É alta madrugada quando um estrondo rompe o silêncio na floresta. A pequena Amanda, de 3 anos, com o coração disparado, corre para a rede do avô. “Ela sempre se assusta quando jogam essa âncora. Depois disso, ninguém mais dorme na comunidade”. Quem fala é Amarildo Santos de Jesus, liderança na comunidade de Boa Vista, uma das dezenas de remanescentes de quilombo no município paraense de Oriximiná.
O barulho que assombra a neta de Amarildo pode surgir a qualquer momento, sempre que um transatlântico ancora no porto da Mineração Rio do Norte (MRN) para buscar o minério arrancado do solo amazônico e leva-lo até os EUA, Canadá, China, Europa ou as metalúrgicas nacionais de Barcarena, também no Pará, ou São Luís, no Maranhão. A MRN é a quarta maior produtora mundial de bauxita, rocha rica em alumínio, utilizado na fabricação de latas, computadores, aviões, carros e outros produtos.
Instalada a apenas 500 metros de Boa Vista na década de 1970, a mineradora transformou o estilo de vida da comunidade. Os quilombolas tiveram boa parte de seu território expropriado e viram a rica biodiversidade da região sofrer impactos irreversíveis. “A mineração fez a comunidade pensar que é igual uma cidade. Se a gente quer comer uma fruta, tem que comprar. Até farinha a gente compra, porque ela [a mineradora] foi tirando isso da gente”, constata Amarildo.
Destituídos dos recursos que asseguravam o meio de vida tradicional, há tempos os quilombolas trocaram os afazeres na roça e as horas na mata à espreita de uma caça pelo trabalho de varrer, limpar, recolher o lixo e cuidar do jardim na vila industrial. Organizados em cooperativas, eles compõem um pequeno exército de mão-de-obra barata, cuja força de trabalho é remunerada com um salário mínimo por mês (R$ 1.045,00). Hoje, 70% dos moradores do quilombo Boa vista dependem dos empregos gerados pela MRN, e poucos são os diretamente contratados pela mineradora, em cargos operacionais ou de gestão.
Um histórico de assimetrias
A história da mineração em Oriximiná é marcada por conflitos com as comunidades tradicionais desde o primeiro momento. “Eles chegavam com algum dinheiro e diziam: toma, isso aqui é teu, você vai ter que desocupar o território porque nós vamos precisar dessa área”, conta Amarildo. Em artigo sobre os conflitos socioambientais na região do Trombetas, Rosa Acevedo Marin, professora da Universidade Federal do Pará, diz que mais de 90 famílias tiveram que se deslocar da área reservada pela MRN.
E não só: os moradores de Boa Vista perderam também o acesso aos castanhais e lagos de onde vinha parte do sustento. Com muita persistência, conseguiram assegurar o domínio sobre o Igarapé da Água Fria, hoje divisa natural entre a comunidade e Porto Trombetas – a vila que funciona como sede da MRN. “Eu tinha um tio, Zezinho Ferreira, que lutou muito quando a empresa cercou o igarapé”, relembra Amarildo. “Ele juntava ferramentas, como machados e terçados, e chamava os amigos para cortar o arame farpado. Fez isso inúmeras vezes até a mineradora desistir.” No verão, um dos trechos do Água Fria é a principal fonte de lazer da comunidade.
Outros trechos do igarapé, no entanto, foram soterrados pela lama que escorria da vila industrial. José dos Santos, um dos moradores mais antigos do quilombo, evoca uma cena cotidiana para ilustrar como a presença da mineradora logo se tornou absoluta para a comunidade: “Nós colocávamos a louça para secar no jirau, e em poucos minutos ela ficava coberta de pó vermelho”. E rapidamente a bauxita se espalhou pelas fontes hídricas da região: “quando eles abafaram a poeira, veio a lama. Vinha na enxurrada, saía pro rio, saía pro Igarapé da Água Fria, saía pro Lago do Batata, que era o lago onde nós pescávamos”.
O Lago Batata tornou-se ícone de como grandes empreendimentos na floresta podem acarretar o extermínio de um ecossistema. “Embora a construção de barragens de rejeitos já fosse prática comum entre as empresas de mineração desde a década de 1950, o projeto de exploração de bauxita em Oriximiná previa o descarte da lama diretamente no ambiente natural”, explica o geógrafo Luiz Jardim, professor da Universidade Federal Fluminense que há mais de 15 anos pesquisa a região.
A empresa começou a lançar os rejeitos no Lago Batata a partir de 1979 e, em 10 anos, depositou cerca de 24 milhões de toneladas de sólidos no fundo do lago — o equivalente a quase o dobro do volume da barragem da Vale que rompeu em Brumadinho, em 2019. “É o maior desastre industrial já ocorrido na Amazônia”, afirma Jardim.
