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Dois dos agrotóxicos mais populares no país foram os responsáveis pela morte de 214 brasileiros na última década. Os herbicidas paraquate e glifosato levaram cinco pessoas por semana ao atendimento médico de emergência entre 2010 e 2019. No mesmo período, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estudou se retirava ou não os produtos do mercado, e considerou que apenas o paraquate representava risco à saúde. Mas, previsto para sair das prateleiras do Brasil em 22 de setembro deste ano, a decisão está agora sob pressão do lobby de empresas fabricantes de pesticidas, que tentam suspender a proibição.
Mais de 200 mil toneladas de glifosato e paraquate foram vendidas no Brasil apenas em 2018, segundo o Ibama. Mas um levantamento inédito da Agência Pública e da Repórter Brasil revela que os dois herbicidas lideram a lista de agrotóxicos permitidos no Brasil que mais intoxicaram e mataram na última década. 92% das mortes causadas por esses produtos foram classificadas como suicídio.
Os números fazem parte da base de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde e foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Eles revelam que ocorreram 45,7 mil atendimentos de intoxicações por agrotóxico entre 2010 e 2019. Em 29,4 mil foi confirmado a relação da intoxicação com o contato a um agrotóxico. Destes, 1,8 mil pessoas morreram. Cada registro é proveniente de uma ficha com 86 campos preenchidos a mão pelos médicos.
A reportagem, com auxílio do laboratório de pesquisa Advanced Research in Database (ÁRiDa), da Universidade Federal do Ceará (UFC), fez um mapeamento inédito para descobrir quais princípios ativos mais mataram e intoxicaram no Brasil. A Agência Pública e a Repórter Brasil começam a publicar hoje uma série de reportagens a partir desses dados.
Das mais de 45 mil notificações, menos da metade — apenas 19.852 — possuíam o nome do ingrediente ativo, e muitos destes registros eram ilegíveis.
Assim, o ÁRida padronizou 13.392 registros, ou 29% das notificações. A análise mostrou que glifosato, aldicarbe, paraquate, picloram e carbofurano são os agrotóxicos que mais intoxicaram brasileiros na última década. Em relação a mortes, aldicarbe, paraquate, glifosato, diurom e carbofurano são os mais encontrados.
Dois desses agrotóxicos estão banidos no país: o aldicarbe desde 2012, e o Carbofurano desde 2017. Ou seja, têm origem no comércio ilegal.
Os números revelam apenas uma pequena parte do cenário. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), para cada caso notificado de intoxicação, existem outros 50 não computados. Com isso, os números de intoxicações por agrotóxico no Brasil superariam 1,4 milhões em uma década.
Indústria e Governo minimizam riscos do glifosato e paraquate
O glifosato é de longe o ingrediente ativo mais comercializado no país, segundo o Ibama – vende quatro vezes mais que o segundo colocado, o herbicida 2,4-D. Já o paraquate aparece em sexto lugar.
Esses produtos são utilizados em culturas como soja, arroz e fumo, fundamentais para o PIB agrícola brasileiro. São tidos como vitais para o setor agropecuário, que costuma investir pesado no lobby contra a proibição desses produtos, destacando possíveis prejuízos econômicos.
A Anvisa começou a reavaliar o paraquate em 2008, e em 2017 decidiu que o produto seria banido em setembro de 2020 por ele estar associado ao desenvolvimento de mutações genéticas e à doença de Parkinson.
O paraquate foi criado pela Syngenta, empresa de origem suíça recentemente comprada pelo grupo chinês ChemChina, mas é proibido no país de origem desde 1987, em toda a União Europeia desde 2017 e na China desde 2015. Ele é produzido nesses países apenas para exportação. Nossa reportagem denunciou que esse produto estava sendo “desovado” no Brasil.
O paraquate é tão mortal que é necessário apenas um gole para tirar a vida. Por isso, o produto agrícola vem sendo utilizado também como veneno. Das 138 mortes por ingestão de paraquate, 129 foram registradas como suicídio. Uma a cada quatro pessoas intoxicadas pelo produto acabou morta.
