O Brasil já garantiu ao menos 220 milhões de doses de duas vacinas em teste no país para a covid-19. Desenvolvidas pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, e pela empresa chinesa Sinovac, elas serão fabricadas no Brasil pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan caso se mostrem seguras e eficientes contra o novo coronavírus. A quantidade seria suficiente para imunizar 160 milhões de brasileiros ao longo de 2021, começando em janeiro.
Essa, pelo menos, é a promessa do Ministério da Saúde e do governo de São Paulo, que anunciaram, respectivamente, a produção de 100 milhões de doses da “vacina de Oxford” pela Fiocruz (em parceria com a farmacêutica Astrazeneca), e 120 milhões da “vacina da China” pelo Butantan (com a Sinovac, que imuniza com duas doses). Os acordos injetaram ânimo na população e se tornaram uma cartada política em meio à maior crise de saúde em 100 anos. Pouco se fala, no entanto, das dificuldades que os projetos têm pela frente.
A Repórter Brasil conversou com 12 especialistas em vacinas para avaliar os acordos e discutir a capacidade de o Brasil se tornar independente na produção das doses dentro de um ano, como prometem Fiocruz e Butantan. Todos elogiaram os laboratórios públicos e destacaram que as parcerias dão vantagem ao Brasil na disputa mundial pelas doses. Alguns deles, no entanto, questionam as promessas feitas até agora.
Os entraves começam no fato de que as vacinas podem demorar a ser aprovadas, mas não param por aí. Pelos acordos de transferência de tecnologia firmados até agora, em uma primeira fase o Brasil importará o ingrediente farmacêutico ativo (IFA, matéria-prima das vacinas) e, nas primeiras 220 milhões de doses, os laboratórios brasileiros irão só “envasar” o produto. Depois disso é que aprenderemos a desenvolver a matéria-prima e dominar todo o processo produtivo.
É aí que as dificuldades se intensificam. Isso porque as fábricas brasileiras precisam ser adaptadas para o envasamento e para a produção da matéria-prima – e não se sabe quanto tempo isso vai levar. Dessa forma, seremos inicialmente dependentes da importação da matéria-prima – e submetidos assim a uma possível guerra comercial entre países. A disputa por máscaras, respiradores e remédios na pandemia mostrou como é arriscado depender de produtos vindos de fora.
Para fugir dessa dependência, os dois laboratórios precisam aprender a fabricar o insumo por conta própria, mas essa etapa da transferência de tecnologia é a mais desafiadora, principalmente no caso da vacina de Oxford, que utiliza uma técnica inovadora jamais aplicada comercialmente – a mesma adotada pela vacina da Rússia, alvo de interesse do governo do Paraná.
‘A previsão das companhias farmacêuticas é ultraotimista’, diz Ricardo Gazzinelli, pesquisador da Fiocruz Minas
“Uma das partes mais complicadas realmente é a produção”, afirma Ricardo Gazzinelli, pesquisador da Fiocruz Minas e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas. “As companhias farmacêuticas querem chegar rapidamente com esse produto no mercado. Eu posso estar enganado, mas na minha opinião a previsão delas é ultraotimista”, diz ele, que chefia o estudo de uma vacina brasileira para covid-19 – e não tem envolvimento com o projeto de Oxford.
“Na hora que uma vacina for aprovada, haverá demanda para todos os insumos para muitos lugares do mundo. Será que vai ter insumos suficientes para produzir toda a quantidade de vacina necessária?”, questiona a pesquisadora Luciana de Cerqueira Leite, do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto Butantan.
Entenda a seguir as dificuldades para tirar os dois projetos do papel. O levantamento não considera a vacina russa, sobre a qual ainda não foram publicados estudos científicos.
Fábricas brasileiras terão que ser adaptadas
Tanto Fiocruz quanto Butantan precisam reformar suas fábricas não apenas para envasar as vacinas da covid-19, mas sobretudo para a produção da matéria-prima. Essas adaptações podem atrasar a previsão de iniciar a vacinação em janeiro.
