O Ministério do Meio Ambiente elaborou um decreto, ainda não publicado, que reduz a proteção da Mata Atlântica e facilita a liberação de licenças ambientais para a construção de empreendimentos, como hotéis e condomínios, no bioma mais desmatado do país. A minuta do decreto, à qual a Repórter Brasil teve acesso, foi entregue pelo ministro Ricardo Salles à Casa Civil e aguarda assinatura do presidente Jair Bolsonaro para entrar em vigor.
A mudança proposta é mais uma “boiada” do ministro, já que é um ato infralegal, ou seja, que pode ser implementado sem a necessidade de um projeto de lei a ser votado pelo Congresso. Depende apenas do aval do presidente.
A estratégia de afrouxar a legislação ambiental usando atos infralegais foi defendida pelo ministro do Meio Ambiente e veio à tona com a divulgação do vídeo da reunião interministerial de 22 de abril, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). No encontro, Salles pediu um esforço do governo para aproveitar que a imprensa está focada na cobertura da pandemia da covid-19 para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.
A minuta enviada por Salles à Casa Civil propõe retirar a proteção de 9 dos 16 tipos de vegetação do bioma, que foram detalhados e protegidos pelo decreto 6.660 de 2008, que regulamenta a Lei da Mata Atlântica, de 2006.
A “nova boiada” de Salles mantém a proteção legal para as formações que são tipicamente florestais e deixa de fora outros tipos de vegetação, como as das ilhas costeiras e oceânicas, as áreas de estepe e savana e campos salinos. O site Direto da Ciência, que também teve acesso à minuta, calculou que essa modificação pode reduzir a proteção em uma área de cerca de 110 mil km², ou 10% da área total do bioma (o equivalente ao tamanho de Cuba)
“É mais uma medida infralegal que ele [Salles] está tornando legal na forma de decreto”, afirma o vice-presidente da Associação Nacional dos Servidores do Meio Ambiente (Ascema), Denis Rivas. Em nota, a associação considera a postura de Salles — explicitada na reunião ministerial — como “oportunismo criminoso”. A avaliação de servidores do Ibama entrevistados pela reportagem é a de que o decreto só não foi assinado ainda porque a declaração do ministro na reunião teve repercussão negativa.
Além disso, o decreto reduz a participação do Ibama na concessão de licenças ambientais para a construção de alguns tipos de empreendimentos na Mata Atlântica. Atualmente, o licenciamento ambiental é conduzido pelos órgãos ambientais dos Estados, mas a legislação prevê que para empreendimentos acima de 50 hectares na Mata Atlântica e de 3 hectares em áreas urbanas do bioma, o licenciamento precisa de anuência do Ibama. A proposta de Salles aumenta o limite das áreas que podem ser licenciadas sem o aval do Ibama, passando de 50 para 150 hectares (na mata) e de 3 para 30 hectares (em áreas urbanas).
Se o decreto for publicado, áreas de Mata Atlântica equivalentes ao tamanho do Parque Ibirapuera, na capital paulista, podem ser transformadas em hotéis e resorts, por exemplo, somente com o aval das secretarias estaduais. Servidores do Ibama afirmam, em entrevista à Repórter Brasil sob anonimato, que os órgãos dos Estados são mais suscetíveis à pressões políticas e empresariais e que, por isso, a dupla verificação é fundamental para conservação do que resta do bioma.
“Estão tentando passar a boiada sem ter o ônus de dizer que estão revogando a lei da Mata Atlântica para evitar a repercussão negativa”, afirma a ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. Ela refere-se ao fato de que a minuta que hoje está na Casa Civil altera um dos decretos que regulamentam a lei da Mata Atlântica — sem ter que alterar a lei, o que demandaria aprovação do Congresso.
Diante das características da Mata Atlântica, que não tem grandes blocos de vegetação contíguos, Araújo entende que a mudança vai reduzir significativamente o número de casos em que o Ibama se manifesta. Ou seja, na sua avaliação, seriam raros os pedidos de licenciamento ambiental com área superior a 150 hectares. Para ela, a dupla verificação, com a secretaria estadual e o Ibama, foi um avanço importante que surgiu com a lei da Mata Atlântica.
A proposta de Salles surge em um momento que a Mata Atlântica volta a ser alvo de destruição. Entre 2018 e 2019, o desmatamento cresceu 27% na comparação com 2017 e 2018, de acordo com Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e com a Fundação SOS Mata Atlântica. O percentual corresponde a um total de 14.502 hectares, equivalente a metade de Belo Horizonte. No período anterior foram desmatados 11.399 hectares.
O Ministério do Meio Ambiente não confirmou a existência da minuta obtida pela Repórter Brasil. Porém, por meio da Lei de Acesso à Informação, foi possível confirmar que o processo interno que gerou a minuta foi encaminhado para a Casa Civil da Presidência da República. “O assunto em questão encontra-se em análise, ainda não tendo sido concluído”, informou a pasta após solicitação pela Lei de Acesso à Informação.
