades de conservação e assentamentos, o programa chegou a abranger beneficiários em 27,6 milhões de hectares, o equivalente a três vezes o tamanho de Portugal. 95% dessa área na Amazônia.
Criado em 2011 pelo governo da então presidente Dilma Rousseff, o Bolsa Verde previa a concessão, a cada três meses, de R$ 300 para famílias em situação de extrema pobreza que vivem em áreas de proteção ou de reserva e que comprovavam produção sustentável. Foi uma das primeiras iniciativas do governo de apoio ao agroextrativismo sustentável no Brasil. Um programa diferente da dinâmica, predominante desde a criação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em 1966 sob a ditadura militar, de conceder incentivos financeiros a quem “ocupasse” a Amazônia.
Com o fim do Bolsa Verde a preservação da floresta ficou comprometida. “Quem tinha um roçado pequeno teve que aumentar de um ano para o outro. As pessoas foram obrigadas a desmatar mais e botar mais fogo para ter uma produção e se manter”, lamenta Leonaldo.
A necessidade de aumentar a área de roçado acontece porque, com máquinas e tratores, é possível plantar durante vários anos no mesmo pedaço de terra. “Já no roçado não, novas áreas são necessárias para o plantio. Não recebemos assistência adequada e apoio do governo nem para produzir nem para vender”, explica. Quem recebia o benefício assinava um termo se comprometendo a não desmatar.
Os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) relativos ao desmatamento confirmam a ajuda do Bolsa Verde na preservação da floresta. Dentro da reserva Tapajós-Arapiuns, o desmatamento era de 2,15 km² anuais em 2011, quando o programa foi lançado. Em 2017, quando o benefício foi extinto, havia baixado para 0,47 km2. Em 2018, já foi perceptível uma leve alta: 0,66 km² desmatados.
Criada em 1998 para proteger a região do avanço de madeireiros, a Resex Tapajós-Arapiuns é a mais populosa do Brasil, com 13 mil moradores espalhados em 75 comunidades extrativistas e indígenas. Ali, cerca cerca de mil famílias recebiam o Bolsa Verde, do total de 76 mil que, em março de 2016, chegaram a ser beneficiados em todo o país – mais da metade deles no Pará.
Na comunidade de Maripá, onde vive Leonaldo, a vida tem seu próprio ritmo, seus próprios tons. As casas dos moradores podem ser tanto de alvenaria rústica quanto de madeira e palha. As áreas de produção respeitam ao ciclo da terra, dos alimentos e da natureza. Com uma organização própria dos povos tradicionais, o uso intensivo de roçado é moderado, com privilégio para o extrativismo sustentável. O Bolsa Verde era um reconhecimento a esse serviço essencial e ancestral.
Para além da preservação da floresta
Além de representar a falta de valorização do estilo de vida sustentável das comunidades tradicionais,, o fim do Bolsa Verde também trouxe retrocessos sociais para os antigos beneficiários. No assentamento Eixo Forte, entre Santarém e Alter do Chão, no Pará, Maria Madalena e Márcia Monteiro conseguiram, com os recursos do programa, investir no roçado e nos custos escolares das crianças.
Hoje, com o fim do benefício e também com cortes no Bolsa Família, é difícil até manter os filhos na escola. “Os cortes tiram a estrutura da família. Muitos acabam saindo da escola e não têm a chance de fazer faculdade por falta de oportunidades, não têm condições”, lamenta Monteiro.
Para Maria Ivanilce Tavares da Silva, que mora com o marido e cinco filhos no assentamento, R$ 100 por mês fazia diferença. O fim do Bolsa Verde obrigou os filhos a viver de bicos, afetou o trabalho na roça e sobrecarregou a família, que hoje vive do que planta e da aposentadoria do marido, Sebastião, de 96 anos. “Era uma ajuda boa. Depois que a bolsa parou, ficamos sobrecarregados”, diz.
No assentamento, onde cerca de 1.400 famílias vivem em torno da produção e da colheita do açaí, do cupuaçu e da mandioca, o Bolsa Verde permitiu investimentos na produção, em freezers para estocar a polpa das frutas, em casas de farinha e em microssistemas de captação de água. Sem o benefício, se viram estagnadas. Em alguns casos, foram obrigadas a retroceder.