Só em 1989, após denúncias sobre o assoreamento do lago alcançarem repercussão internacional, foi que a MRN construiu sua primeira barragem. “A mineração é acusada de ter praticado um crime ambiental. Eu quero deixar claro que, hoje, uma conduta dessa natureza é inadmissível sob qualquer aspecto. Mas no passado era permitido”, defende-se o diretor de sustentabilidade da companhia, Vladimir Moreira, ao fazer referência à inexistência de legislação sobre licenciamento ambiental de grandes obras no Brasil antes de 1981. A MRN já fez algumas tentativas de recuperação do Lago Batata, sem muitos progressos, e Moreira admite a impossibilidade de retorno ao estado original.
Segundo a MRN, o rejeito acumulado no fundo do lago é composto apenas por argila, areia e água. “Não há qualquer adição de produtos químicos”, complementa a engenheira da empresa, Marcela Pelegrini. Entretanto, o pesquisador Marcelo Lima, do Instituto Evandro Chagas, responsável pela análise da água de diversos rios do estado do Pará supostamente contaminados por empreendimentos minerários, levanta uma discussão: “A MRN afirma que o rejeito dela seria inerte, mas o que é um resíduo inerte? Não contém elementos tóxicos? Existem lá elementos que são tóxicos, sim, como chumbo, arsênio, mercúrio”.
Alheios a esse debate, os moradores do Lago Batata convivem com intensas coceiras e alergias. Os casos se agravam à medida que a chuva escasseia e a superfície d’água se aproxima da espessa camada de lama que cobre o leito. É também na estação seca que uma triste cena se repete todos os anos: “Se vocês tivessem vindo no verão, iam ver jacaré, tracajá, tudo preso na lama. Eles não conseguem sair e morrem lá”, descreve Isaías Oliveira, morador que testemunhou o processo de transformação do Batata.
É possível compensar a perda de um território?
No escritório da MRN, o diretor de sustentabilidade elenca uma série de ações implementadas para mitigar os impactos causados pela mineração, entre elas a geração de renda e o acesso a saúde e à educação. “Talvez a que eu tenha maior orgulho seja o fato de a escola onde estudam os filhos dos funcionários da Mineração Rio do Norte receber também os alunos quilombolas”, diz Moreira, ressaltando a importância da medida diante da ausência de escolas de nível médio nas comunidades.
Em Boa Vista, porém, Carlene Printes, egressa do colégio de Porto Trombetas, diz trazer lembranças duras da passagem pela instituição. “Foi o período mais sofrido da minha vida.” A jovem, hoje estudante universitária em Belém, chora ao relatar os episódios de racismo de que foi vítima. O cabelo crespo, o formato do nariz, tudo era motivo de chacota na escola de brancos que “acolhia” os vizinhos pretos. “O mais difícil era ver professores e coordenadores minimizando os fatos. Ninguém fazia nada.”
Crítica ao assimétrico toma-lá-dá-cá imposto pela empresa, Printes emenda: “A que preço a gente tem essa educação de qualidade? A gente não sabe pescar. Eu tenho 31 anos e, se me derem uma linha, um caniço, alguma coisa pra pescar, eu não sei. Eu não sei plantar, eu não sei caçar porque essa empresa tomou tudo isso de nós. A gente não tem território pra isso”, desabafa.
Como boa parte da comunidade hoje depende dos empregos vinculados à MRN, a antropóloga Lúcia Andrade, da Comissão Pró-Índio de São Paulo, expressa preocupação com o que pode ocorrer quando as reservas minerais se esgotarem: “A MRN tem uma série de programas com essa população, mas não vejo, até o momento, uma discussão ou medidas mais consistentes para enfrentar a questão que é: como ficará o futuro dessa comunidade quando esses empregos não existirem mais?”.
O futuro sem mineração, no entanto, pode demorar para chegar. Segundo a MRN, a exaustão dos platôs atuais está prevista para 2025. Há ainda cinco novas minas que devem estender a exploração por duas décadas, além de outras áreas para serem licenciadas.
O maior empecilho para que a empresa permaneça mais tempo em Oriximiná está nos direitos conquistados pelos quilombolas nos últimos anos. Entre eles, a necessidade de consulta prévia, livre e informada, estabelecida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A norma determina que um empreendimento com potencial para impactar comunidades tradicionais somente pode ser levado adiante com o consentimento de seus habitantes. Os quilombolas de Oriximiná foram os primeiros no Brasil a conquistar a titulação coletiva de suas terras. O direito, reconhecido pela Constituição de 1988, conecta o passado colonial escravista ao presente de concentração fundiária do país.