A Fiocruz, que começou o ano com um corte de R$ 300 milhões no orçamento, convenceu o governo federal a gastar quase R$ 2 bilhões para comprar a tecnologia de Oxford e reformar sua fábrica de vacinas. Só na reforma serão gastos R$ 95,6 milhões. Além de viabilizar a nova vacina, a Fiocruz usará os recursos para ampliar sua capacidade, já que sua fábrica está no limite.
‘Nossas fábricas estão no topo [da capacidade]’, afirma Akira Homma, ex-presidente da Fiocuz
“Nossas fábricas de processamento final estão no topo [da capacidade]”, disse Akira Homma, assessor científico e ex-presidente da Fiocruz, em entrevista concedida à Repórter Brasil em fevereiro, antes da pandemia.
Isso aconteceu em razão das diversas vacinas incorporadas nos últimos anos na Fiocruz (como as de rotavírus, pneumocócica e tetraviral). Além disso, as vacinas de febre amarela e sarampo tiveram aumento na produção em razão dos surtos recentes das doenças em São Paulo.
Marco Krieger, vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, diz que os problemas foram solucionados com a ampliação dos turnos de trabalho, e que a Fiocruz será capaz de processar 40 milhões de doses mensais da vacina de Oxford “sem comprometer nenhum dos outros projetos”.
Já no caso do Butantan, a adaptação da fábrica para o envase da vacina chinesa será mais simples, já que se trata de uma tecnologia dominada pelo instituto. “O Butantan tem uma estrutura produtiva que não está adaptada para essa vacina [da covid-19], então ela precisa ser adaptada para a produção em grande quantidade”, disse em coletiva de imprensa, no início de julho, o diretor do Butantan Dimas Covas.
A maior dificuldade para o instituto será reformar a fábrica para produção da matéria-prima. A expectativa é gastar R$ 130 milhões na empreitada a partir de doações privadas, mas os recursos ainda não chegaram.
Dependência da matéria-prima pode levar a guerra comercial
Para começar a produzir as ampolas, é preciso receber a matéria-prima. Enquanto o Butantan aguarda a parceira Sinovac construir sua fábrica para enviar os primeiros carregamentos, a Fiocruz ainda não sabe de onde virão as primeiras toneladas do concentrado da vacina de Oxford.
A Fiocruz e a Astrazeneca (que tem os direitos de produção da vacina) reconheceram à Repórter Brasil que a questão ainda não foi definida. O problema, neste caso, é que podemos enfrentar uma disputa comercial entre países pela matéria-prima da vacina, que será fabricada em diferentes lugares do mundo.
A Astrazeneca já vendeu pelo menos 1,2 bilhão de doses da vacina de Oxford, sendo 800 milhões para países ricos, 100 milhões para o Brasil e 300 milhões para o Gavi – uma aliança internacional que fornece vacinas a países pobres. Apesar disso, a multinacional não irá produzir uma só ampola. Ao invés de reformar sua própria fábrica, a empresa optou por fechar parcerias com laboratórios de outros países, incluindo os Estados Unidos e a Índia.
Os dois países se destacaram no início da pandemia por dificultar a saída de produtos médicos de seus territórios. O presidente norte-americano Donald Trump chegou a impedir uma empresa local de vender máscaras médicas para outros países. O então ministro da Saúde brasileiro, Luiz Henrique Mandetta, também acusou os norte-americanos de atravessar compras brasileiras de equipamentos médicos. Já o governo da Índia proibiu empresas locais de venderem insumos farmacêuticos para fora, o que ameaçou estoques de remédios em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.
O que está certo é que os primeiros lotes irão para Inglaterra, onde fica a sede da Astrazeneca, e para os Estados Unidos, que realizaram o maior investimento. “Isso é uma luta de mercado, passa pelo marketing, por força de vendas, lobby e influência política. Quem tem procurado civilizar um pouco essa pancadaria é a OMS”, avalia Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
‘Em pandemias passadas, o histórico mostrou que países ricos têm acesso antes às vacinas’, analisa Mariângela Simão, da OMS
“A OMS está discutindo com os 194 países da organização que, havendo um produto seguro e eficaz, todos tenham acesso a uma parcela em um primeiro momento. Buscando assim um equilíbrio pois, em pandemias passadas, o histórico mostrou que países ricos têm acesso antes às vacinas”, afirmou a diretora-geral-assistente para acesso a medicamentos, vacinas e produtos farmacêuticos da OMS, a brasileira Mariângela Simão.
