Mais uma ‘boiada’: novo decreto de Salles que reduz proteção da Mata Atlântica aguarda aval de Bolsonaro

Se publicada, medida elaborada pelo Ministério do Meio Ambiente permitirá que áreas equivalentes ao tamanho do Parque Ibirapuera possam ser transformadas em hotéis e resorts sem controle prévio do Ibama. Servidores atribuem mudança a uma pressão do setor imobiliário e hoteleiro
Por Daniel Camargos
 12/06/2020

O Ministério do Meio Ambiente elaborou um decreto, ainda não publicado, que reduz a proteção da Mata Atlântica e facilita a liberação de licenças ambientais para a construção de empreendimentos, como hotéis e condomínios, no bioma mais desmatado do país. A minuta do decreto, à qual a Repórter Brasil teve acesso, foi entregue pelo ministro Ricardo Salles à Casa Civil e aguarda assinatura do presidente Jair Bolsonaro para entrar em vigor. 

A mudança proposta é mais uma “boiada” do ministro, já que é um ato infralegal, ou seja, que pode ser implementado sem a necessidade de um projeto de lei a ser votado pelo Congresso. Depende apenas do aval do presidente. 

A estratégia de afrouxar a legislação ambiental usando atos infralegais foi defendida pelo ministro do Meio Ambiente e veio à tona com a divulgação do vídeo da reunião interministerial de 22 de abril, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). No encontro, Salles pediu um esforço do governo para aproveitar que a imprensa está focada na cobertura da pandemia da covid-19 para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”. 

A minuta enviada por Salles à Casa Civil  propõe retirar a proteção de 9 dos 16 tipos de vegetação do bioma, que foram detalhados e protegidos pelo decreto 6.660 de 2008, que regulamenta a Lei da Mata Atlântica, de 2006. 

Se decreto do Ministério do Meio Ambiente passar, Mata Atlântica poderá perder 100 mil km² de área protegida (Foto: Adriana Mattoso/SMA)

A “nova boiada” de Salles mantém a proteção legal para as formações que são tipicamente florestais e deixa de fora outros tipos de vegetação, como as das ilhas costeiras e oceânicas, as áreas de estepe e savana e campos salinos. O site Direto da Ciência, que também teve acesso à minuta, calculou que essa modificação pode reduzir a proteção em uma área de cerca de 110 mil km², ou 10% da área total do bioma (o equivalente ao tamanho de Cuba)

“É mais uma medida infralegal que ele [Salles] está tornando legal na forma de decreto”, afirma o vice-presidente da Associação Nacional dos Servidores do Meio Ambiente (Ascema), Denis Rivas. Em nota, a associação considera a postura de Salles — explicitada na reunião ministerial — como “oportunismo criminoso”. A avaliação de servidores do Ibama entrevistados pela reportagem é a de que o decreto só não foi assinado ainda porque a declaração do ministro na reunião teve repercussão negativa.

Além disso, o decreto reduz a participação do Ibama na concessão de licenças ambientais para a construção de alguns tipos de empreendimentos na Mata Atlântica. Atualmente, o licenciamento ambiental é conduzido pelos órgãos ambientais dos Estados, mas a legislação prevê que para empreendimentos acima de 50 hectares na Mata Atlântica e de 3 hectares em áreas urbanas do bioma, o licenciamento precisa de anuência do Ibama. A proposta de Salles aumenta o limite das áreas que podem ser licenciadas sem o aval do Ibama, passando de 50 para 150 hectares (na mata) e de 3 para 30 hectares (em áreas urbanas). 

Se o decreto for publicado, áreas de Mata Atlântica equivalentes ao tamanho do Parque Ibirapuera, na capital paulista, podem ser transformadas em hotéis e resorts, por exemplo, somente com o aval das secretarias estaduais. Servidores do Ibama afirmam, em entrevista à Repórter Brasil sob anonimato, que os órgãos dos Estados são mais suscetíveis à pressões políticas e empresariais e que, por isso, a dupla verificação é fundamental para conservação do que resta do bioma.  

“Estão tentando passar a boiada sem ter o ônus de dizer que estão revogando a lei da Mata Atlântica para evitar a repercussão negativa”, afirma a ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. Ela refere-se ao fato de que a minuta que hoje está na Casa Civil altera um dos decretos que regulamentam a lei da Mata Atlântica — sem ter que alterar a lei, o que demandaria aprovação do Congresso. 

Diante das características da Mata Atlântica, que não tem grandes blocos de vegetação contíguos, Araújo entende que a mudança vai reduzir significativamente o número de casos em que o Ibama se manifesta. Ou seja, na sua avaliação, seriam raros os pedidos de licenciamento ambiental com área superior a 150 hectares. Para ela, a dupla verificação, com a secretaria estadual e o Ibama, foi um avanço importante que surgiu com a lei da Mata Atlântica

“Agora é hora de unir esforços para dar de baciada a simplificação regulatória que nós precisamos” , disse Salles na reunião ministerial de 22 de abril (Foto: Marcos Corrêa/PR)

A proposta de Salles surge em um momento que a Mata Atlântica volta a ser alvo de destruição. Entre 2018 e 2019, o desmatamento cresceu 27% na comparação com 2017 e 2018, de acordo com Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e com a Fundação SOS Mata Atlântica. O percentual corresponde a um total de 14.502 hectares, equivalente a metade de Belo Horizonte. No período anterior foram desmatados 11.399 hectares.

O Ministério do Meio Ambiente não confirmou a existência da minuta obtida pela Repórter Brasil. Porém, por meio da Lei de Acesso à Informação, foi possível confirmar que o processo interno que gerou a minuta foi encaminhado para a Casa Civil da Presidência da República. “O assunto em questão encontra-se em análise, ainda não tendo sido concluído”, informou a pasta após solicitação pela Lei de Acesso à Informação. 