O estado brasileiro com mais casos de morte por paraquate foi Rondônia, que tem produção agrícola de café, arroz, milho, culturas que utilizam o herbicida. 71% das vítimas fatais no Brasil são homens, e 78% têm entre 19 e 59 anos. Apenas em 13% dos casos a vítima concluiu o Ensino Médio.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, 20% dos suicídios no mundo ocorrem por auto-envenenamento com pesticidas, dos quais a maioria ocorre em zonas rurais de países com baixa e média renda. Em 2009, um relatório da Organizações Unidas (ONU) alertou para a precaução ao suicídio relacionado aos agrotóxicos e destacou a necessidade de retirar de mercado todos os produtos considerados altamente e extremamente tóxicos.
Mas as notificações de mortes por paraquate mostram inconsistências. Das 138 vítimas, duas tinham até 1 ano de idade. Uma das crianças, de um ano, foi vítima de homicídio: o autor a envenenou dentro de casa. O outro caso era um bebê de 6 meses — incapaz, obviamente, de tirar a própria vida.
A reportagem questionou ao Ministério da Saúde se a morte de um bebê com menos de um ano pode ser classificada como suicídio, mas não obteve resposta.
Lobby ainda tenta adiar proibição do paraquate
No mês passado, a Repórter Brasil e a Agência Pública revelaram o lobby da chamada “Força-Tarefa paraquate” para impedir o banimento. Formada por 12 empresas fabricantes de agrotóxicos, entre elas as multinacionais Syngenta e a chinesa Adama, essa força-tarefa financia pesquisas e participa de reuniões na própria Anvisa — forma mais de vinte desde que a agência decidiu proibir o produto.
Os esforços tiveram resultado. Em 18 de agosto, o banimento do paraquate voltou a ser tema de uma reunião da Diretoria Colegiada da Anvisa. De acordo com a Aprosoja, o setor terá prejuízo de R$ 500 milhões por ano se o paraquate sair do mercado.
“Todos os estudos estão apontando para o banimento do paraquate, que já saiu do mercado de diversos países. Não faz sentido que a Anvisa volte atrás agora”, diz o pesquisador da Fiocruz Luiz Cláudio Meirelles, que era gerente-geral de toxicidade da Anvisa em 2008, quando o paraquate entrou em reavaliação.
A reportagem questionou a Anvisa sobre as mortes por paraquate, e se o prazo para a saída do produto do mercado brasileiro continua sendo 22 de setembro. A agência informou que o processo continua em deliberação pela Diretoria Colegiada da Anvisa, uma vez que foi realizado pedido de vistas dos autos pela Diretora Substituta da Quarta Diretoria, para análise e fundamentação de seu posicionamento quanto ao caso.
Entramos em contato também com a Syngenta, principal produtora de agrotóxicos à base de paraquate, que não respondeu.
Já o glifosato, fica por mais tempo
Segundo dados do Ministério da Saúde, 76 pessoas morreram após terem contato com glifosato na última década, sendo 68 notificados como suicídio. Além disso, 2.430 foram atendidos em hospitais devido a intoxicações confirmadas pelo produto.
Em fevereiro do ano passado, após um processo de revisão iniciado em 2008, a Anvisa decidiu manter o glifosato no mercado. Segundo o órgão, o herbicida não se enquadra nos critérios proibitivos previstos na legislação brasileiras: não é classificado como mutagênico, carcinogênico, tóxico para a reprodução e teratogênico (que causa malformação fetal). A Anvisa ainda diminuiu a classificação toxicológica de 93 produtos formulados à base de glifosato. Todos os 24 que eram considerados “Extremamente Tóxico” passaram a ser taxados de “Produto Improvável de Causar Dano Agudo”.