“Isso não vai ser um caminho livre e desimpedido, mesmo porque existe uma capacidade de produção que é finita e é preciso saber como produzir todas as doses. E não é só vacina na fábrica, não é só substância, tem que ter vidro e vários insumos acessórios que são fundamentais. É possível que ocorra o mesmo que ocorreu com os respiradores e faltar no mercado em razão da demanda grande”, diz Guimarães. Uma associação de fabricantes de produtos hospitalares já alertou para o risco de faltar agulhas, conforme revelou a Folha.
Jorge Mazzei, diretor executivo de relações corporativas da AstraZeneca, diz que o cronograma de entrega da matéria-prima deverá respeitar a data dos pagamentos pelos países. “Sabemos que globalmente está havendo uma corrida pela aquisição de vacinas, mas respeitaremos se necessário a ordem com que os empenhos aconteceram, trabalhando para que os países recebam os produtos no menor prazo possível”, afirmou.
Tempo médio de transferência de tecnologia é de 10 anos
Comparando com uma fábrica de refrigerantes, pode-se dividir a produção de uma vacina em duas etapas: primeiro a fabricação do “xarope” concentrado, depois a etapa final de diluir, envasar, rotular, testar e distribuir. As 220 milhões de doses garantidas até agora passarão no Brasil pela formulação e envasamento, o que não é nada simples por envolver um produto sensível, por exemplo, à variação de temperatura. “O processamento final de uma vacina pode ser tão complexo quanto a própria produção do IFA [matéria-prima]”, afirma Krieger, da Fiocruz.
Superada essa etapa do envase, o Brasil aprenderá a produzir a matéria-prima das duas vacinas. Fiocruz e Butantan prometem dominar em 12 meses esse processo. Seria, no entanto, um feito inédito no Brasil, tendo em vista que os dois laboratórios levaram em média 10 anos para assimilar a tecnologia de outras vacinas.
A Fiocruz participa hoje da transferência de tecnologia para o desenvolvimento das vacinas rotavírus e pneumocócica. Essas parcerias começaram em 2008 e 2010, respectivamente, e ainda não foram concluídas. No Instituto Butantan, o acordo para produzir a vacina da gripe começou em 1999 e só foi concluído em 2013. “A transferência de tecnologia não é tão rápida quanto se gostaria, mas isso depende do interesse das partes envolvidas”, afirma Homma.
A vacina de Oxford traz uma dificuldade extra: ela utiliza uma tecnologia inovadora jamais aplicada comercialmente, o que pode trazer desafios que as fábricas desconhecem. “A produção [desse tipo de vacina] é feita hoje por universidades e laboratórios de pesquisa, mas nada em larga escala”, diz o biomédico e pesquisador Diego Moura Tanajura, professor da Universidade Federal do Sergipe.
‘Não sei se um ano é suficiente para implementar uma tecnologia’, diz Luciana de Cerqueira Leite, do Laboratório de Vacinas do Butantan
“Os tempos durante a pandemia estão muito diferentes. Não sei se um ano é suficiente para implementar uma tecnologia”, diz Leite, do Butantan. “Estamos nos esforçando muito e acreditamos que podemos fazer esse processo de forma completa em menos de um ano”, afirma Krieger, da Fiocruz.
A vacina da chinesa Sinovac adota a tecnologia de vírus inativado, semelhante a de outras fabricadas pelo Butantan, como as de gripe e raiva, o que pode representar uma vantagem produtiva. Apesar disso, o instituto paulista não consegue produzir em larga escala todas as etapas da coronavac (nome da vacina chinesa). É como se o Butantan tivesse o forno certo mas faltasse um ingrediente para conseguir fazer a receita completa, numa analogia usada por Covas. Esse ingrediente faltante é a matéria-prima.