Questionado, o Ministério do Meio Ambiente respondeu que: “Quaisquer alterações normativas seguem, sempre, critérios técnicos”. A pasta, contudo não atendeu ao pedido de disponibilizar acesso à íntegra do processo, com os pareceres técnicos, que embasaram  a minuta e tampouco respondeu se a mudança tem relação com o  que foi dito pelo ministro na reunião de 22 de abril. 

A quem interessa a destruição da Mata Atlântica?

Servidores do Ibama e do ICMBio entrevistados pela reportagem, em condição de anonimato, atribuem a redução da proteção da Mata Atlântica a uma pressão do setor imobiliário e hoteleiro, que tem interesse em construir grandes empreendimentos na costa brasileira. 

Após a publicação da reunião interministerial, um grupo de associações publicou um anúncio de página inteira nos principais jornais do país defendendo o ministro, com o título: “No meio ambiente, a burocracia também devasta”. Entre as 88 entidades signatárias, está a Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit Brasil), que congrega redes de hotéis, construtoras e incorporadoras imobiliárias. 

Em abril, outro decreto de Salles anistiou as multas de desmatadores do bioma, mas governo recuou após repercussão negativa (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Em outubro de 2019, Salles foi o principal convidado de um seminário realizado pela entidade em Goiânia (GO). Na ocasião, o ministro falou aos empresários do setor sobre o compromisso do governo federal para simplificar processos. “Vemos hoje que quem fica com o excesso de regulação e de controle, muitas vezes irracional, é quem está formal, enquanto para quem está informal é um vale tudo. O resultado disso é uma série de empreendimentos que poderiam estar avançando, cuidando do meio ambiente e gerando empregos aguardando anos para ter uma licença”, disse o ministro, segundo noticiou o site da Adit Brasil.   

O apoio das 88 organizações às citações do ministro na reunião geraram repercussão nas redes sociais, o que levou a um racha entre empresas e associações. O resort Beach Park e a rede de hotéis Bourboun, por exemplo, comunicaram a saída da Adit Brasil. 

Após a crise, a Adit Brasil divulgou nota explicando que não defende o desmatamento, “muito menos a destruição da Amazônia”. Disse também que condena a “burocratização que se utiliza de uma falsa bandeira ecológica para o travamento de atividades econômicas no país”. 

Procurada diversas vezes por telefone e por e-mail e questionada sobre a proposta do Ministério do Meio Ambiente de reduzir a proteção ambiental e flexibilizar o licenciamento na Mata Atlântica, a Adit Brasil não respondeu. 

“Esse decreto é o típico caso infralegal para passar de baciada”, afirma o diretor de políticas públicas da SOS Mata Atlântica, Mário Mantovani, em referência a outra fala do ministro Salles na reunião ministerial. Ao argumentar sobre a necessidade dos decretos infralegais, o ministro disse: “Agora é hora de unir esforços para dar de baciada a simplificação regulatória que nós precisamos”. Mantovani entende que os empreendimentos que vão se beneficiar com essas mudanças são “setores atrasados do turismo e do mercado imobiliário”. 

Porteira aberta

A minuta do Meio Ambiente, que ainda aguarda aval da Casa Civil, não é o primeiro ato de Salles que reduz a proteção da Mata Atlântica. Em 6 de abril, já em meio à pandemia do novo coronavírus, o ministério publicou um despacho que possibilitava a anulação de multas por desmatamento ilegal na Mata Atlântica aplicadas até 2008. Ficou conhecida como uma anistia para os desmatadores do bioma. 

A medida determinava que as regras para fiscalização adotadas fossem as previstas no Código Florestal, lei de 2012, que é menos rigorosa do que a Lei da Mata Atlântica, de 2006. Assim, áreas de preservação permanente degradadas, invadidas e desmatadas até 2008 poderiam ser regularizadas e usadas para a agropecuária, por exemplo. 

Entre 2018 e 2019, o desmatamento na Mata Atlântica cresceu 27% na comparação com 2017 e 2018, de acordo com Inpe (Foto: Adriana Mattoso/SMA)

Essa mudança chegou a ser mencionada por Salles na reunião interministerial de 22 de abril. “Hoje já está nos jornais dizendo que vão entrar com com ações judiciais e ação civil pública no Brasil inteiro contra a medida”, reclamou o ministro durante o encontro, ressaltando que a mudança foi feita a pedido do Ministério da Agricultura e Pecuária.

Foi o que aconteceu. Ações civis públicas foram impetradas pelos Ministérios Públicos dos 17 estados onde o bioma está presente. Em 4 de junho, Salles revogou o decreto. A revogação, contudo, veio acompanhada de uma manobra. O governo, por meio da Advocacia-Geral da União, apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade para validar a anistia aos desmatadores. 

“Ele está querendo passar a boiada no Supremo”, avalia a ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, que escreveu um artigo sobre a manobra. 

As medidas que miram a Mata Atlântica se somam a outros atos infralegais já realizados pelo Ministério do Meio Ambiente durante o governo de Jair Bolsonaro. Entre elas, a liberação de exportação de madeira nativa sem autorização do Ibama e a reestruturação do ICMBio, que reduziu a estrutura e intensificou a militarização do órgão, com nomeação de policiais militares para postos importantes. Além dessas alterações, feitas por meio de decretos, Salles exonerou o então diretor de fiscalização do Ibama Olivaldi Azevedo após uma série de operações do órgão contra garimpeiros que atuavam em terras indígenas.

Essa reportagem também foi publicada no UOL

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