“Muita gente se estruturou por causa do Bolsa Verde. As pessoas investiram e depois ficaram sem poder continuar com as melhorias”, conta Ladilson Amaral, diretor do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR) e morador do assentamento. Ele lembra que quando recebiam o benefício, se comprometiam a não desmatar, o que ajudou a levar às comunidades a importância de preservar a natureza em pé.
Em nota, o Incra afirmou que, “apesar de o Programa Bolsa Verde ter sido descontinuado pelo Ministério do Meio Ambiente, o Incra mantém contratos com empresas de assistência técnica e extensão rural para apoio a assentados, incluindo o caso do Eixo Forte”.
Procurado para comentar os impactos do fim do programa, o Ministério do Meio Ambiente não se pronunciou.
A pressão sobre quem preserva a floresta
O Bolsa Verde foi uma tentativa do estado em recompensar o serviço que o agricultor familiar presta ao proteger a floresta nativa, segundo avaliação de Pedro Martins, assessor jurídico da ONG Terra de Direitos em Santarém. “Para as comunidades tradicionais, o fim do benefício deixa um recado claro: elas não tem mais o apoio de políticas públicas, ao mesmo tempo em que atividades lucrativas, mas destrutivas, passam a pressionar as unidades de conservação, o que ameaça a sobrevivência desses povos”, diz Martins.
Neste ano, em que houve desmatamento recorde na Amazônia, as áreas protegidas – unidades de conservação e terras indígenas – também sofreram com a derrubada de floresta. Entre agosto de 2018 e julho de 2019, houve um aumento de 69% do desmatamento unidades federais e de 24% nas estaduais, segundo análise do ISA (Instituto Socioambiental) feita a partir dos dados do Inpe.
No ranking de unidades de conservação federais mais ameaçadas, 40% estão na região do Tapajós: a Floresta Nacional e a APA do Tapajós, a Floresta Nacional do Jamanxim (Flona) do Jamanxim e a Flona de Itaituba, segundo o Imazon.
A região visitada pela reportagem é alvo de queimadas e da ação de grileiros (invasores de terras). Nos arredores do Eixo Forte, um incêndio destruiu o equivalente a 1.600 campos de futebol em setembro deste ano. A Repórter Brasil revelou que a área é alvo da ação de grileiros que contariam com apoio de policiais. O prefeito de Santarém, Nelio Aguiar, disse em áudio enviado ao governador do estado que o incêndio era provocado por pessoas que queriam “vender terreno”.
Outra reserva paraense, a Flona do Jamanxim, também foi atingida pelas queimadas de julho e agosto que chamaram a atenção mundial. A flona foi um dos alvos do ‘Dia do Fogo’, ataque organizado por fazendeiros e empresários de Novo Progresso que triplicou o foco de queimadas na região entre 10 e 11 de agosto deste ano, conforme mostrou outra investigação da Repórter Brasil.
Junto ao fim do programa Bolsa Verde, somam-se medidas tomadas pelo governo Bolsonaro neste ano que comprometem a preservação da Amazônia e colaboraram para o desmatamento recorde, como a redução das fiscalizações ambientais, os cortes orçamentários para o ministério do Meio Ambiente, o questionamento dos dados oficiais sobre desmatamento e a extinção do Fundo Amazônia.
Uma das metas do programa “Mudanças Climáticas” do Ministério do Meio Ambiente é ampliar a capacidade de monitoramento do desmatamento na Amazônia Legal. Em 2019, no entanto, dos R$ 436 milhões autorizados, apenas 9% foram gastos até o fim de novembro, como mostra a análise inédita do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) .
O governo tem também feito cortes a programas de incentivo à agricultura familiar. Além de ter suspendido a reforma agrária no país, o programa “Fortalecimento e Dinamização da Agricultura Familiar” perdeu mais de 25% no orçamento de 2019. Dos R$ 4,7 bilhões previstos, contra R$ 6,19 bilhões em 2018, somente R$ 1,8 bilhão foi efetivamente executado até o momento.Para o ano que vem, o Ministério do Meio Ambiente terá o pior orçamento dos últimos 10 anos anos: R$ 2,7 bilhões, redução de 15% em relação a 2019. “O governo quer acabar com a gente, porque acabando com a floresta e os rios, acaba com a gente. Aquela história de o sapo morre quieto embaixo do pé do boi. É assim que eles querem fazer. Que a gente morra calado”, afirma Raimunda Alves de Assunção, que mora em uma das comunidades na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns. Ela deixou de receber o Bolsa Verde em 2017, sem aviso prévio.