Questionado, o Ministério do Meio Ambiente respondeu que: “Quaisquer alterações normativas seguem, sempre, critérios técnicos”. A pasta, contudo não atendeu ao pedido de disponibilizar acesso à íntegra do processo, com os pareceres técnicos, que embasaram a minuta e tampouco respondeu se a mudança tem relação com o que foi dito pelo ministro na reunião de 22 de abril.
A quem interessa a destruição da Mata Atlântica?
Servidores do Ibama e do ICMBio entrevistados pela reportagem, em condição de anonimato, atribuem a redução da proteção da Mata Atlântica a uma pressão do setor imobiliário e hoteleiro, que tem interesse em construir grandes empreendimentos na costa brasileira.
Após a publicação da reunião interministerial, um grupo de associações publicou um anúncio de página inteira nos principais jornais do país defendendo o ministro, com o título: “No meio ambiente, a burocracia também devasta”. Entre as 88 entidades signatárias, está a Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit Brasil), que congrega redes de hotéis, construtoras e incorporadoras imobiliárias.
Em outubro de 2019, Salles foi o principal convidado de um seminário realizado pela entidade em Goiânia (GO). Na ocasião, o ministro falou aos empresários do setor sobre o compromisso do governo federal para simplificar processos. “Vemos hoje que quem fica com o excesso de regulação e de controle, muitas vezes irracional, é quem está formal, enquanto para quem está informal é um vale tudo. O resultado disso é uma série de empreendimentos que poderiam estar avançando, cuidando do meio ambiente e gerando empregos aguardando anos para ter uma licença”, disse o ministro, segundo noticiou o site da Adit Brasil.
O apoio das 88 organizações às citações do ministro na reunião geraram repercussão nas redes sociais, o que levou a um racha entre empresas e associações. O resort Beach Park e a rede de hotéis Bourboun, por exemplo, comunicaram a saída da Adit Brasil.
Após a crise, a Adit Brasil divulgou nota explicando que não defende o desmatamento, “muito menos a destruição da Amazônia”. Disse também que condena a “burocratização que se utiliza de uma falsa bandeira ecológica para o travamento de atividades econômicas no país”.
Procurada diversas vezes por telefone e por e-mail e questionada sobre a proposta do Ministério do Meio Ambiente de reduzir a proteção ambiental e flexibilizar o licenciamento na Mata Atlântica, a Adit Brasil não respondeu.
“Esse decreto é o típico caso infralegal para passar de baciada”, afirma o diretor de políticas públicas da SOS Mata Atlântica, Mário Mantovani, em referência a outra fala do ministro Salles na reunião ministerial. Ao argumentar sobre a necessidade dos decretos infralegais, o ministro disse: “Agora é hora de unir esforços para dar de baciada a simplificação regulatória que nós precisamos”. Mantovani entende que os empreendimentos que vão se beneficiar com essas mudanças são “setores atrasados do turismo e do mercado imobiliário”.
Porteira aberta
A minuta do Meio Ambiente, que ainda aguarda aval da Casa Civil, não é o primeiro ato de Salles que reduz a proteção da Mata Atlântica. Em 6 de abril, já em meio à pandemia do novo coronavírus, o ministério publicou um despacho que possibilitava a anulação de multas por desmatamento ilegal na Mata Atlântica aplicadas até 2008. Ficou conhecida como uma anistia para os desmatadores do bioma.
A medida determinava que as regras para fiscalização adotadas fossem as previstas no Código Florestal, lei de 2012, que é menos rigorosa do que a Lei da Mata Atlântica, de 2006. Assim, áreas de preservação permanente degradadas, invadidas e desmatadas até 2008 poderiam ser regularizadas e usadas para a agropecuária, por exemplo.
Essa mudança chegou a ser mencionada por Salles na reunião interministerial de 22 de abril. “Hoje já está nos jornais dizendo que vão entrar com com ações judiciais e ação civil pública no Brasil inteiro contra a medida”, reclamou o ministro durante o encontro, ressaltando que a mudança foi feita a pedido do Ministério da Agricultura e Pecuária.
Foi o que aconteceu. Ações civis públicas foram impetradas pelos Ministérios Públicos dos 17 estados onde o bioma está presente. Em 4 de junho, Salles revogou o decreto. A revogação, contudo, veio acompanhada de uma manobra. O governo, por meio da Advocacia-Geral da União, apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade para validar a anistia aos desmatadores.
“Ele está querendo passar a boiada no Supremo”, avalia a ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, que escreveu um artigo sobre a manobra.
As medidas que miram a Mata Atlântica se somam a outros atos infralegais já realizados pelo Ministério do Meio Ambiente durante o governo de Jair Bolsonaro. Entre elas, a liberação de exportação de madeira nativa sem autorização do Ibama e a reestruturação do ICMBio, que reduziu a estrutura e intensificou a militarização do órgão, com nomeação de policiais militares para postos importantes. Além dessas alterações, feitas por meio de decretos, Salles exonerou o então diretor de fiscalização do Ibama Olivaldi Azevedo após uma série de operações do órgão contra garimpeiros que atuavam em terras indígenas.
Essa reportagem também foi publicada no UOL