A Bayer — dona da Monsanto, primeira empresa a vender agrotóxicos à base de glifosato — responde a mais de 18 mil ações por conta de efeitos do glifosato apenas nos Estados Unidos. A Agência Pública e a Repórter Brasil revelaram um caso no Espírito Santo, onde um agricultor entrou na Justiça contra a empresa por ter contraído doenças como esquizofrenia, epilepsia e depressão a partir do contato com glifosato, segundo laudos médicos.
“Como que pode um produto que a Anvisa rebaixa a toxicidade ser o que mais apresenta intoxicações? Segundo a Anvisa, o glifosato não é tão tão tóxico. A agência passa uma mensagem para as famílias de que o produto não traz riscos à saúde, o que os dados comprovam que não é verdade”, questiona o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, vice-presidente da regional sul da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e membro da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos.
A retirada do glifosato da classificação máxima traz alterações nos rótulos dos produtos vendidos no mercado, que agora não trazem mais o símbolo de perigo, a caveira, mostrando apenas um sinal de atenção. “A embalagem agora será igual a de qualquer produto de uso doméstico”, afirma Luiz Cláudio Meirelles. Entre as pessoas que morreram por contato com glifosato, apenas 19% tinham chegado ao sexto ano do Ensino Fundamental.
A letalidade do glifosato é bem inferior à do paraquate, com uma morte para cada 32 notificações de intoxicação. “O glifosato apresenta as consequências a longo prazo. Então, além das consequências agudas que mostram os dados, teremos muitas consequências crônicas ao longo do tempo, que vão surgir e muitas vezes nem os médicos relacionam aquilo com o uso do agrotóxico anos atrás”.
O engenheiro agrônomo destaca a necessidade de informar a letalidade dos herbicidas. “Temos o governo e formadores de opinião chamando esses produtos de ‘remédios’ das plantas. Apresentando os herbicidas como produtos que exigem uma preocupação menor, e hoje eles são os agrotóxicos mais utilizados no Brasil. É preciso explicar que esses produtos são sim perigosos”, explica Melgarejo.
De acordo com a Anvisa, a metodologia de análise utilizada para a avaliação toxicológica do Glifosato está em consonância com as melhores práticas regulatórias internacionais. A agência informou que os dados de intoxicação do Ministério da Saúde de 2007 a 2015 foram objeto de avaliação da equipe técnica e serviram de subsídios para a reavaliação.
“Os resultados de intoxicações por Glifosato no Brasil foram comparados aos dados de comercialização desse ingrediente ativo no país. Verificou-se que houve aumento da comercialização de Glifosato em cerca de 1,5 vezes de 2009 a 2015, com relativa estabilização na quantidade comercializada a partir de 2012. Quanto às notificações, notou-se aumento linear a partir de 2010, mas sem a estabilidade observada no gráfico de comercialização. Portanto, não foi verificada relação entre aumento na quantidade de comercialização e a incidência de intoxicações no país. O aumento de notificações relacionadas ao Glifosato ao longo dos anos pode ser explicado por uma melhora na vigilância das intoxicações exógenas”, informa a nota.
Com o resultado do processo de reavaliação, a Anvisa informou que passa a exigir das empresas registrantes ações de mitigação de riscos para reduzir os casos de intoxicações exógenas por Glifosato no Brasil, incluindo programas de treinamento in loco de trabalhadores, com planejamento dos locais e culturas prioritárias para as ações. Em relação às tentativas de suicídio, o Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde (DANTPS) da Secretaria de Vigilância em Saúde investigará a importância do Glifosato como agente tóxico utilizado nas tentativas de suicídio para sugerir medidas de prevenção e controle.
Confira a íntegra da resposta da Anvisa a reportagem.
