Setor de frutas gera riqueza no Nordeste, mas pouco fica com o trabalhador

Produção de frutas em estados como Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte ajuda país a ser 3º maior produtor de fruta do mundo, mas quem planta e colhe no campo reclama de baixos salários e más condições de trabalho.
Por Antonio Biondi
 22/01/2020

“Os trabalhadores estão com muita depressão, e as empresas acham isso normal”. O alerta é de Rita de Cássia, uma sindicalista que atua em fazendas de frutas no município baiano de Casa Nova, localizado no polo agroindustrial do vale do rio São Francisco.

Entre carregamentos de manga, melão, uva e vinho, enviados para supermercados aqui e no exterior, lideranças de trabalhadores rurais relatam que o mercado de trabalho local, da maneira como está organizado, tem sido incapaz de oferecer salários dignos e boas condições de trabalho.

Em parceria com entidades sindicais, organizações como Oxfam e Repórter Brasil tem se esforçado para pressionar empresas envolvidas com o setor, como supermercados e certificadoras, a promoverem melhorias nas condições de trabalho.

Pernambuco e Bahia, que dividem o polo do vale do São Francisco, são responsáveis por 62% das mangas e por 53% das uvas produzidas no Brasil. O Ceará e o Rio Grande do Norte, onde polos de frutas também se desenvolveram, colhem 75% dos melões.

Empresas que atuam no ramo empregaram cerca de 90 mil pessoas. Porém, metade desses trabalhadores só obtém ocupação durante seis meses no ano e, depois, é demitida.

A situação de trabalhadores safristas é a mais grave, em uma relação de trabalho que se estende por semanas ou poucos meses. A renda mensal média em um ano para quem trabalhou no melão, manga e uva como safrista por seis meses seria de apenas R$ 687,88, R$ 593,50 e R$ 590,96 respectivamente. De acordo com a Pnad (IBGE), esses números os colocam entre os 20% mais pobres do Brasil.

Os dados foram apurados pela equipe da Oxfam Brasil, que lançou a campanha “Frutas doces, vidas amargas” no fim do ano passado. Como pode o Brasil ser o terceiro maior produtor de frutas do mundo, gerando uma renda de R$ 40 bilhões por ano, e não conseguir garantir sequer o salário mínimo para os empregados do setor?

“Verificamos que o salário dos trabalhadores da fruticultura está 44% abaixo do recomendado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho). Nas frutas, a gente viu que a produção dos safristas é muito grande. Mais da metade da mão de obra é safrista e esta metade trabalha seis meses”, destaca Gustavo Ferroni, da Oxfam Brasil.

Debate aberto

O tema foi tratado no seminário “Desafios para a Sustentabilidade na Cadeia de Frutas”, realizado em dezembro em São Paulo, e que recebeu representantes do setor empresarial. Um dos objetivos centrais do encontro foi promover um maior conhecimento aos sindicatos quanto às certificações.

O sucateamento das relações trabalhistas a partir das mudanças nos governos Temer e Bolsonaro, por exemplo, poderia ser melhor enfrentado no caso de haver maior envolvimento das empresas e dos atores responsáveis pelas auditorias e certificações. Uma mudança de perspectiva que pode se refletir, por exemplo, nas negociações coletivas entre empresas e trabalhadores. Em janeiro, algumas dessas negociações já registram importantes rodadas.

No seminário, representantes das empresas Unilever e Tesco apresentaram suas principais ações para trazer sustentabilidade e respeito aos direitos em suas cadeias produtivas. Por outro lado, representantes de organizações sindicais e da sociedade civil, como Contar, Dieese, Fetarn, Fetraern e sindicatos de Juazeiro e Petrolina relataram as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores.