Rio acima rumo à liberdade
Os antepassados dos quilombolas de Oriximiná começaram a ocupar as margens do Rio Trombetas em meados do século 18, num movimento que fraturou a estrutura escravocrata do Pará. “Meus avós e meus bisavós chegaram a ser escravos. Eles fugiram de lá das fazendas de Santarém e vieram pra cá pro Trombetas pra se esconder”, conta José dos Santos. De acordo com o historiador Eurípedes Funes, num primeiro momento, as pessoas escravizadas foram se refugiar para além de um trecho encachoeirado do rio, de difícil navegação, que funcionava como uma barreira natural contra as expedições punitivas que tentavam recapturá-las.
Antes mesmo do fim da escravidão, muitas comunidades já haviam se deslocado da região encachoeirada que Funes chamou de “águas bravas” para se estabelecer no cenário do rio manso. E foi ali que novas ameaças surgiram durante o governo militar, na forma de exploração mineral e de políticas preservacionistas que não levaram em consideração a presença dos quilombolas naquelas matas. “O Mimi Viana [compositor local] diz na música dele que não tem mais tronco, não tem mais chicote nem candeia na mão, mas a escravidão não acabou. Só que agora eles já usam uma escravidão diferente. Em vez de botar a candeia na mão da gente, eles ficam humilhando. Como nós, por exemplo”, conclui Santos, ao referir-se à dificuldade para obter as demandas básicas feitas à mineração.
Energia e saneamento – um lapso de 40 anos
Naquela porção isolada da Amazônia, Porto Trombetas e Boa Vista coexistem em condições muito contrastantes. Com suas luzes, supermercados, agências bancárias, escolas de inglês, correios, restaurantes, clubes, academias, hospital e até aeroporto, a company town, com cerca de 6.500 moradores, empresta ares de sofisticada urbanização à floresta.
A meio quilômetro dali, as casas erguidas entre as picadas de terra batida em Boa Vista não têm banheiro, e a água só chegou às torneiras em 2019. Durante as duas horas de entrevista concedida por Amarildo de Jesus, a conversa foi interrompida muitas vezes. Queixas de toda ordem apresentavam-se ao líder comunitário porque há 30 dias a comunidade estava sem energia elétrica por conta de um gerador quebrado. “Nós estamos sofrendo aqui há 40 anos e eles não têm coragem de puxar a rede de energia pra cá. Não dá mil metros de distância”, indigna-se.
Em defesa da MRN, Moreira diz não ter dúvidas de que questões como o saneamento básico serão abordadas nos processos de oitiva que a empresa vem estabelecendo com as comunidades quilombolas. Ele afirma que as principais queixas contra a mineração são, na verdade, relativas à ausência do Estado. “A questão é: como trazer o poder público para essa discussão? Porque a mineração não é o substituto do poder público, e não será.”
A reportagem entrou em contato com o prefeito de Oriximiná, Antonio Odinélio da Silva, que não respondeu aos reiterados pedidos de entrevista. O município, de 73 mil habitantes, recebeu no ano passado quase 37 milhões de Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), um imposto pago pelas mineradoras à União, aos estados e aos municípios onde operam.
Apesar de receber participação nos resultados da exploração de bauxita desde 1992, quando a CFEM foi implementada, Oriximiná ainda ostenta baixos índices de desenvolvimento, segundo o censo realizado pelo IBGE em 2010. Enquanto a renda média per capita mensal do país na ocasião era de R$ 668, a de Oriximiná estava em R$ 276. O valor também é menor se comparado aos de outros municípios paraenses abastecidos com recursos da CFEM, como Barcarena (R$ 358) e Paragominas (R$ 372).
Após elencar inúmeros problemas nunca solucionados pelo poder público ou pela MRN, Amarildo observa o imenso navio que trafega diante da comunidade. “Esse desenvolvimento, nós só vemos passar, fica todo para a empresa”, comenta.
Já a covid-19, cujos primeiros casos confirmados na região, em 22 de abril, foram levados por um funcionário da MRN e familiares recém-chegados a Porto Trombetas, não tardou a aportar em Boa Vista. O boletim divulgado pela empresa em 6 de junho contabilizava 176 casos da doença e 394 em investigação. Entre as infecções confirmadas, oito são de moradores da comunidade.
Há, entre os quilombolas, um claro temor de que os efeitos da pandemia sigam a mesma lógica da desigualdade que sempre marcou a relação entre as vizinhas Boa Vista e Porto Trombetas. “A gente percebe que os casos estão se espalhando rapidamente. Tem muita gente com os sintomas aqui na comunidade”, relatou, por telefone, o líder comunitário. Numa tentativa de conter o avanço da doença, Amarildo solicitou que a MRN realizasse uma testagem ampla entre os moradores de Boa Vista, mas teve o pedido recusado, sob a alegação de que não há testes suficientes. Antes de encerrar a comunicação, ele fez um último desabafo: “Como sempre, nós ficamos só com as perdas”.
*Colaborou Hugo Gravina Affonso
Esta reportagem foi originalmente publicada na Mongabay