Para a CropLife, associação que representa empresas produtoras de agrotóxicos como Bayer, Basf e Syngenta, os caso de suicídios com glifosato são um desvio de uso, é não são relacionados à segurança do produto. “O glifosato, no mercado há cerca de 50 anos, é um dos herbicidas mais estudados do mundo, com mais de 800 estudos científicos submetidos nos Estados Unidos. Diversas autoridades regulatórias revisam de forma abrangente e rotineira o princípio ativo e suas formulações. As conclusões apontam de modo consistente para a segurança do herbicida quando usado conforme as instruções, o receituário agronômico e os cuidados obrigatórios por lei na aplicação, como o uso de equipamentos de proteção individual (EPI)”, informou em nota.
A Croplife reitera que os agrotóxicos de uso agrícola ficam em sexto lugar entre os produtos que causaram intoxicações, atrás de drogas de abuso, alimentos e bebidas, produtos de uso doméstico e raticida.
Questionamos também a Bayer/Monsanto, principal produtora de agrotóxicos à base de glifosato, que não quis responder.
O Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg) informou que não se manifesta sobre ingredientes ativos específicos.
Com contrabando, produtos proibidos continuam matando
Até mesmo produtos que a Anvisa já baniu há quase uma década continuam fazendo vítimas no país, segundo o levantamento. O principal deles é o inseticida aldicarbe, popularmente conhecido como chumbinho. Foi banido em 2012, devido ao uso irregular e indiscriminado no país como raticida, agente abortivo, e tentativas de homicídio e de suicídio. De acordo com a Anvisa, o aldicarbe tornou-se um “um grave problema de saúde pública, de amplitude nacional, dada a facilidade que se tem a seu acesso, particularmente nos centros urbanos.”.
Dados do Sinan mostram que a proibição do aldicarbe não fez o seu uso acabar. Ao contrário, as notificações cresceram. Em 2013, o número de óbitos pelo produto triplicou, e o de intoxicações mais que dobrou.
O segundo produto proibido que mais causou intoxicações tem um uso semelhante. O Carbofurano também era utilizado de forma ilegal para matar ratos, devido à alta toxicidade. Foi proibido no Brasil em 2017 por seus efeitos neurotóxicos, malefícios ao sistema nervoso, como a morte de neurônios e outras consequências. O relatório concluiu ainda que o produto deixava resíduos nos alimentos e na água.
Após a proibição do aldicarbe, aumentarem as intoxicações por Carbofurano, que ocupou o seu lugar devido a um efeito semelhante. Um ano depois da sua proibição, as intoxicações diminuíram, mas ainda ocorrem.
Mas o que faz com que as intoxicações pelos dois produtos continuam ocorrendo mesmo depois deles saírem do mercado?
A principal possibilidade é o contrabando. “O aldicarbe produzido no Brasil já deveria ter acabado. O que acontece é que outros países ainda estão produzindo e comercializando, e esse produto pode estar sendo trazido para cá”, explica Luiz Cláudio Meirelles.
Sobre o uso de agrotóxicos em suicídios, a CropLife Brasil diz que todos os anos, no mundo todo, milhares de pessoas tiram a própria vida de diferentes formas. “Até mesmo beber água em excesso pode matar. No caso dos defensivos químicos o desvio de uso é que acarreta as mortes. Ou seja, um defensivo químico é fabricado como uma ferramenta de auxílio ao produtor rural para proteger sua lavoura dos prejuízos que pragas podem ocasionar e não para qualquer outro uso humano, como a ingestão proposital”, informou em nota.
A CropLife reforçou que trabalha diariamente para que os agrotóxicos sejam usados de forma correta e segura. “O trabalho, no entanto, extrapola os limites da indústria privada. Existem questões sociais e públicas envolvidas, como educação, financiamento, emprego, renda etc. Tanto setor privado quanto o público devem estar atentos e agir diante dessa realidade de saúde pública que é o suicídio”, diz em nota.
A Anvisa informou que estando o produto proibido no país, o combate ao seu contrabando foge do seu escopo da atuação. O Ibama, que faz parte da estrutura de fiscalização de uso de agrotóxicos, não respondeu até a publicação da reportagem.
Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de agrotóxicos. Clique para ler a cobertura completa no site do projeto.