Gyslainne Alline Alves Lima, do sindicato de Casa Nova, detalhou os problemas. “No Vale do São Francisco, muita coisa ali não acontece. Ônibus coletivo é um avanço, mas ele está lotado, com 20, 30 pessoas em pé, quebra no caminho e as pessoas voltam a pé… Quando o sindicato sabe, já foi. Só tem um bebedouro, água gelada não tem. Se a certificadora chega lá e vê o bebedouro, não imagina que no dia a dia, meio-dia, já não tem mais, está seco. Essa ideia da certificadora, da experiência por si só, sem estar com o sindicato, não é válida, pois precisa ter um canal”, comentou.

No debate, vários apontamentos mostraram que a vida dos coletores das doces frutas brasileiras anda para lá de amarga. Há falta de EPI (equipamento de proteção individual) e contato direto com agrotóxico; banheiros são escassos ou há restrição de uso. Sem contar as reclamações constantes de falta de água e de lugar adequado para alimentação. Ferroni também o relatou o ambiente estrutural de medo e de vulnerabilidade, pois os safristas não sabem quando terão emprego novamente.

Distinção de gênero

A apresentação dos representantes da Tesco, Edgar Monge, e da Unilever, Rodolpho Simas, permitiu maior compreensão quanto às políticas internas das empresas. As duas companhias são gigantes mundiais, e registraram no encontro parte de suas metodologias de auditoria e checagem de certificações dentro da cadeia de abastecimento, levantando novos debates.

Monge falou sobre as práticas da rede voltadas à melhora das condições laborais, como a não-permissão de horas excessivas de trabalho e banimento do trabalho infantil. Em países como o México, disse que um ponto sensível é a discriminação por gênero – identificada pela rede em importantes fornecedores no Brasil também. Ao ressaltar a premissa de que a lei local precisa ser cumprida, Monge fez a ressalva de que, em muitos casos, “infelizmente a lei local não protege, por isso o código ética tem de ser respeitado”.

Um dos pontos de maior discussão do dia foi a explanação de Edgar Monge sobre a não obrigatoriedade de diálogo, durante as auditorias, com delegados sindicais. Segundo ele, a Tesco incentiva a formação de comitês de trabalhadores para acompanhar as diligências sem que haja, necessariamente, afiliação sindical.

“É importante ver como avaliar de forma bem rígida os auditores. Tem auditores com 15, 20 anos que trabalham bem, e outros com esse tempo todo trabalhando mal. É importante que a gente entenda a necessidade de uma avaliação interna. Lamento muito que tive de visitar lugares depois de auditorias e me deparei com situações de não-conformidade, coisa que não foi detectada pela auditoria. Muitas das empresas aceitam a desculpa da legislação local”, comentou Monge.

O seminário apontou alguns encaminhamentos nesse campo, como o reforço à empregabilidade das mulheres (que estão mais suscetíveis a contratos de safristas), além de uma maior proximidade e participação dos sindicatos nas auditorias.

O representante do STTR Petrolina, Daniel Saldanha, reforçou a importância de o sindicato ser considerado como o espaço central de representação e diálogo. “Em Petrolina, já tinha repercutido esse relatório (da Oxfam). Acreditamos que vai ser favorável para negociação neste momento”.

Guinada política

Os presentes no seminário destacaram, ainda, que a guinada política vivenciada pelo Brasil nos últimos anos “arrebentou” os trabalhadores – e não resolveu situação dos empresários. José Manoel, o Zezinho do STTR Juazeiro, traçou o registro histórico recente nesse sentido.

“Primeiro, o impeachment da Dilma, isso refletindo na sociedade, e achava que depois disso o processo de desmonte do Temer se reverteria nas eleições, mas o que se configurou foi pior, com o Bolsonaro. Vimos na nossa região os empresários apoiando o Bolsonaro, foi uma loucura. Como agora vamos resolver nossos problemas e nos unir com esses caras que pressionaram os trabalhadores para votar no Bolsonaro? Todas as falas do Bolsonaro eram de acabar com os direitos dos trabalhadores. Para a gente, era uma situação bastante temerosa, por isso esse relatório abriu uma porta muito larga de empoderamento e encorajamento”.