Quanto mais tempo o Brasil levar para dominar todas as etapas de produção, mais tempo vai durar a dependência das empresas estrangeiras. E isso vai fazer toda a diferença, pois, no caso da vacina de Oxford, a matéria-prima só será vendida a preço de custo enquanto durar a declaração de pandemia pela OMS. A China, por outro lado, já declarou que não irá cobrar royalties caso o país descubra uma vacina contra a covid-19 (o produto será considerado um bem público global).
Se vacina de Oxford falhar, teremos prejuízo
Serão investidos quase R$ 2 bilhões para viabilizar a produção da vacina de Oxford no Brasil. Cerca de R$ 1,3 bilhão será pago à Astrazeneca em troca da tecnologia completa e da matéria-prima para as 100 milhões de doses, segundo o Ministério da Saúde – a multinacional afirma que receberá um valor mais baixo, próximo de R$ 1 bilhão.
Trata-se de uma compra de risco. Se a vacina falhar nos testes em humanos, não haverá doses, e o dinheiro não será devolvido. O investimento vale a pena, segundo a Fiocruz, porque ainda que a vacina da covid-19 não funcione, sua tecnologia poderá ser utilizada para pesquisar vacinas contra outras doenças, como malária, HIV e outros tipos de coronavírus.
Os testes ainda não acabaram
É importante lembrar que ainda não existe vacina para a covid-19. Há 165 candidatas, segundo a OMS, sendo 26 delas em testes com humanos, das quais seis na última etapa: incluindo as vacinas de Oxford e da Sinovac.
Especialistas, porém, pedem cautela para aguardar os resultados finais. “Até o fim dos testes haverá muita especulação”, diz a infectologista Sylvia Lemos, da UFPE. “A população tem que ter calma, paciência e esperar que a ciência tenha o tempo dela”.
Há poucas informações sobre os resultados preliminares da vacina chinesa, que começaram a ser divulgados nesta terça-feira (11). O último participante dos testes será avaliado pelo Butantan apenas em outubro de 2021, segundo revelou a revista Piauí. Já com relação à vacina de Oxford, em julho foram comemorados os resultados prévios, que indicaram boa proteção para pessoas de 18 a 55 anos. Mas ainda não há informações consolidadas sobre o desempenho em idosos, que é o principal grupo de risco da covid-19.
“Estão falando que a vacina protege 80%. Como é que eles estão falando isso antes de terminar o teste? Como é que eles vão saber se funciona no grupo de risco, que é o pessoal mais receptivo à infecção e que precisaria de fato da vacina?”, questiona Gazzinelli. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou apenas nesta semana a ampliação dos testes da vacina no Brasil com voluntários idosos.
Quantas doses garantirão imunidade?
Outra dúvida se refere à quantidade de doses que serão necessárias para garantir proteção ao organismo. Os resultados preliminares da vacina de Oxford indicaram que duas injeções garantem mais segurança do que uma. E quanto tempo vai durar essa proteção? Será necessário vacinar a população todos os anos? São perguntas que só terão resposta ao final dos testes clínicos – e que podem demandar esforço ainda maior dos laboratórios brasileiros.
Independentemente de qual vacina chegará ao mercado, especialistas alertam que estão diante de um feito jamais alcançado. “Não existe nenhuma fábrica no mundo capaz de produzir 8 bilhões de doses. Então, nós temos que realmente fazer um esforço inédito”, diz Krieger, da Fiocruz.
“O que precisa entrar no imaginário das pessoas é que, num primeiro momento, não vai ter vacina para todo mundo”, diz Simão, da OMS. “Trabalho há bastante tempo na área de acesso a medicamento, eu diria que as barreiras nesses primeiros dois anos serão relacionadas a ter quantidades necessárias para vacinar os grupos mais vulneráveis”, diz.
O tempo que vai demorar para sair a vacina e chegar a todo mundo é “o tempo da paciência”, diz Lemos, da UFPE. Até que isso aconteça, nossos principais aliados contra o novo coronavírus continuarão sendo o uso da máscara, a higiene das mãos, de objetos e de ambientes e o distanciamento social.
Texto republicado pelo UOL