Zezinho celebrou o fato de o encontro promover o “contato com atores como Unilever e Tesco, que estão numa posição bastante estratégica, no meio do processo da compra do produto”. Disse ele: “Se confirmou pra gente que existem realmente as exigências. O consumidor na ponta exige que tenha responsabilidade social e ambiental”.

Para o sindicalista, os trabalhadores devem explorar melhor os canais de denúncias e certificações, o que pode resultar em avanços por melhores condições de trabalho. “Vimos a rigidez do comprador e do consumidor final. Temos que selecionar algumas empresas mais problemáticas e usar os canais de denúncia. Sei que vamos sofrer retaliações”.

Certificação em foco

A importância de se compreender e acompanhar melhor o trabalho das certificadoras também esteve em pauta. “Discutir a certificação é muito importante. A gente sai com a expectativa do que vai fazer em nossas regiões. Cheguei aqui sem perspectiva, sem lenço, sem documento, e saí daqui com tudo, com RG”, celebrou Daniel Saldanha, de Petrolina.

Francisco Joseraldo Medeiros do Vale, da Fetarn, a federação sindical do Rio Grande do Norte, trouxe avaliação semelhante. Para Joseraldo, essa aproximação passa por capacitação – inclusive contratada, junto às certificadoras. “Precisamos chamá-los para fazer essa capacitação. E não é um favor”. O sindicalista ressaltou que a realidade do campo hoje é de trabalhadores que têm entre dois e quatro filhos, casados, e que tiram apenas um salário mínimo em seus empregos. Para Joseraldo, isso permite apenas sobreviver – e o movimento sindical precisa ir além.

Caminho longo

Embora algumas empresas – como as redes já citadas – tenham se disponibilizado a ouvir e buscar saídas para os problemas, ainda há muito pelo que lutar.

“Em Mossoró, na Chapada do Apodi, tem uma questão de resistência das empresas chegarem lá por ser região de agricultura familiar. A gente tenta trabalhar a defesa do território, reforma agrária, mais do que a questão de ser assalariado. Mas, agora, vejo como é importante o sindicato se apropriar das certificações. Vejo por essa relação com a Agrícola Famosa: a Tesco é uma grande compradora de melão e chegar à base e falar ‘olha, essa empresa disse que só compra se a empresa seguir essa série de recomendações’, é muito bom.”, sugeriu Antônio Nilton Bezerra Jr., da CPT RN Oeste.

As conquistas, mesmo com a tentativa de desmanche sindical com as mudanças nas leis trabalhistas, têm partido do coletivo dos trabalhadores em negociação com o patronato.

“No caso da (certificação com o selo) Rainforest Alliance, foi estabelecido na norma que as empresas têm de estabelecer um patamar de salário digno em 10 anos. Me parece uma novidade interessante, pois não é uma conta simples. Para fazer essa discussão não basta somente cobrar do produtor para ele pagar o salário digno. É preciso entender essa cadeia”, observou Marcel Gomes, representante da Repórter Brasil no seminário.

Organizadora do evento, a Oxfam Brasil marcou posição no combate por melhorias globais no trato humano com os trabalhadores.

“Quando a Rita falou da saúde mental, me veio à tona a fala da procuradora Ileana Mousinho, do Rio Grande do Norte, que falou muito da relação dos estudos do impacto dos agrotóxicos com doenças mentais. Devagar, vamos nos apropriando das discussões. Esse diálogo com as certificadoras é muito técnico, mas é preciso popularizar para chegar aos trabalhadores”, disse Marina Marçal, da Oxfam.

Gustavo Ferroni reforçou: “Seria importante que os sindicatos fizessem uma carta para Rainforest, e dizer que tem interesse em participar das auditorias. Dizer ‘sim, queremos ser consultados’. É importante marcar essa posição”.

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